Exibição de Através da Sombra, 2015, de Walter Lima Jr - Foto Leo Lara
Na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes ontem, 23, foi hora de agenda apertada. Além dos dois debates, o Mulheres conferiu uma sessão de curtas da mostra Panorama e dois longas.
Foram exibidos na Série 1 da Panorama três curtas: Lembranças de Mayo (2015), de Flávio C. Von Sperling; Tatame (2015), de Felipe Fernandes e Daniel Nolasco; e Quintal (2015), de André Novais Oliveira.
Produção mineira, da El Reno Fitas, dirigida por Flamingo, Lembranças de Mayo é filme que não só se sustenta na revisão, como também cresce. Uma leitura apressada tenderia a situar o filme apenas no escaninho da homenagem à mítica Boca do Lixo, afinal aquele universo está todo lá, não só no protagonismo para Nicole Puzzi e Cláudio Cunha, nas musas exibidas no vídeo – Aldine Muller, Zilda Mayo, Helena Ramos, e a própria Puzzi -, e Zilda Mayo, evocada no nome da personagem de Nicole e no próprio nome do filme.
Só que Lembranças de Mayo vai além. Mais do que um cineasta homenageando musas e aquele polo de produção de cinema popular, o filme coloca o próprio cineasta em cena. E aí não estamos falando de seus trinados na banda "Insetos do Amor" que abre o filme, mas de uma identidade fílmica revelada e representada na tela. Ou seja, fosse Flamingo um homem de cinema dos anos 1970 e 80 seu lugar de pertencimento, produção, identificação e expressão poderia ser perfeitamente a Boca do Lixo.
Sabe aqueles cantores e cantoras que gravam música popular por um viés tropicalista? Ou seja, as famosas – e muitas vezes malfadadas releituras – que jamais conseguem roçar nem de leve a “verdade popular” de seu objeto? Pois então, esse tipo de registro, que é válido e muitas vezes importante – a Tropicália está toda aí para comprovar isso -, não é, pelo menos não me parece, ser a praia de Flamingo. O cineasta escolheu o universo da Boca não só para fazer uma homenagem – o que faz também -, mas porque se reconhece ali. E aí não é releitura, não é reapropriação, não é referência e nem reverência, é verdade natural.
Daquelas que nos faz imaginar o jovem cineasta negociando com aqueles produtores da Rua do Triunfo no Bar Soberano para botar uma grana no seu filme, tomando cachaça ou cerveja com eles, e discutindo quais musas iriam elencar para seu filme. Ou seja, uma conversa entre pares e não como o estrangeiro que “não gostou da Baía da Guanabara”.
E é essa verdade o mais bonito de ser ver em Lembranças de Mayo. Isso, claro, sem jamais deixar de considerar que maravilha que é ver a deusa Nicole Puzzi de volta à telona – seu ar zombeteiro e divertido na relação com o sogro, e os olhos marejados na cena de definição de seu destino -, e a presença inesquecível e divertidíssima de Cláudio Cunha, saudosíssimo, e impagável em seu último filme.
Tatame, o curta carioca, atinge ou, pelo menos, evoca as nossas reminiscências de Verdugo e Ted Boy Marino – claro que para os da minha geração –, mesmo que os personagens do filme, ainda que auto-ironicamente, não se furtem a desdenhar de quem os classifiquem apenas como “aqueles da luta livre”.
O filme de Felipe Fernandes e Daniel Nolasco injetam subversão o tempo inteiro durante o mostrado, seja no mascarado lutador andando de metrô ou no roça gay entre um dos lutadores e o namorado (cliente?) pauzudo, além de brincar com os procedimentos técnicos como o uso do som, que nos faz vislumbrar balões de “poft” “zump” e “Croft” nas porradas trocadas entre os lutadores.
Em Quintal, André Novais Oliveira apresenta um novo corredor de registro para o seu cinema, afinal é um filme que se vale do fantástico, aqui da ficção científica, mesmo que novamente escale seus pais para encarnarem seus personagens.
Mas basta uma olhada para trás e ver sua solução estética para o seu notável curta Fantasmas, em que imagem e áudio são reconfigurados de forma genial, ou mesmo a caixa de sombras do também notável Pouco mais de um mês, para reconhecermos o quanto esse universo do extraordinário – mesmo que não pleno – sempre invade o ordinário em seus filmes.
A grande novidade aqui seja talvez o uso da leveza cômica, realmente ausente de seus outros filmes. E que ganha um significado maior por serem os atores os pais do cineasta. Afinal, no extra-campo, diverte essa ideia de que um filho crie personagens para os pais, fazendo-os embarcar, como nesse caso, em universo que alia a ficção científica ao pornográfico.
Ainda assim, mesmo em Quintal, essa chave está reconfigurada por um olhar muito particular de Novais, um realizador que vem, a cada filme, desenvolvendo um cinema cada vez mais único e revelador na escolha de seus caminhos.
Longas
A programação de longas da noite começou no Cine-Tenda com a exibição de Futuro junho, de Maria Augusta Ramos. Documentarista de trajetória importante e premiada, a cineasta já realizou trabalhos destacados como os longas Justiça (2004) e Juízo (2007).
Em Futuro Junho a cineasta mira sua lente para o centro nervoso de São Paulo focalizando personagens que circulam e trafegam pela famosa e decantada babel de concreto. Todos eles em um momento emblemático das tensões políticas e sociais que foi a pré- Copa do Mundo no país.
Daí, a tela é inundada por um espaço urbano que ferve, seja nas passeatas contra a copa, seja na greve dos metroviários, ou nos infernais deslocamentos diários – de carro, metrô, motocicleta. Tudo isso ao mesmo tempo em que personagens de diferentes estratos sociais vivenciam seus dramas que, ainda que particulares e pessoais, jamais descontextualizados do que acontece em torno – isso quando não estão no próprio olho do furacão.
Nem sempre o filme consegue equacionar o pretendido e o mostrado, ainda assim há bons momentos, como a acachapante cena do metalúrgico assistindo sozinho na fábrica uma partida da Copa, em que a câmera exclui a televisão e mesmo boa parte do seu entorno, e faz um raio x, ali naquela cena, de sua solidão de excluído em uma massa de excluídos de todo um povo e um país.
Através da sombra foi o segundo longa exibido no Cine-Tenda. O filme marca a volta de Walter Lima Jr ao cinema de ficção, depois de realizar o documentário MPB de Câmara – A canção brasileira (2012) – o último ficcional tinha sido Os desafinados, de 2008.
Através da sombra é uma adaptação do clássico de Henry James, "A volta do parafuso", protagonizada pela atriz Virgínia Cavendish – uma das produtoras do filme.
Na apresentação do filme – Walter Lima Jr teve problema na coluna e não veio a Tiradentes -, a atriz contou que a ideia dele era levar a novela ao teatro, já que ambos vinham de dois trabalhos nos palcos. Mas aí Cavendish sugeriu que fizessem cinema ao invés de teatro e assim nasceu o filme – Maria Dulce Saldanha, também produtora, participou da apresentação.
Com essa informação é impossível não pensar como Walter Lima Jr, diretor de filmes mais que especiais do cinema brasileiro, como o magistral e libertário A lira do delírio (1978), levaria um universo de tensão sexual e horror de "A volta do parafuso" para o teatro.
Já no cinema, que é sua praia mais imediata, e onde a trama de James já foi adaptada, como no inesquecível Os inocentes (1961), protagonizada por Débora Kerr, os caminhos escolhidos estão não só a nossa frente, como também ainda nos possibilita rememorar o pretérito. E lá, ainda que o suspense de horror ainda não tivesse sido visitado pelo cineasta, em A ostra e o vento (1997) ele utilizou, de certa forma, elementos do fantástico, e alcançou resultados infinitamente superiores - o que não acontece nesse Através da sombra.
19ª Mostra de Cinema de Tiradentes - Programação completa
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