Fábio Carvalho (Isabel Lacerda)
A Imagem é Mulher
Não posso esconder que no início da adolescência nasceu em mim uma forte atração pela forma na imagem. Naqueles meados dos anos setenta, me dedicava ao desenho fazendo uma espécie de story board dos filmes que eu via na TV e também de novelas. Especialmente me encantava a personagem Zarolha de Gabriela, interpretada por Dina Sfat. Cheguei a fazer dezenas de desenhos dessa personagem - que em seguida destruía -, uma prostituta romântica com um leve defeito no olhar. Homens eu desenhava muito bem e situações em plano geral também. Tinha dificuldades em desenhar a forma e as expressões da mulher.
Descobri então os trabalhos fotográficos de Luís Trípoli e Antônio Guerreiro em revistas proibidas e também os livros e publicações de fotografia com estrelas do cinema. Me obrigava a tentar reproduzir a lápis aquelas luzes e formas. Não tive sucesso em traduzir em linhas as curvas perfeitas das estrelas que brilhavam. Vendo Sônia Braga, Vera Fischer, Betty Faria e inúmeras outras, resolvi aprender fotografia.
Com o passar do tempo, já no início dos anos 80, passei a trabalhar profissionalmente como fotógrafo e a realizar todo tipo de registro passando por casamentos, recepções, batizados, formaturas e mais adiante, a fazer books para agências de modelos e também editoriais de moda para as confecções de jeans emergentes na Belo Horizonte da época. Em paralelo, desenvolvia um trabalho autoral centrado em retratar a figura humana. A despeito da minha pouca idade foi, até agora, o único período da minha vida em que eu consegui pagar as contas com folga.
Antes, porém, ainda nos anos setenta, descobri o cinema. Rapidamente conquistei a condição de ir sozinho a esses espaços da imaginação. Isso era o que mais me agradava posto que quando ia com alguém da família ou com a turma da pelada de rua, invariavelmente caía nas matinês de final de semana em filmes pipoca americanos, desenhos do Walt Disney ou no máximo em um filme dos Trapalhões. Vi na televisão O assalto ao trem pagador. Essa visão foi um marco. As incríveis personagens do Tião Medonho e suas duas mulheres. Uma era feita por Luísa Maranhão que depois revi maravilhosa em Barravento.
Conheci os cinemas de bairro durante a semana, o que me ocupava um dia inteiro de planejamento. Tanto para escolher o filme ideal, como aprender a chegar no tal cinema. E até a desenvolver uma estratégia para entrar nos filmes proibidos para minha idade. Cheguei ao ponto de saber os horários de trabalho desse ou daquele porteiro que eu julgava mais liberal com a questão da censura. Somada a toda essa engenharia ainda tinha que arrumar a grana para entrar. Por vezes aconteceu de planejar muito bem a ida e esquecer da volta. Passei alguns apertos como ter que voltar a pé pra casa e atravessar com bastante medo ruas escuras e mal freqüentadas, o que demorava muito e me deixava com mais medo ainda por ter que encarar meu pai que vinha abrir a porta. O medo me movia.
Na solidão do Cine Poeira, vi e aprendi. Sempre gostei muito da fotografia do cinema brasileiro. Especialmente as feitas com muita invenção sem não sei quantos mil quilos de luz. Surgia a luz com matizes mais calmos.
Nesse momento várias atrizes dos mais variados níveis brilhavam.A imagem é mulher; a alma também.
Começo com Helena Ramos, a primeira atriz que vi pessoalmente. Foi no lançamento de Iracema, a virgem dos lábios de mel no Cine Metrópole. Em seguida, Bruna Lombardi, que vi ao vivo e a cores lançando um livro de poemas dedicado a Mário Quintana, na Galeria do ICBEU. Acho que ela ainda não tinha feito cinema. Lembro-me de Aldine Muller em Paixão e sombras; de Selma Egrei; Maria Lúcia Dahl; Kate Lyra; Angelina Muniz; Adele Fátima fazendo a Branca de Neve em As histórias que nossas babás não contavam e depois em Natal da Portela; Irene Stefânia; Meire Vieira em O império do desejo; Kate Hansen; Rosana Guessa; Cristiane Torloni; Anecy Rocha em A lira do delírio; Matilde Mastrangi; Odete Lara em Câncer, Um filme 100% brasileiro e em Noite vazia, Glauce Rocha; Rose di Primo em Banana mecânica.
Márcia Rodrigues em Matou a família e foi ao cinema; Tânia Scher; Claudete Joubertt; Nádia Lippi; Ana Maria Kreisler; Alvamar Taddei; Lucélia Santos em Luz del Fuego; Cláudia Magno; Sandra Graffi; Zilda Mayo; Zélia Diniz; Ana Maria Miranda em Amor, carnaval e sonhos e em Crônica de um industrial; Joana Fomm; Nicole Puzzi; Zezé Mota; Ítala Nandi; Zaira Zambeli em Fulaninha; Vanessa Alves; Tamara Taxman em Cabaret mineiro; Vera Gimenez; Bety Faria; Dora Pellegrino; Telma Reston em Os sete gatinhos; Wilma Dias; Sandra Bréa; Nina de Pádua; Carla Camurati em O olho mágico do amor; Tânia Alves; Patrícia Scalvi; Cristina Aché em Guerra conjugal; Débora Bloch; Lílian Lemmertz em Copacabana mon amour e Lição de amor; Sandra Barsoti; Adriana Prietto; Rejane Medeiros; Dilma Lóes; Tânia Bôscoli.
