Ano 20

"Walter Hugo Khouri, O Ensaio Singular

Considero Andrea Ormond e Inácio Araújo os maiores críticos vivos do cinema brasileiro. De estilos diversos, se ele tem como marca o registro sintético, em que em apenas uma frase cabe o mundo, ela tem a escrita farta, saborosa e repleta de significados, em que também cabe  o mundo. Os dois, cada um a seu modo, falam de filmes e de gentes de cinemas, ao mesmo tempo em que falam sobre a vida, o Brasil e sua história, e a humanidade.

Desde 2005,  Andrea se tornou ponto de encontro e de partida para os amantes do cinema brasileiro  com o seu indesviável blog "Estranho Encontro". Ela também escreve sobre cinema em geral em outras paragens, como em jornais, revistas eletrônicas e outras publicações. No entanto, é no seu olhar único para o cinema brasileiro que está o suprassumo da fortuna crítica de uma pensadora e pesquisadora singular, afiada, atenta, rigorosa e deliciosamente atrevida e desafiadora, tanto na escolha do objeto - o cinema popular é um capítulo à parte -, como na forma como olha, reflete e escreve sobre ele. É seu, disparado, o melhor texto atual sobre o cinema brasileiro, ao lado dos de Inácio, depois de tantos mestres que partiram: "Os textos têm que ser 'líveis'", já disse, marotamente, em um debate, o que é mais pura verdade incrustada em cada linha de um de seus escritos. Neles, vemos o filme, vemos o seu entorno, vemos o Brasil, vemos o outro e vemos a nós mesmos, refletindo, implacavelmente, o que queremos ver ou não e sem direito a retrato apodrecendo trancado no armário. E se tem um lá, ela jogou a chave no mato.

Se a partir dos romances urbanos de José de Alencar e de Machado de Assis, podemos conhecer todo um Rio de Janeiro do auge de sua época, com a Rua do Ouvidor como centro do mundo, nos registros de Andrea, podemos sentir os cheiros, as temperaturas, o ir e vir da urbe agitada, por vezes matreira, noutras violenta, e noutras ainda cheia de perplexidades, descobertas, desequilíbrios, encantamentos, perdições, encontros e danações. 

Tive a sorte de ser por ela abraçado logo no início da produção de reflexão cinematográfica na internet  - meu site é apenas um ano antes (maio de 2004) do blog dela -, "movimento"  elevado a alto patamar pelo saudoso cineasta Carlos Reichenbach, o Carlão, que, inclusive, criou o Prêmio Quepe do Comodoro para reconhecer e dar visibilidade à essa nova fortuna crítica digital - que também me abraçou, foi o meu maior incentivador e o meu site teve a honra de ser por ele premiado - , e por onde orbitaram gentes da melhor estirpe em blogs, sites, revistas eletrônicas. Como ela no Estranho Encontro, eu no site Mulheres do Cinema Brasileiro, e ambos na saudosa Revista Zingu!, publicação eletrônica com foco, sobretudo, no cinema popular, com uma turma da pesada regida pelos bambas Matheus Trunk e Gabriel Carneiro, na qual Andrea foi redatora e titular do Conselho Editorial, e eu colaborador, depois redator e editor. Na edição, meu orgulho maior foi ter criado e comandado um Dossiê completo sobre Walter Hugo Khouri, inclusive com textos sobre seus filmes perdidos e raros escritos por todos nós integrantes da Revista e também por convidadas e convidados, e sua atriz maior Lílian Lemmertz. Só me arrependo do nome que escolhi "O Autor e A Musa", pois hoje o termo Musa foi acertadamente ressignificado, e, realmente, a estupenda Lilian foi muito mais que isso, basta assistir qualquer um dos filmes dela com ele e com outros cineastas, tendo como exemplo o tamanho dela no "ficticio" "Paixão e Sombras", um duelo arrebatador entre uma personagem atriz e seu diretor - entre Lemmertz e Khouri?, certamente. 

