Crédito: Leo Lara/Universo Produção
A Cineop - Mostra de Cinema de Ouro Preto, nessa edição comemorativa de 15 anos e em formato virtual devido á pandemia da Covid-19, precisou se reinventar.
Tantos clamaram pelo meteoro, sobretudo a classe média enfastiada entre o apresuntado fatiado e o suco de polpa de fruta de caixinha, que ele veio. E veio na forma de pandemia sanitária, colocando de cabeça para baixo o mundo todo, ainda que, com sua habitual e tamanha arrogância e futilidade existencial, a maioria que clamou permanece inalterada.
Ainda assim, é preciso reinventar.
Não, reinventar não. Pois a roda também não se reinventa, ainda que o que mais se vê é gente achando que a está inventando, ela, a roda. Daí que também não há espaço para reinvenção, ainda que muitos se seduzem por esse canto de morte das sereias.
Se não há invento, se não há reinvento, o que há?
Não há.
Mas, parece ser ainda possível de, pelo menos, tentar olhar para si mesmo. O que, não é nada menos, que mirar o abismo.
E como no mais belo vinil de estúdio de Bethânia, com a corda esticada de ponta a ponta, a indagação sobre o abismo em arco-íris no verso imortal: "Perguntar-te-ão como atravessar a vida. Responde, como uma corda esticada sobre um abismo, belamente, cuidadosamente, impetuosamente".
Chico de Paula e Grazi Medrado vêm estendendo essa corda sobre o abismo na direção das performances audiovisuais que abrem as mostras da Universo Produção - Mostra de Cinema de Tiradentes, Cineop - Mostra de Ouro Preto, Mostra CineBH. E é exatamente por isso que vêm fazendo dessas aberturas momentos tão marcantes e inesquecíveis, alçando aberturas oficiais a um patamar verdadeiramente artístico, a anos-luz do que se vê habitualmente.
E se Chico, que veio antes, já injetava tônus e construção imagética nas aberturas, Grazi esculpiu de preto, de sangue, de beleza e de urgência os corpos em protagonismo no palco e na tela. A começar pelo seu próprio.
E ambos, com isso, vêm atravessando esse abismo belamente, cuidadosamente, impetuosamente.
Até então, quando entravamos na sala de cinema para as noites de abertura das mostras, seja na tenda gelada em Tiradentes, nas cadeiras belamente decadentes no Cine Vila Rica, ou ainda nas cadeiras impessoais do Cine Brasil, o que as performances dirigidas pelos dois faziam era nos colocar ao lado de Elis Regina dentro do carro engarrafado no trânsito para vivenciarmos uma transversal do tempo, e daí abstrair-se do entorno, o engarrafamento, e expandir junto ao proposto. Os corpos. O sangue nos corpos, a violência nos corpos, a transgressão libertária nos corpos, a beleza nos corpos. Ficávamos lá no escuro e nos apartávamos do mundo lá fora para que depois, ao sair, dependendo de cada um, interferir no exterior. Como Elis fez naquela sua transversal.
Agora, no que a performance audiovisual que abriu a 15a Cineop apresentou, o movimento foi o contrário. Exilados solitariamente só ou solitariamente sós em duplas, quartetos, sextetos e etc em nossas casas, o que, genialmente, os dois artistas fizeram foi nos levar para fora da sala de cinema, ainda que por ele. Para fora da nossa casa, para fora do auto-exílio imposto e construído. E o fora aqui não é por abstrações ou possíveis epifanias e madeleines que o cinema possa oferecer ao se assistir aos filmes. Não. O sair aqui foi sair mesmo, literalmente. E não foi também só o sair para o rolê, foi um sair impregnados de significados e significantes.
E se é para sair pelas mãos deles, é mais do que óbvio que são por aqueles corpos, corpos de sangue, corpos de violência, corpos libertários e transgressores, corpos de beleza. E pelo canto do povo de um lugar.
No material de divulgação, está sinalizado que a performance "apresenta em sons, imagens e movimentos o território Ouro Preto e Minas Gerais - mantendo a conexão do evento com a cidade Patrimônio da Humanidade". E vendo o exibido, a abertura traduziu e personificou com tônus e ímpeto essa premissa.
A Ouro Preto corporificada nas imagens projetadas na performance audiovisual é, para além da evocação da sua beleza estonteante, a Ouro Preto que respira em cada pedra de suas ruas o despenhadeiro que a traduz e traduzem todo um povo e toda uma cultura. Todo o sangue, a violência, a libertária transgressão, e a beleza do povo preto em levante contra sinhôs e sinhás, que, cada vez mais genocidas, teimam em sobreviver nesse estado de viver. Ainda que esse projeto, esse caminho, ao fim, seja, por si só, autofágico, auto-exterminador.
A altivez de Eda Costa e a sua precisão ao dizer e impregnar sílaba por sílaba "Todo passado é remorso" é como se, com a bandeira em punho, manchada em sangue e em iniquidades a todo um povo, erguesse e guiasse todo um levante construído em séculos a bradar uma saída possível. Um futuro ainda possível?
E um levante preto e preta conduzido por Eda Costa e seguido por Marcelino Xibil, Sérgio Pererê e May Mota, minha gente, é bom que se prepararem. Pois se é claro que o sol vai voltar a brilhar, que deixem o erê voltar para casa. E que para que possamos todas, todos e todes se atermos novamente um dia com a possibilidade de voltarmos a viver mais que sobreviver, que deixem então o erê brincar. Deixem o erê brilhar. Deixem o erê viver.
Com a trilha sempre marcante de Barulhista, a atuação de Eduardo Moreira, um dos grandes atores de sua geração, e a produção de Sílvia Ferreira, a performance audiovisual abriu os trabalhos da 15a Cineop em grande estilo.
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15a Cineop - Mostra de Cinema de Ouro Preto
De 3 a 7 de setembro de 2020 - Programação gratuita
cineop.com.br