Ano 20

Marília Rocha

Marília Rocha é uma das documentaristas mais talentosas do país. Presença frequente em Mostras e Festivais, essa goiana que escolheu Minas Gerais para viver e fazer cinema há 12 anos já tem uma assinatura toda própria no cinema brasileiro. O início da trajetória foi fazendo curtas experimentais: "Antes do Aboio eu fiz alguns curtas. Mais experimentais, mas sempre com uma carga documental, assim... um jeito de trabalhar o documental de uma forma mais livre. Com estes trabalhos eu tive uma experiência para chegar até o Aboio, que foi meu primeiro longa". E o fazer cinematográfico foi feito na prática: "Eu não tive uma formação de cinema, acadêmica. Isso pode ser muito bom, mas que não foi o meu caso. E eu acho que a vantagem que traz é essa, de ser mais livre, de não ter certos vícios ou certos preceitos, assim de já conhecer como se faz, sabe? Foi um jeito de inventar com o que a gente tinha em mãos. Então eu acho que essa formação mais de vivência, de amizade, de afinidades, isso deu uma cara para os trabalhos também".

Aboio é sobre o universo dos vaqueiros, um tema que, de imediato, associamos ao universo masculino e por isso se pensaria mais em um homem na direção: "A gente teve uma recepção muito boa. Os vaqueiros eram pessoas super abertas e disponíveis, em trocar, em participar do filme. Mas é claro que é um universo completamente masculino, né? E eu era a única mulher da equipe também. Nós éramos quatro, e eu era a única mulher. Então, quando a gente chegava, a tendência era deles conversarem com os homens. Mas, rapidamente eles percebiam que um interesse meu, no papel como diretora, tinha uma outra ligação, e durante as conversas essa coisa ia mudando, sabe? Eles iam assim... Começavam olhando e dando ouvido aos homens e depois viravam para mim".

Nos filmes da cineasta, a questão da trajetória, dos deslocamentos, está sempre presente: "É engraçado. Acho que tem muitas coisas que a gente não percebe. E é muito claro isso, mesmo. Eu já tinha até pensado assim, já tinham me falado numa movimentação, de um percurso assim, de sair e tal. Mas agora é que eu percebo que isso é muito forte". Marília Rocha é uma das diretoras da Teia, produtora atuante em Belo Horizonte: "Vendo de fora, eu acho que tem muitas afinidades, dá para você reconhecer muita coisa, muitas semelhanças entre os filmes. Mas eu também acho que tem uma diferença muito grande, e que é super importante que haja essa diferença. São seis diretores, né? E cada um tem seu estilo". Outra questão levantada é a crescente presença da mulher no set de cinema: "Quando eu comecei a trabalhar, dez anos atrás, menos do que isso, eu trabalhava com homens, só com homens. Eu aprendi nos meus primeiros estágios, quando fazia assistência para diretores. Era um universo muito masculino, sabe? Os editores eram homens, os câmeras homens, os assistentes homens, os diretores homens. E o que foi engraçado, é que eu estava outro dia lá na Teia, durante uma reunião do Sempre vivas, que é este outro projeto de longa meu, e quando eu olhei (risos) era uma mesa só de mulheres, todas mulheres (risos)". 

Marília Rocha está em Tiradentes, onde apresenta Acácio na 12ª Mostra. A cineasta conversou com o site Mulheres do Cinema Brasileiro e repassou sua trajetória, falou dos filmes, de como é dirigir curtas e longas, da inserção das mulheres no set de filmagem, da produtora Teia, sobre o cinema feito em Minas Gerais, e outros assuntos.



Mulheres do Cinema Brasileiro: O Aboio é um filme muito impactante e muitas pessoas conheceram seu trabalho a partir daí. Gostaria que você falasse um pouco desta trajetória pra chegar neste momento importante que foi o Aboio.