Andrea vem construindo uma fortuna crítica admirável, e sua trilogia de ensaios sobre o cinema brasileiro é colossal : "Ensaios de Cinema Brasileiro - Dos filmes silenciosos à Pornochanchada"; "Ensaios de Cinema Brasileiro - Os anos 1980 e 1990", no qual tive a honra de escrever um texto sobre a autora; o volume 3 será  publicado. Importante também registrar sua parceira estreita e fundamental com o pesquisador, escritor, e seu marido, o mestre Carlos Ormond.

Agora, Andrea Ormond acabou de lançar mais uma joia, daquelas que você lê em uma ou duas sentadas e fica completamente em suas mãos. Estou falando de "Walter Hugo Khouri, O Ensaio Singular", em que ela revisita o cineasta e sua obra, refazendo rotas, renovando olhares sobre ele, sobre sua obra, e também sobre ela própria, revendo seus escritos e registros. 

Walter Hugo Khouri é meu cineasta predileto. Está no panteão dos maiores do cinema brasileiro e mundial, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ana Carolina, Zózimo Bulbul, J.B. Tanko, Jean Garret, Ozualdo Candeias e Antonio Calmon. E é  sobre o seu novo livro, que Andrea concedeu a entrevista abaixo aqui para o Mulheres do Cinema Brasileiro. 

Comprem o livro, seja em sua versão digital ou física, e vejam tanto lá como aqui, se ela não é mesmo uma danadinha. Boa leitura!


Mulheres do Cinema Brasileiro: Além de ser contado, o cinema brasileiro precisa também ser recontado sempre. Você tem contribuído enormemente para isso nessas duas raias com várias publicações, como no seu indesviável blog Estranho Encontro, em várias revistas, jornais, mostras, e no seu estupendo projeto da trilogia de livros sobre a nossa cinematografia. O que te move a trilhar esses caminhos? 

Andrea Ormond: O que me move, inicialmente, é o amor pelo cinema e pela escrita. Escrever, pesquisar sobre o cinema brasileiro em particular, é um projeto de vida que carrego há 30 anos. Estudei Literatura e Direito na PUC-Rio, escrevo livros sobre outros temas, sou servidora pública federal. Mas, dentro dessa diversidade, dessa multiformação, os filmes sempre estão presentes.  

Tem gente que diz que "ama o cinema". Ok, é válido, mas eu amo estudar os filmes e os processos sociais, artísticos e históricos que os movem. Meu campo de interesses em um filme vai além da qualidade e do exercício da cinefilia. É a vontade de encontrar biografias interessantes, refletir sobre a história do país naquele acontecimento que é uma produção artística.  

E curto a ideia do Antônio Moniz Viana, de que para ser um bom crítico de cinema, você deve ser médico, advogado, professor. Ter outros meios de vida sempre me permitiu escrever e pesquisar com mais atenção e liberdade. Entre "atenção e liberdade" existe um paradoxo, que alimenta minha visão das coisas. 

MCB: Seu olhar e sua escrita para o cinema são únicos, pois alia o olhar rigoroso da pesquisadora à uma escrita saborosa como crítica. E é também sua marca, uma radiografia surpreendente, rica nos detalhes e nas pontes que faz, entre o filme ou o período, autor, movimentos de cinema e etc, ao contexto da época de realização dessas obras. Alguns críticos se atém intrinsecamente aos filmes, você a eles e também ao seu entorno. E com uma escrita sedutora, que já definiu uma vez em um debate que assisti e no qual disse: " Os textos têm que ser 'líveis'". Um filme basta por si mesmo ou é fundamental olhá-lo dentro de um contexto da época? É isso mesmo? Poderia falar um pouco sobre isso? 

AO: Um filme precisa ser um filme antes de tudo, assim como um texto precisa ser "lível", ou seja, ambos precisam informar e cativar o público através de técnica e criatividade.

Por outro lado, filmes e textos bailam no tempo, nunca estarão isolados do momento. Aí é que entram a análise social, as pontes com o mundo, as lutas políticas. E a vontade de juntar todos esses processos em uma retrospectiva prazerosa. Acredito na arte e na crítica como sujeitos atuantes da história presente, passada e futura. O que um filme de 1950 tem a nos dizer hoje? O que dirá no futuro? Levantando o véu que o cerca, podemos chegar a ótimas conclusões

MCB: Você já tem uma caudalosa produção de registros sobre a obra de Walter Hugo Khouri, um Velho Novo Camarada. O que te faz voltar continuamente a ele e à sua obra, que, inclusive, dá nome ao seu blog?

AO: Se você reparar bem, já escrevi mais sobre os diretores do Cinema Novo, sobre as comédias brasileiras ou sobre a Boca do Lixo, do que sobre o Khouri. O nome do blog é de um filme khouriano, mas surgiu originalmente como uma metáfora divertida, bem típica daquela época dos blogs, 2005, 2006.  

Tenho certeza de que o Khouri foi, no longo período de 1964 a 1978, o mais notável cineasta latino-americano e um dos grandes gênios do cinema mundial. Falava português, filmava no Brasil. Um artista seguro do que fazia, e que teve uma postura bastante discordante sobre o que achavam dele. Mesmo quando fazia concessões, era dentro de seus próprios termos. Não esteve sempre correto, pode parecer reacionário ou antiquado, mas criou uma obra de enorme coerência. 

Passei anos pensando nisso, até que o Marcelo Miranda me convidou para escrever um texto sobre o Khouri na revista Abismu. Comecei a escrever, fui escrevendo, escrevendo e, quando vi, tinha o livro pronto em mãos. Quero fazer o mesmo com outros diretores: Christensen, Jean Garrett, Alberto Salvá, Nelson Pereira dos Santos. Cada um terá seu livro próprio, à parte da trilogia dos Ensaios.

MCB: Li seu novo livro, "Walter Hugo Khouri,O Ensaio Singular" na versão virtual em duas sentadas. Radiografia exata de seu estilo: muita informação e reflexão em linguagem prazerosa. Nele, você revisita, inclusive, o seu olhar para seus registros anteriores sobre os filmes dele, como é o caso do belo "As Deusas" . O que o futuro leitor pode esperar desse seu novo livro? 

AO: Eu precisava olhar a obra de Khouri no todo, contextualizá-la dentro do cinema brasileiro e latino-americano, contar um pouco aos leitores da minha própria experiência com o universo do diretor. O livro é uma revisão, um acerto de contas entre uma estudiosa e seu objeto de estudo. Note que eu não quis "zerar" o Khouri, escrever uma biografia do homem ou virar coach de cinema. Sou eu, Andrea, o leitor e os filmes, conversando. A gente pode falar sobre ETs, sobre feminismo, sobre sexo explícito, sobre a vida brasileira. Mas é uma prosa, em que Khouri e o que gira em volta dele são o assunto principal.

MCB: Muitas vezes, críticos e pesquisadores se arvoram em se autoproclamarem "descobridores" e/ou "explicadores" de uma obra, um autor, um movimento. O que pensa sobre isso? 

AO: Fico com aquela frase: "Os deuses morreram de rir quando um deles disse que era o único". Acho que muitos brasileiros têm uma relação tóxica, predatória com a cultura. Ou ela é vista como descartável, ou como escada de alpinismo social. Se alguém achar que vai "descobrir" o autor, ou "desvendar seus mistérios", está brincando errado.  

A gente pode pensar sobre cinema, escrever milhares de páginas sobre filmes e diretores, que sempre restará o mistério último: aquele que estava na experiência do diretor, na expressão da atriz, na ideia do produtor. Conversei muito com o Mauro Alice, por exemplo, e ele tinha impressões totalmente diferentes das minhas sobre os filmes que montou. Sentei, aprendi e continuarei a aprender. O que Mauro dizia sobre os filmes do Khouri pré "Noite Vazia", por exemplo, era cirúrgico e brilhante. Conto isso no livro. 

