Cena de "O Cerco", de Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spíndola
Recorte sempre muito esperado na Mostra de Cinema de Tiradentes, a Mostra Aurora apresenta filmes inéditos e competitivos, de cineastas com até três longas na carreira.
A aparição da Mostra Aurora foi mesmo um acontecimento, oxigenou toda a vitrine de exposição de filmes mais radicais, seja em estética ou mesmo de narrativas. Se pudéssemos eleger um filme-síntese desse momento está o maravilhoso e impactante Sábado à noite (2007), de Ivo Lopes Araújo.
No entanto, com o passar das edições, foi se instalando uma incômoda impressão de que todos os filmes eram muito parecidos, o tão chamado "filmes com cara de festival". E quando a Mostra de Tiradentes criou a Mostra Olhos Livres, em homenagem ao cineasta Carlos Reichenbach, os caminhos pareceram, enfim, ter sido reconfigurados, e o conjunto se tornou recortes, de certa forma, complementares, ainda que com "vidas próprias" - O Mulheres tem uma preferência, inclusive, pela Olhos Livres no que vem sendo apresentado, mas sem perder o interesse na Aurora.
A 24a Mostra de Cinema de Tiradentes apresentou uma bela seleção na Aurora, seja pelas propostas estéticas e narrativas, seja por interpretações luminosas de algumas atrizes.
Açuçena, produção baiana dirigida por Isaac Donato, abriu a Mostra Aurora já em altíssimo ponto, em filme intrincado e sedutor. Já na abertura, quando a personagem, sem aparecer, narra passagem da infância e termina com a frase "Aí apareceu a Açucena", dá-se de cara do lado de cá, de quem assiste, o início de uma fruição de um caminhar todo próprio e que o filme vai construindo.
Não há, em Açucena, uma intenção explicativa. A narrativa, que é aparentemente tradicional, na verdade é toda permeada por signos a decifrar, por lacunas a preencher, e, sobretudo, por um mundo a se desvendar. Mas que não se pense que esse "enigma" ou mesmo esse mundo vão se materializar por completo à nossa frente durante a trajetória. Ao contrário, é o que está escondido, que pode até se alojar em um sentido prévio nosso de uma chave de cinema de mistério, que vai nos proporcionar uma fruição de encantamento, ao mesmo tempo de inquietação. Sobretudo porque a tal chave do mistério, ou do suspense como até o filme é catalogado, em que retemos os códigos prévios, é, na verdade, apenas um chiste, pois aqui não é um cinema de gênero, é muito mais que isso. Açucena é o mistério, não da vida, mas o de viver e da construção de mundos para que isso aconteça.
Esse sentimento e percepção do que se esconde estão também em Kevin, produção mineira dirigida por Joana Oliveira. O mote do filme poderia ser o mais convencional do mundo, com o reencontro físico, porque nunca distante apesar da distância continental, entre duas amigas. Uma é uma professora e diretora de cinema brasileira, a própria Joana, que depois de passar por dores intensas familiares, vai até Uganda em busca de seu Repouso do Guerreiro. Lá, está a outra personagem, Kevin, também professora, que depois de passar 20 anos na Alemanha - onde fez amizade e morou com Joana -, retorna para o seu país para uma realidade outra, mas fundante sua, onde vive com os três filhos pequenos, além de seus familiares.
O que nos toca em Kevin, pelo menos com o Mulheres foi assim, é, sobretudo, o não-dito. E aqui nem poderia se falar do "não-mostrado", pois esse não-dito está à mostra o tempo todo. Seja na expressão de dor de Joana ou na expressão altiva de Kevin, que, ainda que também banhada de dor profunda, encarna seu papel de Repouso com firmeza. Seja nos silêncios que engolem falas, não no sentido de interrupção, mas como configuração de signo existencial decifrado. Seja ainda nos silêncios de mundos opostos, uma é branca e outra preta, e que se convergem pela instauração de construção de afeto.
Já Oráculo e Eu, Empresa miram na solidão. Não na de falta de quem está em volta, mas da solidão de quem não encontra seu lugar no mundo. Mas como é preciso encontrar, pois senão, Como viver?, a reconfiguração e/ou decifração da paisagem interna e externa torna-se ato imperioso.
