Ano 20

A nobreza de Afrânio Vital/As atrizes negras

Afrânio Vital - Acervo pessoal
Afrânio Vital é o homenageado da vez da Curta Circuito - Mostra de Cinema Permanente, que está apresentando o programa "País Tropical", com curadoria de Andrea Ormond, e já homenageou no primeiro semestre deste ano os cineastas Carlo Mossy e Alfredo Sternheim.

A programação dedicada à Afrânio Vital começa nessa segunda, 17 de julho, às 20h, no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte, com a exibição do longa  Anjos e demônios (1970), de Carlos Hugo Christensen, e até agosto exibirá filmes que ele dirigiu e também uma masterclass com o cineasta. Anjos e demônios foi o primeiro trabalho de Afrânio no cinema, aqui como Assistente de Direção ao lado do produtor Francisco Marques, que participará de bate-papo após a exibição.

Afrânio Vital é cineasta talentoso, homem de cinema que atuou em várias frentes ao lado de diretores como Walter Hugo Khouri, Miguel Borges e Christensen, e um dos pioneiros cineastas negros que dirigiram longas-metragens no país. Afrânio dirigiu três longas, Os noivos, A longa noite do prazer, e Estranho jogo do sexo, além de 15 curtas - a ótima notícia é que Os noivos será exibido pela primeira vez depois de 38 anos de seus desaparecimento.

Afrânio Vital merece todas as homenagens, e eu tive a felicidade de fazer a apresentação de sua biografia "A esfinge negra - a história do cineasta Afrânio Vital". Agora, o Mulheres do Cinema Brasileiro também o homenageia aqui com uma entrevista e um mergulho maravilhoso do cineasta sobre o panorama das atrizes negras brasileiras.

Mulheres do Cinema Brasileiro: Afrânio, você vive um momento importante, não é? Voltou a filmar, publicou uma biografia, e está sendo homenageado pela Mostra Curta Circuito, com curadoria de Andrea Ormond, inclusive com o retorno de Os noivos, que estava desaparecido. Como está sendo esse momento para você?

Afrânio Vital: Estou vivendo dias de graça Adilson, que os Deuses abençoem esses dias e os façam longos. A amizade de Carlos e Andréa Ormond, jovens e talentosos, foi um dos maiores presentes que recebi em minha vida. Me fez lembrar de quando conheci o Khouri e o Christensen e desfrutei de suas amizades. Por não serem dogmáticos e sectários me tiraram do ostracismo revelando ao público atual minha existência e a de meus filmes, num momento em que eu já me preparava para comprar um caixão e deitar dentro dele. Achava que jamais seria reconhecido pelo que fiz. Que não encontraria entre os jovens, cabeças pensantes como as deles. Agora então, nesse momento em que se associaram com Daniela Fernandes e Claudio Constantino , dessas pessoas que fazem, muito  mais do que falam, resultou nessa maravilha que está sendo o Curta Circuito deste ano. Gente importante como Carlos Mossy e Alfredo Sternheim, relegados por muito tempo ao desconhecimento pela critica ideológica e  sectária, voltaram a ter visibilidade, e acredito que através da curadoria de Andrea Ormond e da produtividade de Daniela Fernandes muita coisa boa  ainda virá. 

Posto isto me animei e ainda mais quando Carlos Ormond se propôs, por conta própria e de livre vontade, escrever e bancar minha biografia e fortuna crítica, cujos primeiros exemplares se esgotaram rapidamente, estando eu agora a levar para Belo Horizonte a nova fornada para lançamento aí. 

Voltar a filmar foi o corolário de tudo isto. Estou realizando, com calma e com dinheiro próprio, o meu quarto longa metragem, Canção do exílio, uma livre adaptação bem marginal e vanguardista da vida de Gonçalves Dias, filme que está sendo feito aos poucos com o mínimo de dinheiro e o máximo de liberdade, como sempre quis e fiz.

MCB: Entre os cineastas com os quais trabalhou em várias funções, gostaria que falasse um pouco sobre dois nomes fundamentais do nosso cinema, a meu ver ainda não alçados em suas reais dimensões: Carlos Hugo Christensen e Walter Hugo Khouri.

AV: Vou resumir, pois daria dias, meses e anos de conversa. Carlos Hugo Christensen não era só um cineasta, era muito mais que um diretor de filmes, era um poeta e um homem do mundo, principalmente da América Latina, onde filmou em seus principais países. Era um homem apátrida, um poeta cuja obra ainda não foi avaliada no que contém de vanguardismo e coragem. É uma pessoa que ainda pretendo escrever sobre ele um dia, colocando em relevo a sua importância profética e poética (no sentido aristotélico do termo grego“ poiesis“) em obras como Viagem aos seios de Duilia, O menino e o vento, e Enígma para demônios

Walter Hugo Khouri ,meu amigo, era um homem clássico renascentista, mas ao mesmo tempo com uma dupla face. Uma delas estava voltada para o futuro. Seus filmes são obras inacabadas e cada vez que as vemos nos revelam novas nuances que assustam por  serem tão antenadas ao presente, trazendo o frescor de diversas questões universais, tais como sexualidades, o feminino, a impossibilidade de um bem supremo, a castração etc.. Estes são temas centrais e universais em seus filmes. Relembro aqui que dei, em tempos passados, uma entrevista a você mesmo, sobre Khouri,e que foi publicada na revista Zingu! Nesta entrevista, falo detalhadamente da minha amizade com ele. Convido todos a lê-la ,pois é esclarecedora (https://revistazingu.net/2011/09/27/entrevista-afranio-vital). Estou finalizando, junto com Carlos Ormond, um livro sobre o Khouri, analisando filme por filme, livro este retomado agora 40 anos depois de sua primeira feitura aprovada por Khouri, revisada pelo crítico e cineasta  Rubem Biáfora, e prefaciada pelo escritor e romancista  Otavio de Faria, autor de “ A Tragédia Burguesa", sua monumental obra. 

Não poderia deixar de falar ainda sobre o documentário Afranio Vital, a Solidão Ancestral do Artista, realizado por dois outros jovens de talento, José Rodolfo Chufan e Vinicius Bisterço. Universitários da USP e estudiosos de cinema, jovens que conheci, se interessaram pelo meu trabalho e decidiram fazer um filme.  Nele, fazem um perfil biográfico de minha pessoa e registram minhas falas sobre cinema, cinema brasileiro, e sobre arte de uma forma geral. O documentário será exibido também na mostra do Curta Circuito. 

MCB: Você, Cajado Filho, Haroldo Costa, Waldir Onofre, Agenor Alves, Zózimo Bulbul, Odilon Lopez, Antonio Pitanga, Paulo Veríssimo e Olá Balogun são os cineastas negros pioneiros na direção de longas, com destaque para Adélia Sampaio, a primeira entre as mulheres. Ainda hoje o número de homens e mulheres que chegam à direção de longas é bem pequena, ainda que com nomes de destaque como Joel Zito, Jefferson De e André Novais de Oliveira. Como vê essa questão?

AV: Essa questão é a velha questão do “ negro “ em geral, que se resume ainda em uma compreensão da negritude de forma medieval; como o estranho, o perigoso “o outro". Falei muito sobre isso nas duas entrevistas que dei ao blog “ Estranho Encontro”,  de Andrea Ormond - vide em http://estranhoencontro.blogspot.com.br , na entrevista primeira e na segunda. Aproveitem ainda para se deliciarem, além dessas entrevistas, com as modernas  e espirituosas críticas que analisam o todo e até hoje mal contado cinema brasileiro. As duas entrevistas estão publicadas ainda no livro sobre mim - “ Esfinge Negra  a Historia do Cineasta Afranio Vital“, de Carlos Ormond. Mas, resumidamente, a falta de diretores e autores negros em geral é e pode ser colocada na conta do racismo e do preconceito que atinge não só a cor da pele, mas também as preferências sexuais, a liberdade das mulheres e o conceito de rebeldia e transgressão da juventude. 

MCB: Gostaria que comentasse em algumas linhas suas produções em curtas e os longas Os noivos, A longa noite do prazer. e Estranho jogo do sexo. 

AV: Dos meus trabalhos em curtas destaco primeiro  o feito em super 8, Advinhe que vem para almoçar, que ganhou o primeiro prêmio do Festival de Campinas nos anos 1970, e ainda Ataulfo Alves  e  Antonio Maria, dois curtas sobre música e compositores, e também  Augusto dos Anjos,  Arquitetura Rio – Panorama urbano, ambos premiados com o Certificado de Qualidade do Antigo INC  de exibição garantida. Fiz ao todo 15 curtas, sendo alguns deles institucionais. Os curtas para mim foram uma escola de formação junto com o cineclubismo. 