O que nós, de 2024, podemos fazer é dar nossa contribuição, acrescentar ilustrações, dados de pesquisa. Mas sempre com a ideia de que fazemos parte do fluxo, que não começa nem termina em nós. Quase tudo que sei sobre o Khouri aprendi com os outros e dou crédito a eles. Estão lá nos livros, nas entrevistas que fiz.  

A parte que pensei sozinha existe, porém não chancela um papel de profetisa, coach ou pastora. Respeito Ely Azeredo, José Carlos Avellar, Renato Pucci. Falaram com propriedade de Khouri, bem antes de eu aprender a ler. 

"Vou ver o que a Andrea aprontou dessa vez", é o que quero que meus leitores pensem de mim. E faço blog, livros, entrevistas sem pedir nada em troca. Um like, um "obrigado" ou "conheci por causa do seu texto", já me deixam feliz.

MCB: Neste Ensaio Singular, você olha para o Khouri e para o cinema dele e esse olhar se dá  no contexto também  do cinema latino-americano. Lá, você  explica esse recorte de olhar, mas gostaria que falasse aqui o que te trouxe de descoberta ou redescoberta, inserindo o cinema do Khouri e ele próprio lado a lado com esses outros autores e filmografias latinas.

AO: O cinema latino-americano é riquíssimo. E o Brasil faz parte desse contexto, embora ignore totalmente. O estudante de cinema vai assistir a mil filmes europeus, norte-americanos, mas vai morrer sem saber quem foi David Kohon e Sergio Renan. Costumo brincar que no dia em que os filmes argentinos e mexicanos do século XX forem todos legendados em português, e os filmes brasileiros em espanhol, haverá um susto coletivo, do México à Patagônia.  

O breve exercício de comparação e contextualização que fiz no "Ensaio Singular" é no intuito de chamar atenção ao fato de que o Khouri não era uma ilha. Dialoga com outros cineastas brasileiros e latino-americanos, possivelmente até bem mais do que com europeus.

MCB: Para finalizar, dessa sua nova revisitacao à obra do Khouri, você poderia destacar algumas atrizes, e o porquê, que reconfirmaram ou não o seu olhar para elas na galeria Khoriana? 

AO: Outro dia participei de uma palestra sobre "Praça Saens Peña", o filme do Vinícius Reis, e estava presente a Maria Padilha. Fiquei pensando: essa mulher é khouriana. Que grande trabalho ela teria feito em "Paixão Perdida" ou "Amor Voraz", no Khouri dos anos 1980 e 90. Outra absolutamente khouriana é a Rafaela Mandelli. Tenho muito disso, olhar uma atriz e pensá-la dirigida pelo Khouri. 

Sou monogâmica, casada para sempre com meu marido, mas também sou bissexual. Não vejo problemas em dizer isso. Entendo o encantamento que o Khouri tinha em relação às mulheres, ao feminino. Quando ele filma a Nicole Puzzi, de lingerie e salto alto, caminhando por um quarto, é óbvio que aquilo dá tesão em quem vê. Por outro lado, Khouri evocava algo além desse prazer imediatista. A Nicole de lingerie e salto, jovem e linda como uma santa, é também manifestação transcendente. Um breve momento do paraíso. A mulher khouriana é a presença de Deus na Terra, e os Marcelos Rondis são o mau uso da ferramenta divina. 

Dito isso, todas as atrizes sobrevivem a uma revisão. Os homens, os cenários, os temas envelheceram. As mulheres, não. Khouri compreendia o eterno poder gerador e regenerador da mulher. É mais uma das razões pelas quais o admiro. 


A entrevista para essa matéria foi realizada via e-mail no dia 8 de dezembro de 2023.

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 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior