Ano 20

Memórias da Boca

Alfredo Sternheim
Vera Fischer, Helena Ramos, Kate Hansen, Elisabeth Hartmann, Neide Ribeiro, Sandra Bréa, Lola Brah, Rossana Ghessa, Sonia Garcia, Nádia Destro, Zilda Mayo, Sandra Graffi, Zélia Diniz, Meiry Vieira, Ivete Bonfá, Gisa Della Mare, Aryadne de Lima, Sandra Midori, Cláudia Wonder, Débora Muniz. Essas são apenas algumas musas da Boca do Lixo que Alfredo Sternheim dirigiu em sua carreira. Talentosíssimo, ele é um dos sinônimos do melhor do que já foi feito no cinema popular brasileiro.

Alfredo Sternheim começou em grande estilo como assistente de Walter Hugo Khouri – na modesta opinião desse editor nosso maior cineasta – em A ilha (1962) e Noite vazia (1964). Estreia em longas com o ótimo Paixão na praia (1971), e a partir daí constrói carreira notável, em filmes como Anjo loiro (1972), Pureza proibida (1974), Mulher desejada (1978), Herança dos devassos (1979), Corpo devasso (1980), Violência na carne (1981), Brisas do Amor (1983). É também importante e destacado crítico de cinema.

A boa notícia é que Alfredo Sternheim está de volta ao cinema com Amigas para sempre, com as deusas Elisabeth Hartmann e Neide Ribeiro, que além de musas de Alfredo são também amigas de sua vida inteira. Seu filme é um dos oito episódios do longa Memórias da Boca, formado por ficção e documentário e que homenageia e revive os tempos áureos da Boca do Lixo – os outros cineastas são Mario Vaz Filho, Valdir Baptista, Tony D´Ciambra, Diogo Gomes dos Santos, Clery Cunha, José Mojica Marins e Diomédio Piskator - Memórias da Boca estreia no próximo dia 10/12 em São Paulo, no Caixa Belas Artes.

O Mulheres do Cinema Brasileiro conversou com o cineasta e crítico Alfredo Sternheim por email em entrevista que o homenageia, saúda o filme Memórias da Boca e todos os realizadores, e, claro, todas as musas da Boca do Lixo.


Mulheres do Cinema Brasileiro: O filme Memórias da Boca é uma produção do Diomédio Piskator, não é isso? Fale um pouco sobre esse projeto.

Alfredo Sternheim: O Diomédio criou o Instituto Ozualdo Candeias para preservar e resgatar o cinema feito na Boca do Lixo em São Paulo e concebeu esse filme no sentido de transmitir o espírito dessa época. Eram para ser dez episódios, feitos livremente pelos cineastas convidados.  Daí mesclar documentário e ficção. 

MCB: Como se deu o convite para você participar do filme?

AS: O Diomédio fez um convite, colocando claro a falta de recursos. Teria que ser algo fácil de produção. Eu propus a comédia Amigas para Sempre e escrevi o roteiro já pensando nas duas atrizes, Elisabeth Hartmann e Neide Ribeiro, com quem fiz muitos filmes. A realização foi rápida, mas finalizar todo o longa, não. Três cineastas que iriam participar morreram: Carlão Reichenbach, Pio Zamuner e Chico Cavalcanti. Depois, conseguir exibição foi uma batalha para Diomédio e outros. Eu brincava com ele, principalmente em época em que andei com problemas. Dizia que se o lançamento demorasse muito o filme teria que mudar o título para "In memorian da Boca". Pela minha idade, não dava para esperar 20 anos, como fez alguém. É verdade que, no nosso caso, não havia verba pública nos sustentado. Não havia verba.

MCB: Como foi voltar à direção depois de tanto tempo?

AS: Emocionante. Na véspera, mal dormi. Mas, assim que comecei a rodar com o excelente Fabrício Cavalcanti na iluminação, fiquei com a impressão que nunca tinha parado de filmar. Veio uma energia que, há muito, eu não sentia.  O ruim foram os dias seguintes: eu queria continuar. Diante a impossibilidade, entrei em depressão, achei que ia ser internado. Como Norma Desmond. Mas, passou. 

MCB: Com as conquistas tecnológicas, artistas que não conseguiam ter acesso à arte cara de realização de cinema agora estão podendo realizar suas produções. Podemos citar toda uma geração no chamado Cinema de Bordas. Como foi para você dirigir nesse novo cenário?´

AS: Não sei, acho que não me senti nesse cenário. Me senti no mesmo clima de antes, porém com nova e maravilhosa tecnologia. É fantástico você filmar com som (algo que nunca consegui na Boca), ver o resultado na hora e sem o peso do custo do negativo. A nova geração não sabe como o preço do negativo era um elemento extremamente repressor para a criatividade. Não havia mecenato oficial e o produtor só nos dava x latas e x dias de filmagem; fazer filmes nessas condições não era fácil. Por isso, eu e outros diretores da Boca somos muito mais racionais do que muita gente que se formou em universidades.  

MCB: Com as Leis de Incentivo, vemos orçamentos cada vez mais altos para a realização de filmes. Como você vê isso?

AS: A resposta completa o que disse acima. Sem as leis de incentivo, só com dinheiro privado, o pessoal da Boca (eu inclusive) era extremamente racional na realização dos filmes. Além disso, existia a preocupação com a clareza de linguagem, a comunicação com o público. Hoje, não. Com as leis do incentivo, existem muitos cineastas acomodados no dinheiro fácil e alto que estão pouco se lixando para a resposta do público. A preocupação é levar o filme a algum festival. E nesse ponto, o Brasil facilita: existem mais de 100 festivais. Eles ajudam a divulgar o filme brasileiro, a acirrar o aumento de público? Não. Enfim, fracassar não é vergonha. Mas é uma vergonha, um absurdo que, em meio de 100 lançamentos nacionais (em 2014), apenas 10 tenham tido rendas que amortizassem seus altos custos. Custos e gastos com dinheiro público (lei da renúncia fiscal). Com as novas tecnologias, o filme brasileiro não podia custar tão caro. Se está caro é porque tem gente querendo levar vantagem em pró-labore, etc. Casos como de Chatô são vergonhosos. Quem foi o irresponsável que deu cerca de 8 milhões (32 corrigidos) para um estreante fazer um longa? A grana dava para três ou quatro que teriam sido concluídos e entregues em bem menos tempo. O sistema precisa ser mudado. 

MCB: Fale sobre a importância da Boca do Lixo para a história do cinema brasileiro e como foi reviver todo esse universo, já que o filme é uma homenagem a ela.

AS: Ainda bem que existem críticos como você e outros que, nos últimos dez anos, têm procurado resgatar o cinema da Boca e o cinema do Rio, sem apego ao medalhonismo oficial. O cinema da Boca foi extremamente diversificado, mas muitos por razões que aqui não cabem, sempre o desqualificaram sob o rótulo de pornochanchada. Odeio esse rótulo. Esses caras esquecem que existiu muita diversidade no cinema da Boca. Basta ver a obra de cineastas que lá trabalharam: Ozualdo Candeias, Reichenbach, Sylvio Back, Fauzi Mansur, Clery Cunha, José Mojica Marins, Jean Garrett, Carlos Coimbra, Juan Bajon, Icaro Garcia... O Khouri acabou lá. Os produtores da Boca deram respaldo a esses e outros, Anselmo Duarte fez o seu 2º longa, O Pagador de Promessas que é, até hoje, o único filme premiado com a Palma de Ouro. Haja diversidade.  O cinema da Boca merece respeito e mais estudos.  Mas foi emocionante reviver esse universo. Apenas, triste com alguns impedimentos que ocorreram (as mortes citadas).

MCB: Conte para nós como foi a realização do seu episódio Amigas para sempre. No filme, você trabalha com duas musas da Boca e de seu cinema, que inclusive são grandes amigas suas. Como foi voltar a trabalhar com as grandes atrizes Elisabeth Hartmann e Neide Ribeiro.

AS: Foi fácil. Consegui as duas atrizes e amigas, Elisabeth Hartmann e Neide Ribeiro. Ambas talentosas e colaboradoras.  Foi uma festa voltar a trabalhar com elas.

MCB: Você acompanhou a realização dos outros episódios? Como foi o reencontro com antigos parceiros do dia-a-dia na Boca?

AS: Não, não acompanhei.

MCB: A Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema divulgou uma lista que vem causando polêmica sobre os “100 Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos”, em que, mais uma vez, deixa de fora grande parte da produção cinematográfica brasileira, sobretudo o cinema popular. O que você pensa sobre isso?

AS: Achei a lista reveladora da péssima condição da crítica do Brasil. Para fazer essa lista, a associação deveria ter se organizado com a Cinemateca e proposto uma revisão para os seus membros, na maioria de jovens. Tenho quase a certeza que, muitos deles, não viram nenhum filme de Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro mais festejado no exterior e que aqui, dirigiu uns três longas. Simão o caolho é estupendo. Também, não viram produções da Cinédia, como O ébrio, e de pioneiros como Jose Medina (feitos por volta de 1920). E filmes de Burle na Atlântida. Esqueceram Salce (Vera Cruz). Convivo com críticos em São Paulo e quase nenhum deles pediu para ver alguns de meus filmes. E não parecem conhecer outros diretores da Boca e do Rio (Afrânio Vital, Pedro Camargo, Róvai) que mereciam ter um filme na lista dos 100. Em vez disso, cinco Glauber, dois do Karin, três do iconoclasta Rogério... três do Walter Salles. E um filme recente, com ótimo roteiro e péssima direção: Que horas é volta? Tipo do filme que não valoriza os intérpretes, o deixa de costa por um bom tempo.  Entre os filmes recentes tem os magníficos Saneamento Básico, Redentor e Hoje eu quero voltar sozinho.

MCB: Vou te dar um pouco de trabalho a mais, mas gostaria que dissesse em algumas linhas sobre algumas musas da Boca dirigidas por você. 

AS: Acho que vou me repetir, posso te pedir para não falar de nenhuma delas? Eu sou tipo do diretor que sempre amou os artistas, homens e mulheres. E esse amor se fazia através de ângulos e soluções de cinema que os valorizasse.  Quase todos foram maravilhosos, receptivos, tive muita sorte.  E com alguns poucos, ainda mantenho relações afetuosas intensas. 

MCB: O filme vai estrear no dia 10 em São Paulo, no Caixa Belas Artes. Qual a expectativa de vocês? Vai ser lançado em outras cidade e capitais?

AS: Ainda não sei.

MCB: Muito obrigado pela entrevista.


Entrevista realizada por email em 5 de dezembro de 2015.

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Sala 
 Betty Faria
Com amor profundo pelo cinema, premiada em vários festivais no Brasil e no exterior