Meu primeiro longa foi Os noivos, realizado em 1978/9, e ganhou o premio de melhor roteiro pela APCA Associação Paulista de Críticos de Arte. O filme ficou perdido durante 38 anos e agora conseguimos encontrar uma cópia em U-Matic, em Nova Iorque, que graças aos Deuses havia sido guardada pelo Adnor Pitanga, um dos produtores. A partir desta cópia fizemos a digitalização, conseguindo obter uma cópia final razoável e exibível, se levarmos em conta a raridade do filme. A longa noite do prazer e  Estranho jogo do sexo  foram meus dois últimos longas metragens. Estes foram feitos no início dos anos 80 e sobre eles falo bastante na entrevista ao blog “ Estranho Encontro”,  e ainda no livro sobre minha vida “ Esfinge Negra - A História do cineasta Afranio Vital “, que convido todos a lerem. 
 
MCB: Te convido a falar sobre as nossas atrizes negras.

AV: Segue abaixo.

Grandes atrizes  e mulheres negras do Cinema , Teatro e TV no Brasil.

Faço, desde o começo de minha atuação no cineclubismo em 1967, 50 anos de Cinema. Nestes anos, dirigi em meus filmes atrizes sensacionais como Neila Tavares, Jussara Calmon, Maria Lucia Dahl, Sonia Oiticica, Norma Sueli,  e trabalhei com grandes mulheres da técnica como a maquiadora Nena de Oliveira, a produtora e cineasta Maria do Rosário Nascimento e Silva, a montadora Nazaré Ohana, enfim, mulheres notáveis. Sem contar as de filmes em que participei, filmes de outros diretores de quem fui assistente. Mulheres como   Vera Fischer, Cleide Yaconis, Elke Maravilha, Dina Sfat, Norma Bengell , Lilian Lemmertz  e tantas outras...

Eu, negro, filho de uma mulher negra, pobre e da zona rural fluminense, e de um homem branco descendentes de espanhóis, fui, por minha mãe, iniciado no cinema, a arte em que ela, por ser pobre, tinha acesso, e que nas sessões no único cinema de Bom Jesus do Itabapoana, (norte-fluminense ) eu assistia a acompanhando e me contagiando. Uma mulher negra de porte nobre e bela, que me faz lembrar das inúmeras mulheres negras do cinema brasileiro. Procuro aqui de memória (e que me perdoem  as não citadas de lembrança, pois a memória por vezes nos trai) relembrá-las  em sua grande maioria.   

Chica Lopes, Marlene Silva, Vera Manhães, Elisa Lucinda, Maria Ceiça, Thais Araújo, Camila Pitanga, Sheron Menezes, Thalma de Freitas, Daniela Ornelles, Ana Carbatti, Isabel Fillards, Roberta Rodrigues, Cris Vianna, Juliana Alves, Cacau Protásio, Mary Sheila, Grace Passô. Sem falar em Watusi em números musicais semelhantes aos de Angela Maria em filmes. Seria injustiça citar um sem números de personagens e atrizes negras, como as que lembrei, e não falar ainda em  Vera Regina, sempre associada a Grande Otelo  na dupla de humor; A baiana Chica Xavier,  de grandes interpretações em teatro, novelas e em  filmes tais como O assalto ao trem pagador; Cléa Simões, de Ladrões de cinema ;  Neusa Borges de A deusa negra;  Zeni Pereira, outra baiana, que atuou em 23 filmes e inúmeras novelas, mas que recordo mais amiúde nos filmes  Orfeu negro e  O pica-pau amarelo; Isaura Bruno, a famosa e eterna “ Mamãe Dolores”; Jacira Silva, da novela  Irmãos coragem e de filmes como  O cortiço;  e Jacira Sampaio, a “Tia Anastácia “ do Sitio do pica-pau amarelo,  e a mãe de Zózimo Bulbul em Compasso de espera. Mas, vou me ater em 10 nomes que considero,  pela suas pluralidades representativas,  o essencial das mulheres negras nas artes cênicas do Brasil. 

Não poderíamos esquecer também de citar, entre muitas que, como falei acima, infelizmente, não me recordo agora, as mulheres da técnica: diretoras, cinegrafistas , cenógrafas,  e outras. Citarei de memória duas mulheres negras importantes que me vem à mente:  Cristina Amaral, a montadora de filmes, e a pioneira  cineasta  Adélia Sampaio,  irmã de Eliana Cobbet , que conheci ao trabalhar na Difilm, e que foi a primeira a tratar das questões de uma minoria homossexual  feminina no cinema brasileiro.  

