Cena de "Voltei!", de Glenda Nicácio e Ary Rosa
A 24a Mostra de Cinema de Tiradentes segue com sua programação extensa e gratuita até o dia 30 de janeiro. São vários recortes apresentados na programação, e um dos que o Mulheres mais gosta é a Mostra Olhos Livres.
Com o mesmo nome do blog do saudoso Carlos Reichenbach, a Olhos Livres faz uma homenagem a esse cineasta inesquecível e dono de uma das filmografias mais impactantes do cinema brasileiro, e que, além de profundo conhecedor do cinema, ter sido sempre generoso em compartilhar esse conhecimento e seus olhos livres e sem amarras com todas e todos que se aproximassem.
Não à tôa, é considerado pelo Mulheres do Cinema Brasileiro como o seu padrinho, pela força e pelo entusiasmo público com que nos reverenciou, inclusive com o Prêmio Especial Quepe do Comodoro em 2005, premiação que criou para reconhecer e dar visibilidade a toda a uma geração de críticos e endereços eletrônicos, como sites e blogs, que despontaram na década de 1990 e se reafirmaram nos anos 2000.
A Mostra Olhos Livres é competitiva, o vencedor é eleito pelo Júri Jovem, estudantes que passam por uma oficina intensa oferecida pela Mostra, e o finalista recebe o Prêmio Carlos Reichenbach. Na programação, filmes mais ousados, inventivos, sem amarras pré-concebidas, livres como o a nome da Mostra aponta.
Nesta 24a edição, os longas concorrentes são:
- Irmã (RS), de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes;
- Amador (GO/MG), de Cris Ventura;
- Subterrânea (RJ), de Pedro Urano;
- Nuhu yãg m? yõg hãm: Essa Terra é Nossa! (MG), de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero;
- Rodson ou (Onde o Sol não Tem Dó) (CE), de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra;
- Voltei! (BA), de Ary Rosa e Glenda Nicácio.
O Mulheres do Cinema Brasileiro já assistiu ao filme Rodson ou (Onde o Sol não Tem Dó), quando foi exibido na 14a CineBH. E nessa primeira cobertura da Olhos Livres conferiu Voltei! (BA), de Ary Rosa e Glenda Nicácio, e Irmã (RS), de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes - o Mulheres ainda vai assistir aos outros filmes e publicará os textos.
Filmes
Na história do cinema brasileiro temos algumas duplas que fizeram e vem fazendo história: José Antonio Garcia e Ícaro Martins, Gabriel Martins e Maurílio Martins, Juliana Rojas e Marco Dutra são alguns exemplos. Cada uma dessas duplas realizou alguns filmes notáveis e em suas diferentes propostas, seja em estética, gênero e tramas - essas duplas realizaram também filmes solos, e os Martins, na verdade, são mais solos que dupla..
Glenda Nicácio e Ary Rosa é mais uma dessas duplas incontornáveis do cinema brasileiro contemporâneo - o Mulheres do Cinema Brasileiro, por exemplo, sempre aguarda seus filmes e corre logo para conferi-los quando em exibição.
Glenda e Ary tem uma simbiose perfeita na tela e já nos legou grandes filmes, como os longas Café com canela, Ilha e Até o Fim - esse último, ainda que pouco reverenciado pela crítica no patamar que merecia, o Mulheres considerou o melhor filme de toda a Mostra de Cinema de Tiradentes do ano passado ao lado de Sertânia, de Geraldo Sarno.
Dito tudo isso, infelizmente essa maestria dos filmes anteriores não se deu em Voltei!
Estão lá as ótimas atrizes habituais Arlete Dias e Wal Diaz, está lá a ambiência toda própria do cinema dos dois, estão lá as personagens humaníssimas e com visões de mundo sempre interessantes. No entanto, dessa vez não funcionou em sua proposição..
O problema maior de Voltei! está no roteiro, assinado por Ary Rosa. Na verdade, nos diálogos. com frases muitas vezes pouco orgânicas e que as atrizes constroem/interpretam com dificuldade - Mary Dias se sai melhor.
A história é interessante e faz diálogo com o último filme, Até o Fim, de novo com as irmãs em volta da mesa em conversa pontuada por canções. Lá um acerto de contas do passado entre irmãs tendo como fio condutor a relação com o pai opressor. Aqui, de novo um acerto de contas, mas com o presente, tendo a mãe com figura emblemática, mas não mais um acerto entre as irmãs e sim delas com o país e suas posturas frente a ele.
Voltei! se remete ao passado da ditadura civil-militar para linkar-se com o presente de um Brasil em despenhadeiro governado por presidente fascista e genocida. É um olhar doloroso, urgente e desesperador para o momento atual, mas sem abrir mão da esperança, e de uma certeza, de que dias melhores virão.
A mensagem é oportuna, o filme tem cenas ótimas, mas ainda assim resulta em pouco cinema. Isso, sobretudo, quando se tem em mente o quanto a dupla de talentosos cineastas é capaz de oferecer.
Irmã é uma produção do Rio Grande do Sul dirigida e roteirizada por outra dupla: Luciana Mazeto e Vinícus Lopes. É uma ótima surpresa, em filme que aposta na relação de duas irmãs que saem de Porto Alegre, onde a mãe está morrendo, para encontrarem o pai no interior, que abandonou a família e se casou com outra mulher.
Nesse trajeto, o mais importante é a relação entre as duas, uma jovem ainda menor de idade e uma criança. Há, entre elas, um mundo todo próprio, com uma gramática que dividem quase em segredo, com direito a poderes sensoriais, telepatia, e, sobretudo, comunhão e amor.
A mais velha, uma adolescente cheia de mágoas com o pai, mas com gana de vida, quer a emancipação para seguir seu caminho livre com a irmã. A mais nova, uma criança de olhar curioso, mas triste, quer viver seu momento, seu querer, e suas descobertas particulares de forma intensa.
Irmã acerta exatamente em como roteiro e direção conseguem expressar em ideia e em estética esse mundo quase fabular em que as duas habitam e trafegam, em que a fantasia jamais fica refém ou se sobreponha ao real de suas vidas.
Irmã, inclusive, jamais aposta na fantasia, ou nos elementos que a comportam, como rota de fuga. Pelo contrário, há ali afirmação, pertencimento, visão e escolha de mundo. Belo filme!
****************
24a Mostra de Cinema de Tiradentes
De 22 a 30 de janeiro de 2021 - Programação gratuita
Informações e exibição - www,mostratiradentes.com.br