Ano 20

11ª Cineop - Terceiro Dia

cena de A próxima vítima, 1983, João Batista de Andrade

Toda vez que a gente revê um filme, novas camadas podem ser reveladas - fora o fato de que sequências inteiras, muitas vezes, se perdem na memória quando se passa muito tempo do assistido. E é por esse motivo, dentre outros, que filmes considerados clássicos resistem a cada revisitação, revelando para nós elementos que até então poderiam ter passados despercebidos.

 

A Cineop - Mostra de Cinema de Ouro Preto focaliza o cinema como patrimônio, daí que se configura como espaço generoso, e necessário, para a reexibição de filmes, seja por retrospectivas ou sessões especiais. Nessa 11ª edição, o público tem a oportunidade de rever, ou mesmo ver, cineastas fundamentais do cinema brasileiro, como Eduardo Coutinho, Leon Hirszman, João Batista de Andrade, Carlos Reichenbach, Sylvio Back, Edgar Navarro, e Ugo Giorgetti.

 

À noite de sábado foi a vez de conferir dois desses filmes: A próxima vítima, de João Batista de Andrade, e Extremos do prazer, de Carlos Reichenbach.

 

Na apresentação do filme, João Batista de Andrade relembrou o que havia dito no debate do dia anterior, que é o fato de que sempre privilegiou, em seus filmes, o registro e a reflexão do que estava acontecendo no momento. Que essa característica está muito clara nos documentários que realizou - no debate, seu filme Liberdade de imprensa é que norteou aquela fala de então.

 

Daí, disse que só depois daquela conversa é que pensou que também em A próxima vítima, o filme que iríamos assistir em seguida, o mesmo procedimento acontece, ainda que seja uma obra de ficção. "É um filme a quente", ele frisou.

 

Com o filme na tela, bastou alguns minutos de projeção para constatar o que o cineasta havia dito. A próxima vítima é um petardo, e, ainda que realizado em 1983 continua atualíssimo, mesmo para quem já o assistiu três vezes, como é o caso do Mulheres. Com a diferença é que agora foi em tela de cinema, o que faz toda a diferença.

 

Sim, porque a São Paulo onde a trama acontece pulsa de tal forma sob a lente extraordinária do craque Antônio Melliande, que é quase possível sentir o cheiro da cidade. Com tomadas noturnas inacreditavelmente poderosas, A próxima vítima é tudo o que boa parte do cinema brasileiro atual não consegue fazer, já que, muitas vezes, aposta na ordem, no inodoro, no asséptico.

 

A trama nervosa de A próxima vítima se passa durante a campanha eleitoral paulista de 1982. Mais que pano de fundo, esse cenário é deflagrador do entrecho policial que conduz a história, no caso o assassinato de prostitutas pelo chamado "tarado sexual do Brás".

 

Como em Doramundo, outro petardo do cineasta, em A próxima vítima João Batista de Andrade, a partir de seu argumento e de roteiro de Lauro César Muniz, cerca sua história da face cruel da ditadura civil-militar, e, aqui, nas viúvas dela, no caso a força assassina da polícia militar e dos abutres dos bastidores da política.

 

A próxima vítima tem elenco de peso. Um Antônio Fagundes encarnando um jornalista perplexo com o seu tempo; uma Mayara Magri linda e talentosa em puro frescor como a prostituta Luna; um Gianfrancesco Guarnieri em registro bufão de mundo cão; um Othon Bastos encarnando a face do mal; um Aldo Bueno em grito de revolta exacerbada; uma Louise Cardoso belíssima orbitando em volta do personagem de Fagundes; e um surpreendente Goulart de Andrade como o editor da televisão.

 

Carlão

 

O outro filme exibido na noite foi o raro Extremos do prazer, película de 1983 dirigida por Carlos Reichenbach, um de seus filmes que menos circulou, mesmo depois de toda a reconfiguração do olhar da crítica, sobretudo a virtual, para a sua obra.

 

Ligia Reichenbach, viúva de Carlão, foi quem apresentou o filme. Disse que só o viu quando do lançamento e depois nunca mais, daí que não se lembrava absolutamente de nada mais dele – arrancado risos da plateia. Aproveitou o momento também para saudar  o grande montador Eder Mazini, que faleceu na semana passada e trabalha no filme.

 

Extremos do prazer reúne em uma casa personagens que têm que se a ver, de uma forma ou de outra, com o universo particularíssimo do hóspede recluso, interpretado por Luiz Carlos Braga. São eles a burguesa Taya Fattom; o boçal Roberto Miranda; a sobrinha de Braga e seu marido Rosa Maria Pestana e Rubens Pignatari; e a filha dele e seu parceiro Vanessa Alves e Eudes Carvalho. 

 

Braga é Luiz Antônio, um professor de sociologia que se "autoexila" em seu mundo particular depois da morte violenta da esposa, uma militante política que teria se suicidado, a bela e diáfana Sandra Graffi. Luiz convive com os convidados da casa de campo, mas o tempo todo está mergulhado na sua história com a esposa, com quem conversa e caminha pelo jardim. Em meio a isso, um dos focos da narrativa é a relação do boçal com a burguesa, em que ela revela suas limitações e ele todo seu machismo e pequenez em suas autoafirmações de virilidade.

 

Carlos Reichenbach, que também aparece em cena como ator em ponta, apresenta aqui todo o seu repertório: homens machistas ou perdidos; mulheres submetidas e empoderadas; nudez frontal feminina e masculina; citações filosóficas e de grandes pensadores; quebra da quarta parede e planos criativos e desconcertantes.

 

Causou desconforto a cena de estupro no filme, com direito a gente se levantando e saindo da sala. E também crítico apontando machismo. A cena desconforta? Claro que sim. Mas essas acusações e apontadas de dedo em riste para o filme revela muito mais quem vê do que o apresentado. 


Carlos Reichenbach e seu cinema são muito mais sofisticados que qualquer sentença apressada. Usando o próprio slogan do cineasta, há de se ter olhos livres para sua obra, um estrato desconcertante, provocativo e complexo dentro da produção do cinema popular.

 

 

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11ª Cineop - Mostra de Cinema de Ouro Preto
Programação completa
www.cineop.com.br

 

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Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior