Vanja Orico
“Não atire, somos todos brasileiros”. Vanja Orico imortalizou essa frase e seu gesto ao ajoelhar-se frente ao exército durante passeata contra o regime militar. Cantora e atriz, Vanja Orico nasceu em 15 de novembro de 1931, no Rio de Janeiro, e é filha do escritor e diplomata Oswaldo Orico.
Vanja Orico estreou no cinema em 1950, em “Mulheres e Luzes”, dos mestres Alberto Lattuada e Federico Fellini, quando estava na Itália estudando música. De volta ao Brasil, estréia no cinema brasileiro no clássico “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, premiado no Festival de Cannes e sucesso internacional. Como fala vários idiomas, Vanja Orico participa de várias produções e co-produções estrangeiras. Outra marca forte da sua trajetória no cinema é sua presença em vários filmes do Ciclo do Cangaço, do qual é uma das musas.
Paralelamente aos trabalhos como atriz, Vanja Orico desenvolveu importante carreira de cantora, com apresentações em várias partes do mundo. Em 1973 torna-se também cineasta ao dirigir “O Segredo da Rosa”. Em conversa exclusiva com o Mulheres, Vanja Orico refaz sua trajetória desde o encontro com Fellini até os dias de hoje. Fala de seus filmes e diretores, de sua carreira como cantora internacional, do episódio emblemático durante a ditadura, e homenageia algumas de nossas atrizes.
Mulheres de Cinema Brasileiro: A carreira musical veio primeiro que o cinema, não é?
Vanja Orico: Sim. Eu participei de um concurso de música na Europa, onde meu pai trabalhava na Bélgica como Adido Cultural, e tirei o segundo lugar. O prêmio foi uma bolsa na Itália.
Mulheres: Você começou sua carreira no cinema atuando em um filme de dois dos maiores mestres do cinema mundial, os cineastas italianos Federico Fellini e Alberto Lattuada. Como você foi parar em “Mulheres e Luzes” (1950)?
Vanja Orico: Foi em um sábado, eu estava com as meninas do colégio em uma praça e vi as filmagens acontecendo na rua. Eu fiquei maravilhada com aquele jeito de se fazer cinema na Itália na época, o cinema vivo. Daí a irmã do cineasta Alberto Lattuada me viu e perguntou o que eu estava fazendo ali. Disse-lhe que estava maravilhada com aquilo tudo e aí ela me chamou, se interessou pelo meu tipo físico e me levou até o Fellini, que marcou um encontro comigo na casa dele, no domingo. Durante o encontro eu disse para ele que não queria fazer apenas uma figurante, queria cantar também. Aí ele disse “Eco”, você então vai ser a cigana Moema e vai cantar. Eu então, no filme, cantei “Meu Limão Meu Limoeiro” (domínio público) e “Coplas”, uma autoria minha.
Mulheres: Que maravilha, você começou mesmo com o pé direito.
Vanja Orico: Sim, depois eu acabei ganhando um programa de rádio, chamado Macumba, com sua programação toda voltada para música brasileira. Nessa época um empresário, Dante Ridiaggini, me procurou e me trouxe para cantar no Teatro Municipal do Rio. Isso foi em 1953, eu participei de três recitais, dois com o maestro Francisco Miglione e um com o grupo do Solano Trindade, um grupo de folclore. Foi um escândalo, porque o Municipal era muito elitista, mas foi maravilhoso.
Mulheres: E aí dá-se o seu encontro com o cineasta Lima Barreto, em “O Cangaceiro” (1952). Como você foi escalada para esse filme, um grande sucesso internacional? Vanja Orico: Foi através de teste. Tinha um papagaio que tinha uma participação importante no filme, e o meu teste foi correr atrás desse papagaio (risos). Eu acabei fazendo a Maria Clódia. Foi mesmo um grande sucesso internacional.
Mulheres: Você estava presente quando o filme foi premiado no Festival de Cannes (Melhor Filme de Aventura, Festival de Cannes 1953)?
Vanja Orico: Sim, eu estava morando na Itália. A Columbia, distribuidora do filme, acabou me contratando para a divulgação em vários países. Como eu falava quatro idiomas, eu fiz shows de divulgação e participação em programas no rádio e na televisão em países como Alemanha, França, Itália e Luxemburgo.
Mulheres: Você tem duas características muito fortes na sua trajetória de atriz. A primeira delas é o grande número de produções e co-produções estrangeiras em seu currículo (italianas, francesas, alemãs, soviéticas). Além do domínio de idiomas, a que você atribui todos esses convites?
Vanja Orico: Ao meu tipo físico, muito brasileira. Eu era mais morena na época. Um tipo meio cigano, meio índia.
Mulheres: E por ter atuado em tantas produções e co-produções estrangeiras, o que você acha que elas te trouxeram?
Vanja Orico: Projeção, projeção internacional. Entre esses filmes, eu atuei em “S.O. S. Noronha” (1957, Georges Rouquier). O filme tem no elenco o Jean Marais, artista francês muito conhecido, o que ajudou também a me projetar. Nesse filme está também o Ruy Guerra.
Mulheres: Entre essas co-produções está o episódio Ana, dirigido em 1955 por Alex Viany, dentro do projeto de Jori Ivens, “Rosa dos Ventos”, que reuniu diretores de várias nacionalidades. Qual é a lembrança que você tem do grande Alex Viany?
Vanja Orico: O Alex Viany era uma pessoa muito talentosa. Foi uma filmagem difícil, eram 40 graus na sombra, e a gente lá, filmando.
Mulheres: Em entrevista ao Mulheres, a atriz e diretora Marlene França, lançada nesse filme, relembrou com carinho do Alex Viany e também de você.
Vanja Orico: E eu me lembro também com o mesmo carinho dela. Quero muito bem à Marlene França, como a toda sua família.
Mulheres: A segunda característica forte na sua carreira é a sua presença em vários filmes do Ciclo do Cangaço, do qual se tornou uma musa. Como você vê hoje esses trabalhos?
Vanja Orico: Eu gostava e gosto muito até hoje desses filmes, que vejo como clássicos. Eu sou muito grata ao Fellini, que foi quem me lançou, e também ao Lima Barreto.
Mulheres: Além, claro, de “O Cangaceiro”, qual filme do ciclo você destacaria?
Vanja Orico: Eu destaco “Lampião, O Rei do Cangaço” (1964), do Carlos Coimbra, gosto muito desse filme, em que fui Maria Bonita.
Mulheres: Como foi trabalhar com o Coimbra?
Vanja Orico: O Carlos é uma pessoa muito doce, muito calma. É um grande técnico. Ele está produzindo um filme novo agora e eu quero participar. Meu último trabalho foi “Impérios”, com direção de Joel Barcelos, mas que está inacabado.
Mulheres: E ele será finalizado?
Vanja Orico: Espero que sim, é problema de dinheiro, um produção que envolve o Brasil e a China. Tomara que tudo dê certo, o Joel é tão talentoso.
Mulheres: Dá para você falar como é a sua participação nesse filme?
Vanja Orico: Tem uma cena em que eu estou suspensa em uma árvore, cantando uma música de guerra dos índios. É um cena muito bonita.
Mulheres: A carreira de cantora sempre foi desenvolvida paralelamente ao cinema, não é isso?
Vanja Orico: Sim, sempre paralela. Fiz muitas turnês, pela França, Bélgica, Mônaco, vários países.
Mulheres: Sua música é muito marcada pela valorização da cultura brasileira, da raiz, do folclore. Eu tenho um disco seu, com participação do Quinteto Violado, em que você faz um passeio pelo Brasil.
Vanja Orico: Minha música é muito marcada com isso, meu olhar sempre se perdeu pelo Brasil. Ali, naquele disco mesmo, tem gente de diversas partes do país, Capiba, Dorival Caymmi...
Mulheres: Você continuou desenvolvendo sua carreira por vários países, mas durante um período, aqui no Brasil, você se retirou um pouco.
Vanja Orico: Eu fui muito marcada por aquele episódio em 68 com os militares, com aquele meu gesto durante a passeata contra a morte daquele estudante, acontecida na véspera. Nós nos reunimos no Teatro Opinião e depois saímos em passeata. Quando o exército estava para massacrar a todos eu me coloquei a frente, me ajoelhei e fiz o gesto: “Não atire, somos todos brasileiros”. Aí eu fui presa e depois fui muito vigiada.
