Ano 20

21a Mostra de Cinema Tiradentes - Segundo Dia

Roberta Gretchen Coppola em cena de 'Vaca profana' (2017, SP), de René Guerra
Ontem, sábado, 20, a 21a Mostra de Cinema de Tiradentes promoveu uma maratona de sessões seguidas no Cine-Tenda difícil de perder, ainda que difícil de encarar, pois com começo às 17h e com término depois de meia-noite.

Foram duas sessões de curtas e duas sessões de longas, e não estamos falando de títulos que poderíamos passar adiante, mas de curtas como Nada, de Gabriel Martins, e Vaca profana, de René Guerra; e os longas Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans, e Era uma vez Brasília, de Adirley Queirós. No total nove filmes.

Não foi possível ver tudo, mas o Mulheres conferiu cinco curtas e um longa; toda a mostra Foco Minas - Série 1, e parte da Mostra Panorama - Série 1.

Nada (2017-MG), da Filmes de Plástico, foi o primeiro curta conferido. A Filmes de Plástico é um dos coletivos mais talentosos, relevantes e importantes em Minas Gerais hoje e no país como um todo.

Minas sempre revelou e reafirmou cineastas de altíssimo calibre. Não à toa o chamado Pai do Cinema Brasileiro é Humberto Mauro; seguido por nomes tão fundamentais como Carlos Alberto Prates Correia, Baz Chediak, Rafael Conde, e tantos outros.

Na filmes de Plástico, no entanto, há um real sentido de trabalho coletivo, pois seus integrantes, o produtor Thiago Macedo e os cineastas André Novais de Oliveira, Gabriel Martins e Maurílio Martins circulam uns pelos filmes dos outros não só desempenhando funções diversas, mas como que a desenhar um traçado de rota. Um carimbo. Uma assinatura.

E aqui é bom ressaltar, não carimbo ou assinatura como limites cerceadores, mas uma rota humanista em essência, ainda que para que esse se dê, os artistas da Filmes de Plástico não se intimidam a percorrer gêneros diversos, como o realismo, o fantástico, a comédia,o drama, o policial.

Nada mira sua lente para a adolescente Bia, interpretada com altivez em pé no abismo pela rapper Clara Lima. Sempre evitei ler qualquer coisa sobre o filme antes de assisti-lo, e por isso ao saber sobre ele assistindo-o, já me rendi imediatamente pela genial utilização do próprio título.

Exatamente por essa maravilhosa surpresa de doce impacto, como dira Grace Passô em sua peça Por elise, que espanca doce, que não vou destrinchar sua história, mas apenas dizer que Gabriel Martins, ao mirar sua lente para uma adolescente em momento crucial de sua vida, mirou também para todo nós, adultos/idosos, ainda em suspenso nessa escolha ou vivenciando os resultados ainda dela.

Impossível não registrar a presença de dua atrizes habituais nas produções da Filmes de Plástico: Karine Telles mais uma vez arrebentando como a pedagoga high- tech; e Rejane Faria como a mãe de Bia, uma atriz de raiz teatral com atuações cada vez mais maduras e mais surpreendentes no cinema, não à toa marcando ótima presença em vários filmes. Nada conta ainda com uma presença arrebatadora de Pabline Santana, a chave para todo o filme.

Nada é mais um ponto luminoso na trajetória da Filmes de Plástico.

Registro (2017 MG), de Daniela Santana, é um filme experimental em que a diretora registra suas próprias "questões" com o cinema. Mais especificamente com o olho do cinema, a câmera.

Da forma como a cineasta construiu seu roteiro e a encenação dele, poderíamos, perfeitamente, pensar que o que se dá ali à nossa frente é uma história de amor. Só que, habilmente, ela já deixa claro em sua fala que sua digressão/confissão é para a própria câmera, e daí a sensação de história de amor permanece, ainda que com outros significados.

O terceiro filme da série, O golpe em 50 cortes ou A corte em 50 golpes, de Lucas Campolina (2017-MG), vale -se de áudios vazados que circundaram, e fundaram, o impeachment da Presidenta Dilma, para a construção da narrativa do recente golpe na democracia brasileira.

Por usar fragmentos dos áudios, o roteiro é, essencialmente, uma manipulação da fábula. Ainda que quem acompanhou de perto todo o golpe sabe que ele está ali inteiro. No entanto, o mais interessante no curta é que ainda que ele se valha só dessa matéria-prima básica, os áudios transcritos e falados, o que se vê ali é cinema. O que já diz muito de sua relevância.

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Como dito anteriormente, a Mostra Panorama -Série 1 exibiu quatro curtas, mas o Mulheres conferiu 2.

Vaca profana (2017, SP), de René Guerra, é um belo filme. E belo aqui entendido não apenas como uma difusa adjetivação, mas por ser filme totalmente ligado ao seu tempo, às questões urgentes que o tempo de hoje nos coloca, e, no caso de Vaca profana, a representação dos corpos trans em cena.

René Guerra coloca suas personagens dentro de uma ocupação, nas quais, como o próprio cineasta ressaltou na apresentação do filme e todos que acompanham a série de ocupações desfraldadas em todo o país sabemos, a mulher tem um papel fundamental nessa luta

E é nesse contexto que a mulher trans, a travesti Roberta Gretchen Coppola - excepcional -, e uma a mulher cis, Maeve Jinkings - a grande atriz atual do cinema brasileiro -, vão vivenciar suas histórias de mães e mulheres a partir da entrega de guarda definitiva de uma criança.

Em um momento em que travestis, mulheres trans e homens trans exigem seu direito à vida, ao trabalho e à expressão artística em Manifesto nacional , Vaca profana não só cumpre seu papel de ótimo cinema, como também o de um cinema com olhos atentos para o seu tempo e o registro e a discussão dele

A barca do sol (2017, MG), de Leonardo Amaral, é curta que dialoga com o anteriormente comentado Nada, pelo olhar para o universo adolescente às voltas com a definição da profissão a seguir, ainda que navegue por outra chave.

O filme acompanha uma turma de cinco estudantes que debandam de uma palestra, em tese para auxiliá-los na escolha do futuro, mas filmada como enfadonha, já tomando ponto de partida daí como a querer dizer, como em Nada, que escolhas de vida passam por lugares muito mais complexos do que uma cartilha.

A barca do sol passa quase a totalidade com o foco nos cinco estudantes para só ao final definir seu protagonismo, ainda que é no caminhar em círculos pela floresta - o que jamais aflige, pois não há sequer ambiência para encontros indesejáveis e sabemos que uma chamada de celular poderia por fim aquilo -, que o filme se aproxima ainda mais com a bia, de Nada, sobretudo na cena final daquele, em que a saída pode estar muito mais inacessível do que aparenta.

Leonardo Amaral repete em A barca do sol a dobradinha com a atriz Malu Ramos de Sandra espera - e ela aqui ela também como coroteirista. Ainda que não se aproxime do impacto de Sandra espera,  A barca do sol confirma o nome do cineasta como a ser seguido.

Arábia

O cineasta Affonso Uchôa já tinha impactado a Mostra de Cinema de Tiradentes como seu A vizinhança do tigre, filme vencedor à epoca da Mostra Aurora.

Agora, o cineasta retorna à Mostra, dessa vez codirigindo com João Dumans, o impressionante Arábia (2017), exibido em pré-estréia.

Uchôa e Dumans miram sua lente para um personagem invisível, ainda que seja ele a mais completa tradução e radiografia de todo um país.

Em Arábia acompanhamos as andanças de Cristiano, vivido de forma impressionante por Aristides de Sousa, o Juninho - Melhor Ator no Festival de Brasília. O personagem perambula por várias cidades mineiras, encara várias frentes de trabalho, encontra-se com vários personagens "invisíveis" como ele, encontra o amor e a impossibilidade de vivê-lo.

Valendo-se de um ótimo roteiro e direção, Arábia constroi sua história e nos apresenta seu personagem pontuado por uma magistral e melancólica versão original de Maria Bethânia para Três apitos, de Noel Rosa.

Arábia vale um texto só para ele - o que será feito -, e de antemão é preciso dizer que vale por mais de mil tratados sobre o Brasil e sua gente. 

Arábia não é só um dos melhores filmes feitos no país recentemente - Melhor Filme Júri Oficial, Melhor Filme Júri da Crítica, Melhor Montagem, Melhor Trilha Sonora, e o citado Melhor Ator no 50 Festival de Brasília - , como também emocionante, urgente e necessário.

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Mostra de Cinema de Tiradentes
Programação completa - www.cinematiradentes,com.br






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Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior