21a Mostra de Cinema de Tiradentes-Oitavo Dia
Atriz Julia Katharine de "Lembro mais dos corvos" (2018, SP), de Gustavo Vinagre - crédito: Leo Lara
No penúltimo dia, sexta, 26, da 21a Mostra de Cinema de Tiradentes, o Mulheres conferiu um debate e dois longas.
O Seminário Encontro com os Filmes é um dos destaques da programação da Mostra de Tiradentes, pois reúne realizadores, crítica e público para discutir os filmes vistos no dia anterior.
É um momento rico da programação, pois temos a oportunidade, enquanto o filme ainda está fresco na memória e no corpo, ouvir cineastas e equipes falarem dele, assim como também o crítico convidado.
Ainda que, muitas vezes, o filme que aparece no debate fique longe do assistido, e isso por três motivos. Primeiro que uma coisa é a ideia do filme, e outra é o que ele de fato é. Daí, muitas vezes o descompassado entre o que os cineastas se pretenderam a fazer e o que resultou disso. Noutras vezes, pela limitação ou campo de referência do espectador. E, por fim, muitas vezes os críticos convidados parecem estar mais interessados no que não está no filme do que ele propriamente dito.
O Mulheres conferiu o debate sobre a produção mineira Baixo centro (2018, MG), dirigido por Ewerton Belico e Samuel Marotta,, presentes na mesa, mais sua equipe.
O Mulheres assistiu ao debate no telão do lado de fora, no foyer do Cine Teatro Sesi, no Centro Cultural Yves Alves.
Baixo centro é filme potente e de estética elaboradíssima - o Mulheres registrou impressões sobre ele no texto de cobertura publicado na sexta, referente ao sexto dia da Mostra.
Dois incômodos do Mulheres, um registrado no texto - o roteiro diluído, e o outro não registrado - a ausência de travestis e trans no filme, não foram abordados no debate.
Como dito no texto de cobertura, a ideia de fragmentos e a construção dos personagens permearam a feitura do roteiro, ainda assim, há uma diluição em demasia nele que faz com que o filme se ressente disso um pouco, como se faltasse uma certa textura,
Já a ausência de travestis e trans, presenças marcante no baixo centro, o verdadeiro protagonista do filme, salta aos olhos. Há apenas uma cena que remete a esse universo, em que a personagem da estonteante Bárbara Colen está com uma aparente travesti interpretada por Diego Bagagal, em uma das cenas cinematográficas mais lindas de Colen no filme.
Afora as questões de representatividade trans abordadas em recente manifesto nacional, o espaço dedicado a esse universo se resume apenas a essa cena, em registro muito mais onírico do que a crueza desesperada que matiza todos os outros personagens do filme.
De resto, o debate foi interessante, com Ewerton Belico demonstrando erudição, mas sem afetação, para falar da construção do filme, e Samuel com complementações oportunas.
Mostra Aurora
A competitiva Mostra Aurora, voltada para cineastas com até terceiros filmes e que está um tanto fraca nessa edição, apresentou seus dois melhores filmes ontem - o terceiro é Baixo centro.
Lembro mais dos corvos (2018, SP) é um documentário paulista dirigido por Gustavo Vinagre. O filme mira toda a sua lente para um único personagem em cena, a atriz Julia Katharine.
Na apresentação do filme para a plateia do Cine-Tenda, Gustavo Vinagre contou que conheceu Julia quando estagiou em um escritório em que ela era a secretária. Que adorava conversar sobre cinema com ela, mas quando em hora de almoço não saia para comer com ela, pois tinha vergonha por ela ser uma mulher trans.
O ótimo e real depoimento ecoou na sala do cinema, sobretudo quando ele pediu que se tivesse alguma trans presente que levantasse a mão. Com o silêncio, ele disse então que aquela total ausência na plateia já dizia muito sobre esse universo, e que nós, cis presentes, deveríamos repensar sobre isso e lidar com o filme que seria exibido.
Julia Katharine se emocionou ao falar sobre o filme e sobre sua presença ali no palco da Mostra de Cinema de Tiradentes - mais tarde, já vendo o filme, o significado de sua emoção ganhou outras camadas, inclusive divertidas, pelo seu fascínio por cerimônias de premiações cinematográficas.
Lembro mais dos corvos é todo centrado em Julia Katharine, com ela falando diretamente para a câmera em resposta aos estímulos do diretor, fora de cena.
Cinéfila de carteirinha - seu próprio nome é uma homenagem à atriz Katharine Hepburn -, Julia fala sobre a importância do cinema em sua vida - "Minha mãe acredita de verdade que minha vida é uma encenação dos filmes que eu assisti" - diverte-se.
No relato, há passagens duras, como o abuso do tio-avô pedófilo,a surra que levou de colegas de escola, a experiência com a tentativa do recurso do silicone industrial, e a culpabilidade que a mãe lhe imputa pelo erros do casamento.
E há também passagens divertidas, como histórias da noite, o fascínio pelas cerimônias de premiação - "Sempre quis ser atriz só para ganhar prêmios" -, e o recadinho para o cineasta Lars Von Trier e seu Ninfomaníaca.
Lembro mais dos corvos tem uma aparente simplicidade, mas é filme de narrativa elaborada - o roteiro é assinado por Vinagre e por Júlia.
Além de contar, e nos apresentar, uma personagem fascinante, muito carismática ,riquíssima em nuances e uma atriz de muitos recursos - seus closes de melancolia sutil, mas profunda, são hipnotizantes -, é, mais que tudo, ótimo cinema.
A Mostra Aurora terminou sua programação de sete concorrentes - o vencedor será anunciado hoje à noite na cerimônia de encerramento - com a ótima produção paraíbana Rebento (2018, PB), dirigido por André Morais.
Rebento reafirma a ótima presença da produção paraíbana na 21a edição da Mostra de Tiradentes, já que outro grande filme da Paraíba exibido aqui, o longa de horror O nó do diabo, é um dos melhores filmes de toda a programação.
Rebento acompanha as andanças de um mulher que após cometer um ato radical, sai aparentemente sem rumo pela estrada, onde vai encontrando personagens marcantes.
O motor principal do filme é a absoluta entrega de sua protagonista, a atriz Ingrid Trigueiro, em performance absolutamente avassaladora.
Durante seu caminhar, ela vai encontrando outros personagens interessantes e interpretados por grandes atores, como Zezita Mattos e Fernando Teixeira.
A protagonista de Ingrid Trigueiro ora se chama Maria, noutra Rosa, e também Ana. Cada nome, e cada outra mulher, ainda que eternamente a mesma, está personificado em cada passagem de sua travessia de dor e de busca de amparo.
No trajeto de sua personagem, Rebento proporciona cenas de encontro perturbadores, como o de uma família de mulheres ruidosas que poderia estar perfeitamente em um filme de Ana Carolina; como também a inesperada, poética e também dilacerada Clara.
Um grande filme.
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21a Mostra de Cinema de Tiradentes
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