Oráculo, produção catarinense dirigida por Melissa Dullius e Gustavo Jahan, vale-se de planos-sequências, em que os personagens, além de nunca se encontrarem, estão muitos mais à mercê da geografia em que habitam e nos quais trafegam, do que por escolhas individuais de rotas. É como uma percepção materializada de tamanhos, como a sinalizar que aqueles personagens podem até "escapar" por meio de uma vontade, de um desejo, ou mesmo de sobrevivência, mas que, ainda assim, aquela geografia imutável estará sempre lá, para além deles, tornando-os , no máximo, náufragos em desatino ou contempladores em silêncio e dor.
Eu, Empresa, produção baiana dirigida por Leon Sampaio e Marcus Curvelo, por outro lado, vale-se, muitas vezes, do humor, para radiografar a mesma solidão, o desamparo do sem lugar no mundo, e, aqui, ainda como se a questionar: E há mundo? Porque para além da precariedade do trabalho e da vida, da busca pelo sucesso e pela fama, do individualismo, a dor incrustada aqui é a de procura por pertencimento. Mas pertencer a quê? O jovem Joder, interpretado por Curvelo, se vale de de uma contínua reafirmação de presença, inclusive pelas reiteiradas expressões do rosto e de gestos, para espacializar o vazio. Não só o de sua vida e de seu embate entre o fracasso e o sucesso, mas o vazio de alma instaurado entre um e outro.
Rosa Tirana, produção baiana dirigida por Rogério Sagui, revisita o sertão da miséria pela seca, mas não mais pela chave cinemanovista, nem tão pouco de reconfigurações desta, mas a do cordel materializado. Em busca de Nossa Senhora, que traria a chuva da sobrevivência, a Rosa criança é como a da cantiga infantil pela estrada afora, ainda que, já em sua gênese, seja nada contente. Perigo, solidariedade, pesadelo e redenção, são estações que a garota vai atravessar e vivenciar, para que a fábula se concretize e as linhas do cordel desfiadas em novelo se assentem.
O Cerco, produção carioca dirigida por Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spíndola, é filme labiríntico de grande impacto, seja pelo roteiro caudaloso e de imbricações sofisticadas, pela direção acertada a seis mãos, seja pela interpretação inteligente da protagonista Liliane Rovaris. Impressiona como o próprio título do filme se materializa por completo na narrativa, já que a personagem, em sua trajetória, vai sendo cerceada por diferentes agentes. E aí, sejam eles existenciais, como seu autoquestionamento sobre a vocação artística, a relação de opressão silenciosa com o ex-marido e a família deste; seja física como o ameaçador trio de adolescentes da vizinhança, a truculência da polícia, e o encontro inesperado com personagens dentro de casa. E, sobretudo, os acontecimentos e dores familiares do passado se materializando no presente e apontando um futuro incerto e inquietante.
O Cerco é filme notável e muito de sua força, para além do já dito, está em uma atriz em estado graça. Liliane Rovaris embute sutilezas e rigor em sua interpretação, que vai de expressões e gestos a todo um emaranhado corporal. É uma interpretação moderna, que não se vale em nenhum momento de recursos manjados - a presença dos adolescentes também impressiona pela força do conjunto, e toda a Aurora parece estar ali. Essa força de atriz também está em Clarissa Kistie, a protagonista de outro grande filme, A mesma parte de um homem, produção paranaense, dirigida por Ana Johann. Há muito que Kistie vem construindo uma carreira cinematográfica de destaque pelas suas composições meticulosas, como a guardar vulcões prestes a eclodirem mirados pela superfície, como a da complexa freira em Todos os mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, outro grande momento seu.
A mesma parte de um homem fricciona o estado de coisas entre homens e mulheres a partir de um modelo machista e abusivo estabelecido, e uma tentativa de reconciliação ilusória entre gêneros. Com roteiro assinado pela diretora Ana Johann e Alana Rodrigues, o filme aponta, mais que um caminho, um caminhar para aquelas mulheres, como se a sinalizar que esse caminhar só será possível a partir de uma união entre elas. Sobretudo a partir da premissa de enfrentar e não mais aceitar abusos em silêncios. E ainda que a chave feminista esteja muito bem colocada, A mesma parte de um homem nunca se torna panfletário, pois essa chave instaurada dá-se, antes de tudo, pelo domínio de cinema de sua realizadora e de suas intérpretes - além da presença sempre marcante e cheia de nuances de Irandhir.
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24a Mostra de Cinema de Tiradentes
De 22 a 30 de janeiro - Programação gratuita
Informações e exibição - www.mostratiradentes.com.br