Mulheres: Você foi torturada?
Vanja Orico: Não, mas me deram algumas pancadas na cabeça.
Mulheres: Quantos dias você ficou presa?
Vanja Orico: Três dias. Mesmo com aquele gesto, ainda assim um estudante caiu morto ao meu lado, nunca mais eu me esqueci disso, fiquei marcada para sempre. Mas eles pararam e o massacre foi interrompido. Eu fiquei muito vigiada, mas, curiosamente, eu fui convidada para cantar na Espanha de Franco, no período de abertura, onde eu cantei Chico Buarque, entre outros.
O Luis Carlos Prestes Filho fez um filme sobre minha vida. “Vanja vai Vanja vem”, essa expressão criada pelo Stanislaw Ponte Preta em uma de suas crônicas e que me emociona até hoje.
Mulheres: Em 1973 você estréia como diretora em “O Segredo da Rosa”. Como foi passar para o outro lado da câmera, foi algo que você sempre quis?
Vanja Orico: Não, no início eu queria só cantar e representar.
Mulheres: E como foi a experiência? Por que não continuou a carreira de cineasta?
Vanja Orico: Foi apaixonante, mas muito complicado. Eu gostaria de continuar, mas falta dinheiro, cinema é muito caro.
Mulheres: O filme é sobre dois garotos, vendedores ambulantes, e tem no elenco o Ivan de Almeida e a Isolda Cresta, não é?
Vanja Orico: Sim, meu filho também, Adolpho Rosenthal também participa. Hoje ele é diretor do Globo Ciência (da Rede Globo).
Mulheres: E como vai a carreira de cantora?
Vanja Orico: Eu agora estou fazendo um novo disco, que deve ser lançado em junho. Entre as músicas está “Salve a Amazônia”, uma composição minha em parceria com Pedro Lopes e César Caetano.
Mulheres: Você ficou muito tempo longe do cinema, mas antes de voltar em “A Terceira Margem do Rio” (1994), de Nelson Pereira dos Santos, um argumento seu foi levado para o cinema pelas mãos do Walter Lima Jr, “Ele, O Boto”. Você gostou do resultado do filme?
Vanja Orico: Muito, eu achei o filme muito bonito. Eu escrevi o conto em Paraty, em 1967, durante a ditadura, e chama-se “O Boto, Uma História de Amor”. Na próxima bienal eu quero lançar o meu livro, que se chama “Ao Arrepio do Tempo”.
Mulheres: Será um livro de contos?
Vanja Orico: Não, de memórias. Eu vou falar sobre a minha trajetória.
Mulheres: Desde “O Caçador de Esmeraldas”, de Oswaldo de Oliveira, em 1979, até “A Terceira Margem do Rio”, foram 15 anos longe dos cinemas. Como se deu esse convite para participar do filme do Nelson.
Vanja Orico: O Nelson se dá muito com o meu filho, daí ele me convidou para aquela participação, fazendo aquela parteira. Eu gostei muito de fazer.
Mulheres: Qual foi o último filme brasileiro que você viu e gostou?
Vanja Orico: Aquele que foi indicado ao Oscar, “Diários da Motocicleta” (Walter Salles). Gostei muito desse filme.
Mulheres: Vanja, para encerrar, eu sempre pergunto para as minhas entrevistadas se elas querem homenagear uma ou mais de uma mulher do cinema brasileiro, de qualquer época e de qualquer área. Tem alguma que você quer homenagear aqui?
Vanja Orico: Tem Marlene França, minha amiga querida, minha irmã. Tem a Fernanda Montenegro, a Glória Menezes, a Fernanda Torres. São tantas mulheres maravilhosas... Tem aquela, a Cartaxo.
Mulheres: Marcelia Cartaxo.
Vanja Orico: Sim , ela é ótima.
Mulheres: Muito obrigado pela entrevista, foi uma honra falar com você, uma artista fundamental para o Brasil.
Vanja Orico: Muito obrigada. Um grande abraço.
Entrevista realizada em maio de 2005.
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