Marília Rocha: Antes do Aboio eu fiz alguns curtas. Mais experimentais, mas sempre com uma carga documental, assim... um jeito de trabalhar o documental de uma forma mais livre. Com estes trabalhos eu tive uma experiência para chegar até o Aboio, que foi meu primeiro longa. E que até começou antes da Teia existir. Era uma época, uma forma mais caseira de trabalhar, mas que foi muito bom, até para o jeito como o Aboio foi feito. Porque era uma equipe muito pequena, de gente que tinha uma afinidade muito grande, e que funcionou super bem para o filme. Então esse jeito muito informal de criar assim, sem um profissionalismo, um planejamento, uma programação muito rigorosa. Eu acho que foi ótimo porque deu, dá um caráter mais de uma entrega, de ser guiado intuitivamente. Isso eu acho que está muito forte no filme. E também já estava nos outros, nos anteriores. Eu acho que talvez isso seja uma coisa muito importante. 

Eu não tive uma formação de cinema, acadêmica. Isso pode ser muito bom, mas que não foi o meu caso. E eu acho que a vantagem que traz é essa, de ser mais livre, de não ter certos vícios ou certos preceitos, assim de já conhecer como se faz, sabe? Foi um jeito de inventar com o que a gente tinha em mãos. Então eu acho que essa formação mais de vivência, de amizade, de afinidades, isso deu uma cara para os trabalhos também.

MCB: Foram quantos curtas? E o primeiro é de que ano?

MR: O primeiro? Deve ter sido 1999, 2000, por ai.

MCB: E é qual?

MR: Deixa pensar (rsrs), deixa eu lembrar. Porque assim, tem filmes que é trabalho de faculdade e eu acho que não conta tanto, mas talvez o Jardim fechado, que é de 2000.

MCB: No total foram quantos até a estreia em longas?

MR: Seis filmes.

MCB: Como você chegou ao universo do Aboio?

Marília Rocha: O que é o aboio eu conheci pela literatura. Vários escritores brasileiros falam de aboio e ai ficou essa imagem, do canto, de uma forma de comunicação que os homens usavam. Pelo canto se comunicava com os bois. E ai eu fui procurar saber se isso existia ainda, na prática. Porque eu estava lendo em livros que falavam sobre isso, eram livros de Câmara Cascudo, de Mario de Andrade, de Guimarães Rosa, e que já eram antigos. Eu nem sabia se isso existia ainda. 

Na verdade, eu perguntei primeiro para o meu avô, que é do norte de Minas, e ele achava que não, “aboio, isso aí era para boi, é uma coisa antiga”. Daí eu descobri que isso existia ainda. Vaqueiros aboiavam não mais com aquele uso que tinha antigamente de canto de trabalho, mas por prazer. Os músicos que estão no filme também são músicos que usaram o aboio já transformando aquela canção original dos vaqueiros e colocando aquilo num outro contexto, artístico-musical. Foi a partir da literatura mesmo, essa foi a grande inspiração do filme.

MCB: E para ler aquele objeto ali, para você olhar naquele meio, foi difícil? Eles estranhavam uma mulher ali naquele meio, interessada por aquele tema duro? E que era, ao mesmo tempo, um olhar tão poético, mas que veio no resultado final, já que durante o processo talvez não fosse percebido? Como que foi a convivência neste universo? 

MR: A gente teve uma recepção muito boa. Os vaqueiros eram pessoas super abertas e disponíveis, em trocar, em participar do filme. Mas é claro que é um universo completamente masculino, né? E eu era a única mulher da equipe também. Nós éramos quatro, e eu era a única mulher. Então, quando a gente chegava, a tendência era deles conversarem com os homens. Mas, rapidamente eles percebiam que um interesse meu, no papel como diretora, tinha uma outra ligação, e durante as conversas essa coisa ia mudando, sabe? Eles iam assim... Começavam olhando e dando ouvido aos homens e depois viravam para mim. Mas, na verdade, os homens da equipe também foram muito participantes e foram importantes. Não tive, não senti nenhum tipo de estranhamento.

Por incrível que pareça, o mais difícil era eu chegar nas mulheres. As mulheres eram super doces, mas, em geral, muito mais acanhadas, muito mais distantes, mais fechadas. E isso até aparece um pouco no filme. As mulheres que estão lá, elas estão de costas, olhando, longe. Tem uma que olha de uma janela. É uma presença forte que está ali, que tem uma força. Elas dão um passo atrás, é mais uma postura de observação, do que aquela coisa dos vaqueiros de se jogar, de conversar, de cantar, de falar alto, da ação, né? Eles são a ação. Mas apesar disso, e era uma coisa que me interessava muito, apesar de serem muito brabos, corajosos e ativos, eles eram brutos por um lado, e por outros eles eram super delicados. Eram homens muito sensíveis. Então isso é o que a gente tentou mostrar um pouco no filme.

MCB: Quais foram as dificuldades durante as filmagens? Foram maiores ou menores do que você imaginava?

MR: (Pausa) Dificuldade mesmo não. O mais difícil... porque a gente ficou um mês viajando, né? A gente atravessou o norte de Minas, a gente atravessou a Bahia e o Pernambuco, até chegar em Recife. Acho que o mais difícil foi chegar, a chegada em Recife, voltar para a cidade. Foi o estranhamento. A imersão no sertão foi muito boa e foi muito importante para o filme. Tinha uma dificuldade no início, a gente não sabia se ia encontrar os vaqueiros, não sabia exatamente para onde ir. Se nas fazendas que a gente já tinha feito os contatos, se ia funcionar. Porque a gente não tinha nenhum roteiro. Então, em alguns momentos, tinha esta dificuldade, da gente chegar num lugar e eles falarem, “olha, aqui não tem nenhum vaqueiro aboiando. Vocês têm que viajar mais 300 km pro lado de lá que, talvez, tenha alguém”. A dificuldade era um pouco essa, de ir criando o filme enquanto ele estava sendo filmado. Isso, às vezes, dava uma certa tensão, “Nossa! Será que isso vai dar certo? Será que a gente vai encontrar?”. Mas não chegava a afligir, sabe? A gente encontrou pessoas tão especiais que dava uma certeza de que ia funcionar.

MCB: E quanto à dimensão dos dois formatos, o curta e longa, quando você estava ali fazendo o primeiro longa, essa dimensão era muito palpável para você? Ou era apenas uma diretora trabalhando em um outro formato? Aumentava a responsabilidade? Ou uma inquietação maior do que a exercitada nos curtas, apesar de você já ter dito que os curtas te permitiram a vivência para chegar neste estágio? Teve esta dimensão? 

MR: É, não teve uma dimensão de responsabilidade maior, isso não. Isso nem me passou pela cabeça. Talvez o momento mais difícil é a montagem, porque ai o material era muito maior, e era criar um filme. Era uma dificuldade interna ali do processo, não por ser um longa, por ter um peso maior. Até porque eu acho que curta tem muitas dificuldades, eu não acho que é fácil fazer um curta. Claro que os problemas são outros, é menos tempo de convivência com a equipe, é menos tempo de filmagem, menos tempo de montagem, então reduz. O processo do longa é muito mais custoso, quando acabou a montagem a minha coluna quebrou (rsrs) tive uma hérnia. A exigência de trabalho é muito maior, mas não de sentir uma inquietação por isso, sabe? 

MCB: O Aboio tem uma trajetória importante nos festivais. Ele foi lançado comercialmente e é referência para o público, para muitas pessoas que eu conheço. Como é que você vê a dimensão dessa trajetória do filme?

MR: Tem uma coisa que foi muito boa do Aboio, que é o retorno que me deu, traz uma satisfação grande. Depois do lançamento, depois que ele foi exibido nos festivais, depois de ser exibido no circuito comercial, as pessoas ainda procuram muito o filme, até hoje. E é de tudo quanto é tipo de gente. Tem gente que escreve, “Eu estou fazendo um trabalho, uma monografia, ou uma dissertação...”. Tem professores, tem gente organizando mostras. E tem o público em geral. Ás vezes as pessoas escrevem assim, “Eu estou aqui no Rio Grande do Norte e queria saber como eu é que eu consigo um DVD”. As pessoas ligam para ter, mandam e-mail e. É muito bom isso, ver que o filme não acabou ali rapidamente, que não foi arquivado. Ele está vivo e interessa as pessoas, é um filme que está tendo uma vida longa. É muito bom, sabe? ver este interesse. 

MCB: Ele já foi lançado em DVD?

MR: Não, ainda não. Na verdade, ele vai ser lançado pela Programadora Brasil, ele foi selecionado pelo programa. A gente quer lançar, mas ainda não tem nada certo. 

MCB: Como se deu o Acácio? Como foi essa produção? 

MR: Depois do Aboio teve um momento de parada mais para reflexão. Eu fiz mestrado, e era um mestrado que tinha tudo a ver com o tema, com o que eu gosto, com o documentário. Eu estava estudando documentários que tinham um tom ensaístico, para pensar em formas mais livres e frescas de documentário. Então teve este mestrado. 

Teve um curta que eu fiz dentro do projeto Descaminhos, que é um longa coletivo. Foi feito por seis diretores diferentes, e eu fiz um dos curtas. É um curta independente, dentro do longa coletivo.

MCB: Depois vem o Acácio

MR: Na verdade veio o Sempre vivas, eu comecei a pesquisa deste filme, que tem o título provisório de Sempre vivas, agora é que vou começar a montar. Então foram várias coisas, estava pesquisando um filme, produzi um curta, fiz este mestrado. Foi um tempo de maturação, de pouca produção mesmo, mas de uma parada, o que foi ótimo. Foi uma parada super importante para chegar ao Acácio. 

MCB: Me fale um pouco mais sobre este seu trabalho que integrou o Descaminhos

MR: Este trabalho foi um filme que eles dividiram em seis regiões do estado de Minas para falar sobre o trem, sobre a estrada, a linha ferroviária. Eu não escolhi. Eles entregaram uma região para cada diretor, para a gente fazer um curta. Era totalmente a critério do diretor o quê ia ser trabalhado, mas tinha que ter o trem envolvido, tinha que passar pelo trem. E eu tive a grande sorte de receber o sul de Minas, que foi justamente onde meus avós se conheceram. Eles se conheceram fazendo uma viagem de trem de São Paulo ao Triângulo Mineiro, passando pelo sul de Minas. Eu achei perfeito ter ficado com o sul de Minas. O meu curta trata disso. Na verdade, o filme, o que a gente vê, o que se mostra na imagem, é um trem fazendo o caminho de volta. A gente não vê o trem, só a estrada, só o caminho do trem indo pra trás. E sobre essa imagem uma voz de uma mulher que conta essa história. 

O que eu acho mais bonito da história é que eles não se conheciam, duas pessoas desconhecidas completamente, e que por acaso se encontraram dentro deste trem, que estava cheio de gente. Ele guardou um lugar para o caso de ver alguma mulher que interessasse e pudesse oferecer o lugar a ela. E por uma coincidência dessa eles começaram a namorar e ficaram mais de cinquenta anos juntos. Então é esta história, a voz desta mulher, anônima, que conta esta história, e na imagem tem a paisagem do trem, como se alguém estivesse olhando da janela do trem para fora. 

MCB: Depois dos curtas experimentais você passou para o longa, depois voltou novamente para o formato curta, antes de ir para outro longa. Fora as especificidades de cada formato, você percebe alguma mudança de percepção, algumas interferências, no seu trajeto por essas diferentes instâncias? 

MR: Eu acho que houve um amadurecimento, né? Não sei se pelo formato, de ser curta, mas me deu muito prazer fazer o meu episódio no Descaminhos. Eu tinha acabado o mestrado, então foi um momento de escrita, de estudo, de assistir a muitos filmes, de ler muito texto. E foi ótimo poder fazer um filme curto, que ficasse pronto rápido, que é muito mais leve, né? É um período menor de trabalho. Foi excelente esta oportunidade, não exige esta dedicação tão grande que um longa demanda, então foi super prazeroso fazer. E encontrar com as outras pessoas.

Filme coletivo é difícil, é um projeto problemático, complicado, porque são pessoas diferentes. É difícil casar isso, a não ser que, que tenha um planejamento melhor, uma forma de ligação. Mas assim, por outro lado é muito bom porque eu estava ali reencontrando, sabe? Vendo amigos e reencontrando, vendo as ideias de todo mundo e pensando em coisas muito práticas, muito diferentes lá da academia. Então foi ótimo. 

A dificuldade do curta, na verdade, é usar bem este tempo para não ficar falho, não ficar faltando, querer falar demais num formato que não comporta, fazer um recorte. Mas eu acho que isso é um ótimo exercício. Por exemplo, tem uma cineasta francesa que eu estudei no mestrado, a Agnès Varda, que transita entre formatos e gêneros diferentes. E ela nunca fez, por exemplo, um curta como se fosse “curta é um formato que se faz em inicio de carreira”... Não é isso, sabe? No final da vida ela faz um filme menor, faz um média, faz um curta, faz um longa, volta pro curta. E eu acho que tem seus desafios também, e suas vontades, tem uma leveza. Então é mais nesse sentido, mas não acho que mudar o olhar.

MCB: E tem a questão financeira, de orçamento.

MR: É, isso é uma coisa que dá uma leveza, fica mais fácil, mais tranquilo. Porque um longa, os que eu fiz, mesmo sendo documentários de orçamento super baixos, é uma demanda a mais, é um tempo a mais que precisa. O Aboio, por exemplo. Primeiro a gente terminou a versão em vídeo para depois montar um outro projeto para conseguir um transfer, para conseguir parceria, e coproduções para gente levantar esta verba, de passar o filme para película. E aí depois para distribuir em salas de cinemas é uma outra novela, né? E tudo foi feito, nós fizemos tudo, com os produtores do filme, com a Teia. Não tinha distribuidor, a Iaiá Filmes fez a distribuição, mas é uma distribuidora pequena. Então, assim, não tinha grandes estruturas envolvidas. E aí, quando isso acontece, é muito bom, porque você tem muita liberdade, mas ao mesmo tempo você passa a acumular várias funções, né? E é muito desgastante.

MCB: Como surgiu a ideia do Acácio?

MR: O Acácio veio de um encontro meu com a Glaura (Cardoso Vale), que é uma pesquisadora e produtora do filme também. Eu conheci o Acácio alguns anos antes dela. Na verdade eu conheci as imagens que ele tinha feito na África. E aí, oito anos depois, desse primeiro encontro com ele, com estas imagens, a Glaura o conheceu e veio me contar desse senhor, e que tinha ficado impressionada. Eu lhe disse que já o conhecia e aí decidimos juntas fazer esse projeto. 

A gente reuniu uma equipe e ficamos dois anos visitando os dois, encontrando, entrevistando, colhendo este material aqui para depois fazer a viagem, que é uma viagem ao contrário da que eles fizeram. Este casal saiu de Portugal, viveu mais ou menos trinta anos em Portugal, e aí foi para Angola. Com a guerra da independência, como milhares de portugueses, eles saíram de Angola e acabaram vindo para o Brasil. E aí, durante o filme, a gente saiu do Brasil, fomos a Angola, e de Angola para Portugal. E trouxemos este material para eles, que tinham perdido contato com estes países, completamente. Foi assim o processo de filmagem.

MCB: Todos os três que você destacou aqui, o Aboio, o curta do Descaminhos e o Acácio, têm a questão da trajetória, né? Um a trajetória no sertão, outro do trem, e o último por países diferentes.

MR: (risos) É verdade...

MCB: Essa questão das trajetórias, das travessias, é coincidência ou você já tinha pensando nisso, como pensei agora ouvindo você falar? Conte também como foi a produção do Acácio.

MR: É... primeiro esta trajetória... É engraçado, né? Acho que tem muitas coisas que a gente não percebe. E é muito claro isso, mesmo. Eu já tinha até pensado assim, já tinham me falado numa movimentação, de um percurso assim, de sair e tal. Mas agora é que eu percebo que isso é muito forte, inclusive no Descaminhos. Nos três filmes, né? Eu já ouvi alguém falar de escritores, que vários grandes escritores ficam escrevendo o mesmo livro, que sempre voltam. Eu não acho que é o caso, não é bem isso, mas a gente, acho que todo mundo, tem alguns interesses, algumas atrações, ou alguma forma de olhar para as coisas, que vai voltando. Mas eu acho que volta sempre de um jeito diferente, né? 

No Acácio, até respondendo a segunda pergunta, foi muito bom, foi a primeira vez que eu fiz um trabalho em Belo Horizonte. Grande parte da filmagem foi em Contagem, eles moravam em Contagem, mas era ali, do lado de casa. A gente ia, filmava e voltava para casa. Estes outros trabalhos eram fora de Belo Horizonte, eram fora de casa, então é bem diferente isso, é um outro tipo de imersão. No Acácio foi este tempo longo de filmagem, indo e voltando. Então dava para voltar, repensar, conversar um pouco, e depois voltar à casa deles. Mas aí teve esse um mês também de viagem. Mas eu acho que, fora este trajeto nos meus filmes, nos filmes do seu Acácio também tem essa ideia de movimento grande, né? 

O filme começa com um trem, um trem que percorre um caminho, e no final o trem percorre um outro. Assim, é um outro lado do trem. Então já tem esse movimento circular, do trem que começa, do trem que fecha. Tem um avião nas imagens dele, tem dentro de um navio em Angola. Então tem percurso, um movimento de transição, de ser levado, de ir também, né? É, depois que as coisas estão prontas, a gente tem que voltar (risos), voltar para ver melhor coisas que a gente não vê quando está fazendo.

MCB: E o cinema em Belo Horizonte, em Minas Gerais, você não é mineira, né?

MR: Não, sou goiana. 

MCB: Mas vive em Minas há quanto tempo?

MR: Tem... doze anos? Doze anos.

MCB: Hoje, pegando os que estão fazendo cinema atualmente, com exceção do Helvécio Ratton e da Elza Cataldo, que é um cinema mais narrativo, um diferencial muito grande no cinema mineiro é que é um cinema que aposta em investigação estética, né? Helvécio Marins, você, mesmo o Rafael Conde, que trafega nos dois lados da narrativa. Enfim, isso é muito comentado nos festivais, de que é possível dimensionar o cinema feito em Minas a partir disso. Isso te chama a atenção? Você concorda ou acha que não? Ou você vê uma maior variedade de filmes sendo feitos? 

MR: É, eu acho que tem, isso faz sentido. Acho que tem cuidado estético, um trabalho com a linguagem, um trabalho formal, é forte. Eu acho que isso existe. Mas me incomoda, às vezes, como as pessoas colocam isso, juntam facilmente num mesmo saco coisas que são muito diferentes. Não é tão direto falar assim, por exemplo, em influência como um tipo de vídeoarte, isso eu não consigo ver tão claramente em vários filmes. Eu acho que existe um trabalho, sei lá, uma preocupação com a forma do filme, e não só com o conteúdo. E acho que isso, no caso do documentário, fica mais ressaltado ainda, é muito mais comum em documentários não ter esta preocupação, é formal. E eu acho que os filmes tem este olhar. Mas, por exemplo, eu acho que no caso do Acácio isso é muito menor que no Aboio. Acho que no Aboio tinha um trabalho com a imagem e com o som muito significativo. Que o Acácio tem também, mas está muito mais nos filmes deles, sabe? 

Acho que o foco era muito mais mostrar os filmes que o Acácio tinha feito, e não a gente ficar fazendo. Acho que já tinha, eram muitas camadas de sentido. Era muito a história de três países. Era a vida dele, ele tinha quase noventa anos, e na fala dele vem esses noventa anos, vão e vem. Então, com três países, em três continentes diferentes, com quase um século que está sendo coberto com as imagens dele, de cinquenta anos atrás, e as imagens de agora. Eram muitas coisas para se trabalhar, não cabia preencher com mais camadas de som, de imagem, de um trabalho estético muito forte. Acho que tinha que ser mais limpo, a nossa câmera é mais quieta, é mais parada, tem muito silêncio. Foi mais uma vontade de tirar elementos e deixar mais aqueles que eles já traziam. Então é bem diferente. 

MCB: Como se dá esse significado cinematográfico dentro da Teia?

MR: Vendo de fora, eu acho que tem muitas afinidades, dá para você reconhecer muita coisa, muitas semelhanças entre os filmes. Mas eu também acho que tem uma diferença muito grande, e que é super importante que haja essa diferença. São seis diretores, né? E cada um tem seu estilo. 

MCB: Você poderia citar os seis?

MR: Sou eu, a Clarissa Campolina, Helvécio Marins, Pablo Lobato, Sergio Borges e o Léo Barcelos. Á medida que a gente começa a fazer mais trabalhos, eu acho que essas diferenças também vão aparecendo. Claro que há algumas semelhanças, mas o trabalho é bem diverso. Eu, por exemplo, não tenho a menor vontade de fazer ficção, nunca tive. Posso vir a ter um dia, mas por enquanto não tenho nenhuma. Já os meninos têm. O Helvécio e a Clarissa estão fazendo agora um projeto, o primeiro projeto deles de longa de ficção. O Pablo já fez alguns curtas de ficção. Ele tem um trabalho também mais artístico, mais de instalação, de galeria. Serginho também fez um trabalho de ficção, está fazendo um segundo. 

Eu acho que são gêneros, formatos e olhares diferentes, mas que é muito bom estar junto. E, se acontecer da produção vir do mesmo lugar, porque a gente tem esta oportunidade, de trocar muito. Acho que é o melhor da Teia, de aproveitar e estar junto para ganhar força, tanto para exibir os trabalhos, para encontrar espaços, mas também na hora de fazer mesmo. De um trabalhar no filme do outro, e trocar funções, e dar palpites, e ter uma abertura para uma sinceridade, de gostar e de não gostar, sabe? Isto é muito bom, estar junto para isso. 

MCB: São os seis que estão em Descaminhos?

MR: Não! Nenhum está em Descaminhos, só eu (risos). O Descaminhos é uma produção da Camisa Listrada. 

MCB: É porque ainda não vi o filme.

MR: Então, a Camisa convidou seis pessoas, e da Teia foi só eu.

MCB: É muito impressionante no cinema brasileiro que até a década de1960 teve menos de dez diretoras de longas, sendo que duas italianas. Só a partir dos anos 70, e, principalmente, com o chamado Cinema da Retomada, que esse número cresceu enormemente. Direção de cinema era mesmo uma coisa de homens. Em Minas mesmo há poucas, você, a Elza Cataldo. Você já tinha pensado nisso? Como vê isso?

MR: Tinha, isso é muito evidente, sabe? E é muito rápido mesmo. Aí você falou, e, na verdade, eu não sabia desses números. E acho que fica mais impressionante ainda. Por exemplo, mesmo sem pensar em tantos anos. Quando eu comecei a trabalhar, dez anos atrás, menos do que isso, eu trabalhava com homens, só com homens. Eu aprendi nos meus primeiros estágios, quando fazia assistência para diretores. Era um universo muito masculino, sabe? Os editores eram homens, os câmeras homens, os assistentes homens, os diretores homens. 

E o que foi engraçado, é que eu estava outro dia lá na Teia, durante uma reunião do Sempre vivas, que é este outro projeto de longa meu, e quando eu olhei (risos) era uma mesa só de mulheres, todas mulheres (risos). Era assim: a Clarissa, que foi minha assistente, que fez uma câmera adicional no filme; a Luana, que é a produtora; a Diana, que é consultora jurídica e financeira; a estagiária. Eram todas mulheres. Isso é inédito. Teve um dia que tinha tantas mulheres que a gente tirou até uma foto para marcar (risos), pra registrar o momento. Era mesmo uma coisa que não acontecia, era um universo totalmente masculino. Então é uma mudança, grande e rápida. Mas o que eu ainda não vi foi o quê que isto trouxe como olhar novo, ou como se isso faz alguma diferença em linguagem, em abordagem, sabe? Na construção do filme. Isso é o que eu estou curiosa para ver daqui para frente.

MCB: Eu ia tocar neste assunto. Se há algo polêmico é o tal do olhar feminino. Você falou que está querendo ver, mas você, pelo menos, acredita em uma possibilidade de existir, ou você acha que não? É uma construção histórico-cultural? O que você pensa sobre isso?

MR: É, eu acho que sim. A gente não pode cair numa coisa muito fácil, sabe? De “é mulher” e “tais coisas são coisas de mulheres”. Acho que, às vezes, as pessoas ficam sempre num clichê, que eu acho que é meio perigoso. Não é tão simples assim. Mas (pausa)... Mas eu acho que existe alguma coisa feminina, mas que eu acho que os homens podem ter também, sabe? Acho que não necessariamente existe um olhar que é facilmente reconhecível como feminino, que é difícil explicar por que e como, sabe? Categorizar assim. Mas tem alguma coisa feminina que, às vezes, eu acho que os homens podem ter. 

Por exemplo, eu tive uma sensação muito forte quando vi o filme do Coutinho (Eduardo), o Jogo de cena, que é um filme só com mulheres. Naquele anúncio de jornal que ele colocou para procurar as personagens, está claro isso, ele queria só mulheres, o filme são depoimentos de mulheres. E acho que é um filme claramente feito por um homem. Eu acho que se eu não soubesse quem era o diretor, se eu nunca tivesse visto nada do Coutinho... Acho que é um olhar masculino. Acho que é um homem olhando para as mulheres. É difícil explicar isso assim, sabe? “Por que”, exatamente, mas ficou bem presente isso para mim. Não sei. Talvez você pode (risos), você que estudou, vai saber sobre isso melhor do que eu (risos).

MCB: Agora, a gente conversando aqui, eu fiquei com uma dúvida, que eu não sei se você sabe. Você é a primeira diretora em Minas Gerais ou é a Elza Cataldo? 

MR: Me falaram isso aqui em Tiradentes. Na verdade, chegaram aqui falando assim: “Olha, você foi a primeira diretora mineira que fez um longa”. E eu: “Realmente, é o primeiro longa mineiro, mas eu não sou mineira”. Então, já me tirou do páreo (risos). Mas eu acho que foi o primeiro longa, a primeira produção mineira dirigida por uma mulher.

MCB: Agora, as únicas duas perguntas que são fixas s entrevistas: Qual foi o último filme brasileiro que você assistiu, e que não foi em Mostra? Que você foi ao cinema assistir ou que você pegou um DVD? 

MR: (pausa) Deixa eu lembrar... Eu vi uns filmes em dezembro, que já não são tão novos, e que eu gostei muito, deixa eu ver...

MCB: Mas é o último mesmo que você viu, não tem problema se for filme antigo.

MR: O céu de Sueli (Karim Ainouz).

MCB: E por fim, eu sempre convido as minhas entrevistadas para homenagearem uma mulher do cinema brasileiro de qualquer época e de qualquer área. Quem você deixa registrada na sua entrevista?

MR: Uma mulher... (pausa). Tá muito difícil... Você deixa para o final as mais difíceis, né? (risos). (pausa)... São tantos homens... os homens são mais fáceis. (pausa)... Estou pensando aqui em atrizes, vem mais atrizes... queria arrumar uma área diferente para não cair nas atrizes (risos). Quem é heim?... Uma montadora... São muitas montadoras mulheres, né? (pausa). Uma fotógrafa... Fotógrafa eu acho que não tem nenhuma, que eu lembre assim... (pausa longa). Nossa!!! É muita responsabilidade escolher uma pessoa (risos). 

MCB: Mas não é tão sério assim não (risos)...

MR: silêncio prolongadíssimo... Não era pra ser tão difícil assim, né? (pausa longa). Eu queria arrumar um nome assim que eu... (pausa) Nossa! Tá difícil... Acho que eu vou mudar. Eu estava pensando assim longinquamente e vou mudar o foco para uma pessoa muito, muito próxima.

MCB: A escolha é sua.

MR: Que é uma amiga e minha sócia. Fiel montadora dos meus dois filmes, que é a Clarissa Campolina.

MCB: Muito obrigado pela entrevista.

MR: (risos) Brigadíssima.



Entrevista realizada em janeiro de 2009, durante a"12ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

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Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.