Eduardo Moreira e Renato Parara em cena de O lodo (2020), de Helvécio Ratton
Se tivesse realizado apenas o longa A dança dos bonecos (1986), o cineasta mineiro Helvécio Ratton já teria seu nome registrado com pompas na história do cinema brasileiro. Afinal, em um país que investiu muito menos na filmografia infantil como devia, A dança dos bonecos se impôs logo como um clássico instantâneo, pelo arrebatamento que causou, resultado de um rigor tanto do roteiro como da encenação. É mesmo um momento luminoso da nossa cinematografia.
E Helvécio fez ainda muito mais. Antes mesmo desse adorável longa, abordou o terrível Hospital Colônia de Barbacena no curta clássico Em nome da razão (1979). E continuou revisitando capítulos fundamentais de nossa história, como em Batismo de sangue (2006).
O mergulho na literatura é outra marca no cinema de Ratton. O cineasta, que já adaptou Eça de Queiroz em Amor & Cia (1998), debruça-se agora, em seu novo filme, em um outro petardo: o também mineiro Murilo Rubião.
Mestre da Literatura Fantástica, Murilo Rubião está entre os maiores escritores do país. E, o melhor de tudo, é que sua escrita se expande e cabe muito bem no cinema. Rafael Conde, outro importante cineasta mineiro, já tinha feito isso no ótimo curta O ex-mágico da Taberna Minhota (1996).
O lodo, novo filme de Helvécio Ratton, é uma adaptação do conto homônimo de Rubião. Na história, Manfredo, um analista de uma empresa de seguros, marca uma consulta com um psiquiatra, o dr. Pink, em busca de ajuda para curar seu repentino abatimento e desânimo com a vida. Questionado sobre sua infância, Manfredo, que busca uma solução prática e imediata, abandona a clínica e o tratamento. Mas o misterioso dr Pink vai persegui-lo e sua vida vira de ponta a cabeça.
Para contar sua visão sobre essa história, Helvécio Ratton reuniu um elenco mineiro de grandes atores. Aliás, é importante registrar que, ainda que já montou elencos com atores de outros estados, o que não é nenhum problema, como Patrícia Pillar - uma presença constante em seus primeiros filmes - e Marco Nanini, por exemplo, Ratton sempre olhou com atenção a cena mineira.
O Grupo Galpão é um patrimônio do país, e foi de lá que o cineasta trouxe nada menos que sete atores, incluindo o protagonista vivido por Eduardo Moreira. Há uma unidade de interpretação no filme, que vem não só desse grupo de atores, como também dos outros, como Renato Parara dando vida ao dr. Pink, em um misto de composição marcada por acentos carregados, quase canastra, com uma sutil crítica no subtexto da interpretação.
A partir do inferno que vira a vida de Manfredo, com um Eduardo Moreira pleno do seu ofício, O lodo vai colocando em cena as mazelas, os sentimentos obscuros e as práticas baixas do ser humano - machismo, misoginia, competição, puxada de tapete, oportunismo, egocentrismo.
É característica do Realismo Fantástico, o extraordinário invadir o ordinário sem pedir licença, e o roteiro do filme dá conta disso, e, sobretudo, com destaque pela fotografia clássica de Lauro Escorel.
O lodo reúne ótimas atrizes em seu elenco. Inês Peixoto, como a irmã invasiva, e Fernanda Viana, como a amante, tem as melhores aparições, ainda que o filme orbita, majoritariamente, pelo universo de poder masculino. Porém, a construção da personagem de Inês é mais bem resolvida, e aí não só pela atriz, mas pelo roteiro, que apresenta uma irmã em misto de sentimentos e atitudes, aparentemente, conflitantes e ocultos. Já a de Fernanda fica prejudicada, pois não há complexidade no roteiro para ela, apresentada como um mulher fútil, entediada e obcecada - dado ressaltado pelo colega de Manfredo, Xavier (Rodolfo Vaz), que comenta que o chefe sabe a mulher que tem. Ambas são reflexos de um olhar misógino, ainda que atormentado, do protagonista diante à erupção de seus sombrios recônditos, sentimentos e escolhas.
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23a Mostra de Cinema de Tiradentes
De 23 de janeiro a 1 de fevereiro
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