Ano 20

9 Olhar de Cinema-Mostra Foco: Daniel Nolasco

Renata Carvalho e Leandro Faria Lelo em cena de Vento Seco (2020), de Daniel Nolasco
O 9o Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba está apresentando uma programação extensa com 78 filmes, entre curtas e longas, do cinema independente de várias partes do mundo. Dividida em mostras, uma delas é a Foco, que coloca em cena o cinema do diretor goiano Daniel Nolasco.

A Mostra Foco está exibindo os três longas de Daniel Nolasco: os documentários Paulistas (2017) e Mr Leather (2019); e a ficção Vento Seco (2020). Haverá ainda, no dia 13, uma Conversa Aberta com o cineasta, dentro da programação de seminários do Festival.

É bom ressaltar que as fronteiras entre documentário e ficção estão cada vez mais difusas, pois se contaminam e, muitas vezes, elementos do real de uma podem ser usadas no ficcional de outras, e isso dentro da obra de um  mesmo realizador.

Daniel Nolasco chamou atenção com os seus curtas: Urano (2013), Plutão (2015), Tatame (2016), Netuno (2017), Sr. Raposo (2018). A estreia em longas se dá em Paulistas.

No filme, o cineasta retorna às cidades do entorno de onde nasceu, Paulistas e Soledade, em Goiás, e registra seu olhar sobre como está não só a cidade como também seus moradores, e a relação destes com os filhos que retornam no período de férias.

Em cenário não diferente de muitas cidades do interior, o êxodo da juventude para os grandes centros em Paulistas impressiona, pelo quanto isso modificou a própria geografia do local, já que é habitada majoritariamente por pessoas mais velhas.

Paulistas coloca em cena dois personagens, Daniel e Samuel, e todo o entorno deles, família, amigos, namoradas, bailes, cidade. Há, na lente de Nolasco, tanto um registro de encantamento, mas com certo tom triste, sobre aquele universo, afinal são suas origens, como também uma denúncia sobre as condições em que a cidade e seus moradores vivem, assim como a natureza violentada pela usina hidrelétrica e a monocultura do agronegócio.

O cerrado irrompe na tela e faz contraponto entre a vida dos jovens e suas motocicletas, celulares, notebooks e fruição de "Game Of Thrones", e os pais  tendo que se virar com aquele novo estado de coisas, e autofágico, que redefiniu seu lugar no mundo. 

Paulistas impressiona pelo rigor na construção dos planos, e em nenhum momento faz daquela geografia impactante efeito cosmético, evidenciando a denúncia, mas sem perder um olhar de pertencimento, apesar das violentações ao habitat natural e humano.  Incomoda a forma como os animais são tratados, não pelo filme, mas pelas pessoas, ainda que saibamos que, infelizmente, é ainda cultura arraigada no país.

Mr Leather é documentário que focaliza a cena urbana em São Paulo a partir do universo Leather, formado pelas práticas fetichista e BSDM, a partir dos bastidores de um campeonato.

Um novo Mr Leather será escolhido, após o reinado pioneiro de Dom Barbudo, que depois de um ano passará a faixa para o campeão, que, por sua vez, representará o Brasil em Chicago. Dessa forma, o filme acompanha os quatro candidatos, ao mesmo tempo em que apresenta as particularidades daquele universo com depoimentos de quem orbita por ele e por encenações da prática.

A câmera documental de Nolasco aqui, ainda que se mantenha com rigor, deixa-se contaminar também pela cena, exclusivamente masculina, formada por ambientes noturnos, personagens vestidos em couro preto e acessórios característicos das práticas BSDM de relações sexuais consensuais de domínio, submissão e sadomasoquismo.

Há uma nítida construção do olhar gay para aquele universo, inclusive ativando a libido e despertando o tesão frente à algumas cenas do filme, para além de sua aparente finalidade de entender e registrar o que é aquilo tudo. 

A partir dos relatos dos quatro candidatos, e também de Dom Barbudo e de um integrante, Heitor, que realiza o seu filme, vamos não só conhecendo melhor aquilo tudo, como também acessando códigos que norteiam todos eles, e com reverberações que percebemos no olho de quem filma e também em nós, que assistimos.

Vento Seco, primeiro longa de ficção de Gabriel Nolasco, é o melhor de todos eles e impressiona ainda mais como o cineasta vem sofisticando seu estilo, ainda que, pelo menos até agora, mantém a unidade e coerência do que parece ser suas referências.

Mais uma vez estamos no Centro-Oeste, região natural de Nolasco, dessa vez dentro de uma indústria do agronegócio e seus efeitos devastadores sobre os moradores, e com foco sobre alguns trabalhadores que dividem o dia-a-dia no trabalho.

Sandro (Leandro Faria Lelo) é um deles, homem solitário que passa o dia inteiro no trabalho insalubre, e à noite monta quebra-cabeças, escuta programa de rádio com músicas românticas, e acorda cada dia mais com os lábios feridos devido ao tempo seco. 

Se as noites são geralmente solitárias, durante o dia ele divide seu espaço com a líder sindical e sua melhor amiga Paula (Renata Carvalho), e, sobretudo, com Ricardo (Allan Jacinto Santana), com quem estende o contato na mata em volta da indústria, em relações sexuais salpicadas de práticas de BSDM, envolvendo submissão e dominação. A temperatura sobe ainda mais com a chegada de novo colega de trabalho, Maicon (Rafael Theófilo), por quem Sandro fica fascinado, estabelecendo um triângulo amoroso de consequências imprevisíveis.

Em Vento Seco, Daniel Nolasco revisita o universo do filme anterior, Mr Leather, agora embutindo aquele imaginário na vida de seu personagem Sandro, que vive sonhando com figuras daquele universo e colocando em prática esse desejo nas suas relações com Ricardo.

O cineasta expande ainda mais fazendo, como em Paulistas, também um registro de denúncia contra o agronegócio, sobretudo a partir da morte de um dos empregados e da líder sindical Paula, interpretada maravilhosamente por Renata Carvalho, finalmente com um papel de destaque no cinema. Renata imprime, na medida certa, tanto a altivez necessária à uma líder em enfrentamento às condições precárias do trabalho, quanto a doçura, mas  sempre que necessário com tom crítico, na sua relação com Sandro.

É preciso fazer um parênteses aqui: Renata Carvalho é uma das atrizes mais importantes da cena atual, pois além do talento, é artista que se coloca em luta permanente a favor dos direitos de outras artistas. Se nos palcos já mostrou a que veio, cabe agora ao cinema projetar ainda mais o talento dessa artista-farol para a cena brasileira.

Vento  Seco tem ótimo roteiro, ótima direção, e conta ainda com a entrega sem pudores de seus atores, o que não só legitima toda a história, como injeta a pulsão necessária para que reconheçamos e mergulhemos sem rede de proteção em tudo aquilo que se descortina à nossa frente. 


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Serviço
9º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba
De 7 a 15 de outubro - filmes exibidos e programação completa no 
site olhardecinema. com.br
Ingresso: R$ 5 por filme 

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Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior