Ano 20

11a CineBH - O vulcão dança

Lira Ribas e Cristal Lopez em cena de Estado itinerante (2016), de Ana Carolina Soares
Certo dia, a atriz Liv Ullmann viu sua filha Lyn caminhando com o pai, o cineasta Ingmar Bergman, quando, em certo momento, a menina estendeu a mão, o pai não percebeu, e ela ficou ali com a mão suspensa no ar. Liv percebeu, ali, que sua filha tinha acabado de viver uma mutação - espisódio narrado em uma de suas indesviáveis biografias, exatamente chamada Mutações.

Assim como vivemos nossas mutações particulares, vivenciamos, também, nossas dores particulares - e outras mutações advindas delas. A empatia, ação humanista, e política, tão essencial nesse mundo boçal em que vivemos, é fundamental para que tenhamos alguma possibilidade de salvação do aniquilamento. Porém, é preciso dizer, ainda assim as dores, as perplexidades, o ecoar fundo advindos de ações causadas por definições de grupos só são compreendidas em sua totalidade de como são sentidas por esses mesmos grupos. Meus pares não pretos podem compreender as minhas dores por ser preto nesse país de dominação branca que pratica o extermínio de pretas e pretos, mas só o preto sabe o que é o racismo em sua face crua, dura e real que o assola e quando o assola.

E é sobre esse mundo em que se habita, e aí no caso o mundo da violência contra a mulher, que fala esse impressionante curta mineiro premiado Estado Itinerante, dirigido por Ana Carolina Soares. E é dessa forma que nós não mulheres - pelo menos no meu caso - acompanharmos  a trajetória de mutação da personagem Viviana. Vamos sabendo aos poucos que ela está brigada com o marido, que ela não quer voltar para casa, que ela foi agredida fisicamente por ele. E como não mulheres não conseguimos sentir em sua totalidade a dor que é só dela e de todas as mulheres agredidas, ainda que sintamos e percebemos a dimensão daquela dor.

Pois Estado Itinerante é cinema. E aí, quando é cinema de verdade, quando se é um artista verdadeiro, ou, pelo menos, um artista em momento iluminado, pode se conseguir contaminar cada fotograma com o que se pretende, como é esse percusso de mutação no caso do filme. E Ana Carolina Soares faz isso. Maravilhosamente bem dirigido, o curta se coloca com toda a sua pujança logo de cara, já em seu primeiro respiro. Pois, é bom lembrar, mais que contar histórias, cinema, em essência, é como se conta uma história - ou até mesmo abrindo mão dela.

E é nesse "como" que Estado Itinerante nos arrebata. Como se conta, como se fala, como se dirige, como se atua. E aí, camaradas, a diretora lançou mão de ninguém menos que Lira Ribas, essa atriz, e essa mulher, que é um vulcão. Na atriz aos nossos olhos vemos o vulcão, e na mulher o adivinhamos. E é um vulcão de múltiplos mergulhos. Mergulho de beleza. Mergulho de indignação. Mergulho de negritude. Mergulho de altivez. Mergulho de afirmação. Mergulho ético e estético. Mergulho político. 

E um vulcão de dor. 

Lira Ribas na tela em Estado Itinerante é o vulcão de dor de toda uma humanidade de mulheres. E como Ingrid Bergman em Strombolli, de Rosselini, ela dança, ainda que subvertendo os versos de Marina Lima "e ela dançando à beira do abismo, e ela dançando à beira do vulcão". Subvertendo porque Lira é o próprio vulcão. E aí, quando encontra a estonteante Cristal Lopez na dança de erupção ao som de Gus N´ Roses,  uma das cenas mais acachapantes da história do cinema brasileiro recente, como Isabelle Adjani em Possessão, de Zulawski, Viviana/Lira é o vulcão que dança e põe para fora, como em expulsão de aborto de Adjani naquele filme, toda a dor, toda a indignação, toda a humilhação imputada de mulher de séculos. 

E aí Viviana ganha a rua. Não mais com limites para o jorro de sua lava, que aqui não é para aniquilar, mas para emergir. Para espraiar.

Em Estado Itinerante, Lira Ribas é o vulcão que dança. 
Enfim, Livre.


Estado Itinerante foi assistido ontem, 23 de agosto de 2017, na 11a CineBH, na Praça da Estação, no programa Mostra Clássicos na Praça, da Mostra, em parceria com o projeto MAX. 


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Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior