Carlos Alberto Mattos (Helena Ignez)
A baiana ultrajante
Minha admiração pela atriz – e agora diretora – Helena Ignez vem de longe. Vem dos anos 1960, época em que ela afrontou a ordem e os bons costumes da esquerda e da direita, sagrando-se musa maior do cinema marginal brasileiro.
Filha da pequeno-burguesia baiana, preparada para ser esposa de diplomata, Helena sempre foi uma mulher dicotômica. Na juventude, antes de se casar com Glauber Rocha, assinou uma coluna social com o pseudônimo de Krysta e antecipou a moda hemp vestindo mocós de sarja. Joaquim Pedro de Andrade, que tocou o âmago da sua doçura na Mariana de O Padre e a Moça, disse que ela caminhava entre a santidade e a sensualidade. Há pouco tempo, quando Monique Gardenberg escolheu-a para viver a monja budista e a Madame Petit Pont da peça Os Sete Afluentes do Rio Ota, ouviu de José Celso Martinez Correa a seguinte aprovação: “Você acertou. A Helena é mesmo monja e perua”.
Talvez por não ter abraçado um estilo de interpretação naturalista, nunca a vemos no mesmo panteão das grandes atrizes, junto com Fernanda, Cacilda e Marília. Assim como Leila, Norma e Sônia, Helena é da estirpe das mulheres-evento. Através dela, o cinema talvez não cresça, mas se adensa e penetra mais fundo.
Ver Helena Ignez nos filmes marginais é tomar contato com a plena liberdade do desejo. As saias curtíssimas, os pequenos seios freqüentemente à mostra, os olhos grandes de boneca, a boca devoradora e suavemente dentuça, tudo emoldurado pela juba loura, exalam o erotismo e a irreverência de uma pin-up envenenada. Ela agencia e subverte as poses de glamour girl como se injetasse ácido sob o glacê do bolo. E a câmera a segue, imantada. Capta seus berros, rodopios, danças loucas. Helena é uma intempérie na tela.
Em 1970, Helena associou-se ao marido Rogério Sganzerla e a Julio Bressane para fundar a produtora Belair, que no curto espaço de sete meses produziu, quase simultaneamente, seis radicais e baratíssimos longas-metragens. Helena atuou em todos. A experiência, no auge da ditadura, foi interrompida pelo alerta de um general. Estavam na mira da repressão. Em menos de 24 horas, os três embarcaram para Paris. Rogério e Helena exilaram-se entre Londres, Nova York e o Saara.
De volta, anos mais tarde, Helena afastou-se do cinema, do teatro e da televisão. Entrou para o movimento Hare Krishna, abraçou o taoísmo e dedicou-se à criação de Sinai e Djin, suas filhas com Rogério. Mas, ao contrário de Odete Lara, que trocou definitivamente a carreira pela vida espiritual, Helena fez um lento retorno em novos trabalhos de Sganzerla (Nem Tudo é Verdade, O Signo do Caos e a peça Savannah Bay, de Marguerite Duras), Bressane (São Jerônimo) e Guilherme de Almeida Prado (Perfume de Gardênia). Distante da imagem de menina bandida, hoje ela escolhe papéis mais reflexivos e comporta-se como profissional exemplar.
A trajetória e a personalidade de Helena Ignez reservam para ela um lugar único entre as grandes mulheres do cinema brasileiro.
Carlos Alberto Mattos é jornalista, escritor, pesquisador e crítico de cinema.
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