Irma Alvarez em Porto das caixas e Blá, blá, blá; Marta Anderson; Marlene; Ana Maria Magalhães em Como era gostoso meu francês; Sônia Dias; Isabel Ribeiro; Louise Cardoso; Nádia Destro; Elke Maravilha em A noiva da cidade; Karin Rodrigues; Darlene Gloria; Kátia D`Ângelo; Denise Dumont em Terror e êxtase e Rio babilônia; Monique Lafond; Regina Rosemburgo; Norma Bengell em Os cafajestes, O abismu e A idade da terra; Maria Gladys em Anchieta, José do Brasil; Wilza Carla; Analu Prestes em A$untina das américas; Malu Mader; Neide Ribeiro; Yoná Magalhães em Deus e o diabo na terra do sol.
Termino aqui esta lista interminável com Cláudia Ohana em Erendira.
Jamais clarividentes como as deusas feiticeiras que em Helena Ignez alcançam a imagem perfeita, a musa do cinema moderno. Dina Sfat como a torturadora de Jardim de guerra e como a professora em Das tripas coração; Leila Diniz; e A dama do lotação com Sônia Braga.
O medo só aumentava.
Também gosto dos filmes ruins. Transcrevo a sétima lição de Alejandro Jodorowsky: “Sinta a ponta de seus dedos como se fossem a ponta de sua língua. Apóie as pontas dos dedos nos objetos do mundo pensando que são frágeis, que uma pequena pressão pode quebrá-los. Peça-lhes permissão antes de tocá-los. Antes de apoiar os dedos em sua superfície, sinta como penetra na sua atmosfera. Aprenda a sentir e a acariciar com respeito. Qualquer ação que faça no mundo com suas mãos ou corpo pode ser uma carícia.”
Passo a falar das minhas atrizes.
Meu encontro com Isabel Lacerda, que já vai para mais de treze anos, me permitiu avançar nas perigosas e delicadas relações da vida com a arte, e me aprofundar nesse aprendizado, que distante de conclusões, gera as motivações necessárias. Se no cinema se vive na vida se representa? Ou não?
Inúmeros filmes surgem de um trabalho difícil, para as atrizes-criadoras nada é fácil. O músculo da imaginação precisa ser exercitado. Belas sensações frutíferas de fugidias felicidades, como deve ser a vida. Com sua beleza rosa dá sentido ao cinema que faço. E quero mais.
Filmei em big-close os incandescentes olhos azuis de Ana Maria Nascimento Silva, outra deusa, e de novo quero poder filmar.
Da Lola, que mora na Alemanha, e para minha sorte, sempre que eu vou filmar aparece, cito a magistral cena que acabamos de realizar para Cinema nunca mais. Enquanto canta Lili Marlene, balança o pé com a sandália desamarrada. Agora ela se chama Eleonora Mendes, mas é sempre uma presença total.
Me lembro da Luciene Vianna, nua com asas de anjo andando pela cidade, que filmei para televisão, e foi censurado pelos burrocratas de plantão.
A beleza e a entrega da Ingra Liberato dançando no topo do prédio citando Jura Otero em Bang bang e Carolina Ferraz em Alma corsária e ainda nos canteiros centrais da avenida Brasil, com chuva artificial e muito mais. Maravilhosa e peço bis.
A seríssima Bya Braga com disposição de enfrentar um diretor não convencional como eu.
Luna Cohen que encarou três filmes comigo, sem mais delongas, sem ensaio, chegou fez bem e partiu para a Espanha, espero reencontrá-la.
Por duas vezes filmei com a Soraya de Borba, personalidade forte expressonista, e que além do mais ainda canta.
Ana Tavares, índia pantaneira natural de Bonito, na praia de Copacabana, ao som de Amália Rodrigues cantando um fado, e em laranjeiras no meio do bloco Gigantes da Lira.
A Lou de Resende fazendo movimentos de dança no meio do cerrado queimado no alto da Serra do Curral.
A Letícia Castilho andando em câmera-lenta na ponta dos pés nas pedras molhadas na cidade de Tiradentes.
Flávia Barbalho, como uma ninfa, tomando banho na cascata do Parque das Mangabeiras.
Difícil esquecer tantas imagens que para meu próprio espanto estão impressas, realmente existem e pressinto que, apesar do medo, muitas ainda estão por vir.
Já consegui filmar com várias cantrizes e gostaria de sempre voltar a filmá-las: Sylvia Klein, Marilane Santos, Letícia Coura, Isabella Santos, Beatriz Azevedo, Mariana de Moraes, Elza Soares, para ver e ouvir sem nenhuma contra-indicação. Magnífica a idéia dessa nuance.
Outro dia em uma mesa de bar, um senhor bem mais velho que eu, um publicitário para ser mais exato, me disse que não entendia porque o cinema brasileiro mostrava tanta mulher pelada. Argumentei que isso não ocorria só no Brasil. Além do que, a nudez faz parte da vida, portanto, natural que fizesse parte do cinema. Não satisfeito, se empolgando, ele disse que não era verdade o que eu falava e que nos filmes brasileiros só tinha mulher pelada. Então, contei a ele que certa vez perguntaram a Jean Luc Godard para que servia o cinema. “Para mostrar o que a gente não pode ver” foi a resposta. Sendo assim, ele, o publicitário, que jamais veria a Maitê Proença nua pode ver porque o cinema lhe permitiu. A política e a estética caminham juntas no cinema.
“Vou dizer ainda umas palavras para os ouvidos mais seletos sobre aquilo que, efetivamente, quero da música: que seja serena e profunda, como uma tarde de outubro, que seja peculiar, exuberante, delicada, uma amável mulher cheia de malícia e graça.”
A música é mulher. Quero filmar a música.
Fábio Carvalho é cineasta.
Texto escrito para o Mulheres em maio/2008
Veja também sobre ela