A minha seleção
 
1 - Ruth de Souza. Nossa maior dama negra, algo além da simples interpretação, um mito, um monumento  às artes brasileiras, notadamente do cinema e do teatro. Tive o prazer de trabalhar com ela em O fruto do amor, filme de Milton Alencar, no qual fazia a continuidade e  no qual ela interpretava a secretária do personagem de Paulo César Pereio.  Pude observá-la, minuciosamente,  pois ficamos em uma locação, ilhados, literalmente, durante semanas, na ilha de Paquetá. Sua disciplina, despojamento e sua entrega total ao personagem me marcaram profundamente.

2 - Adele Fátima. Se de todos os belos rostos de atrizes com quem trabalhei destaco, pela beleza,  o de Vera Fischer, em se tratando do corpo feminino o mais lindo que vi foi o de Adele Fátima. Quando fui Assistente de Direção de Luiz Antonio Piá em   O homem de seis milhões de cruzeiros contra as panteras, filme de 1978, ela representava uma das “ Panteras “ que atormentava Costinha e que atormentou também a mim e a toda a equipe pela sua sensualidade, beleza e perfeição, que ficou eternamente marcada na mente do povão pela propaganda das “Sardinhas 88", pelas Mulatas do Sargentelli  (as que não estão no mapa), e ainda pelas Histórias que nossas babás não contavam, em que está estonteante, filme de Osvaldo de Oliveira, feito em 1979.

3 – Jussara Calmon. Seguindo na trilha de Adele Fátima e do cinema popular, temos, logo depois, a atriz Jussara Calmon, por quem me apaixonei e a dirigi  em dois filmes, “A longa noite do prazer  e  Estranho jogo do sexo, meus dois últimos longas metragens. A destaco também, e principalmente,   pela sua ousadia de ter sido a primeira atriz a fazer um filme de sexo explícito no cinema comercial brasileiro, o filme Coisas eróticas. Figura ímpar  nesse e em vários sentidos, como se pode inferir de seu livro autobiográfico, “Muito Prazer, Jussara Calmon".

4 – Léa Garcia.  Uma atriz cerebral, introspectiva e intelectual. A admiro principalmente por Orfeu do carnaval, filme  de 1959, e Compasso de Espera“, como uma ativista de causas negras, único filme de Antunes Filho, de 1973, além de  Ganga Zumba,  filme de Carlos Diegues, feito em 1963.

5 - Luiza Maranhão. Soberba beleza e soberba mulher, figura enigmática, dessas que inundam a tela pela sua marcante expressão e que está  inesquecível em A grande feira,  de Roberto Pires, e  em O assalto ao trem pagador, de Roberto Farias.

6 – Zezé Motta. Uma atriz moderna e dinâmica. Outra intelectual. Cantora, atriz de televisão e cinema, marcou toda uma época no papel inesquecível de Xica da Silva, filme de grande bilheteria e impressionante sucesso, nem tanto pelo filme em si, mas por sua contagiante  interpretação, que a vinculou ao personagem em nossa imaginação até hoje.

7 – Zezeh Barbosa. Paulista de Osasco, uma “ caricata “ por excelência; atuou muito em televisão e cinema, herdeira de uma tradição circense. Atriz Felliniana por essência, formada pela Escola de Arte Dramática da USP , participou do Circo Grafitti e veio, inclusive, chamar a atenção de Khouri, a ponto de se tornar uma atriz Khouriana,  dividindo um dos principais papéis em Paixão perdida, último filme de Walter Hugo Khouri,   feito em 1998. 

8- Julciléa Telles. Um “monumento" de mulher, que encarnava  a mulata gostosa dos filmes de Roberto Machado, como  Uma virgem na praça e Uma mulata para todos, tendo trabalhado também com veteranos do cinema popular brasileiro, tais como Victor Lima e Victor de Melo.

9 – Aizita Nascimento.  Uma bela mulher – primeira negra a disputar um concurso de beleza no Brasil em 1963. Atuou em filmes como Ninguém segura essas mulheres, Brasil ano 2000“ e Cristo de lama, entre outras películas e novelas de TV. 

10 – Maria Rosa. Atriz  e Modelo. Outra mulher que encantou e chamou a atenção a ponto  de se tornar também uma personagem Khouriana, em destacados e importantes papeis em O prisioneiro do sexo, de 1978, e  em As filhas do fogo ,  filmes de Walter Hugo Khouri.

Entrevista realizada por email em 16 de julho de 2017.

::Voltar
Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior