Ano 20

Bárbara Colen

Bárbara Colen nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 17 de fevereiro de 1986. Tem formação artística pela escola de teatro Cefart, da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte, onde teve experiências de palco em trabalhos de formatura. Graduada em Direito, largou a carreira na área para se dedicar exclusivamente a de atriz. 

A estreia no cinema se deu no premiado curta Contagem, dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins, da produtora Filmes de Plástico, com os quais volta a trabalhar depois no longa No coração do mundo, que retoma os personagens do curta. "O primeiro filme que eu fiz foi em 2010, com o pessoal da Filmes de Plástico, o curta Contagem. Foi, realmente, a minha primeira experiência com câmera. Eu já tinha entrado em um curso no Palácio das Artes, estava no primeiro ano, e alguém me enviou um e-mail falando que tinha esse pessoal da Faculdade que estava formando no curso e que precisava fazer um projeto de final de curso. Tinha um teste, eu fui lá fazer e saí arrasadíssima, falei “Meu Deus, que péssimo!” Daí passou um tempo e os meninos me chamaram para fazer e foi ótimo. Eles foram para o Festival de Brasília e ganharam prêmio."

A parceria com o cineasta Kláber Mendonça gerou dois filmes de sucesso, Aquarius, em que ela interpreta a fase jovem da protagonista vivida por Sônia Braga, e Bacurau, dirigido por ele em parceria com Juliano Dornelles, premiado em Cannes com o Prêmio do Júri e também marcado pelo protesto da equipe contra o golpe contra o governo da Presidenta Dilma Roussef. No filme, A atriz voltou a contracenar com Sônia Braga " A relação que a Sônia tem com a câmera é um negócio misterioso, e é muito lindo poder acompanhar isso no set, essa inquietação dela de trazer coisas para personagem, de trazer coisas que ela acredita, de falar com a direção “Olha, essa cena aqui precisa ter e eu quero falar isso”. Essa propriedade com a qual ela faz o trabalho, não ser um papel só de passivo, mas ser muito ativo naquilo ali, no processo, e com consciência de várias camadas, consciência da dimensão política daquilo, da dimensão histórica, artística. O interesse dela em estar nos lugares de realmente conviver com as pessoas, e de estar próximo, destruir as barreiras pelo fato dela ser Sônia Braga. Isso tudo é muito lindo, essa inquietação que ela tem, é um fogo assim que Sônia tem de criação, e que é bem bonito". 

Bárbara Colen esteve na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes e conversou com Mulheres do Cinema Brasileiro. Na entrevista ela repassa a trajetória, todos os filmes, a experiência de set, a relação com atores e diretores como Sônia Braga, Grace Passô, Gabriel Martins, Maurílio Martins e Kléber Mendonça Filho, e muito mais.


Mulheres do Cinema Brasileiro: Para começarmos, nome, data de nascimento, cidade em que nasceu e sua formação.

Bárbara Colen:  Meu nome é Bárbara Colen, eu nasci em Belo Horizonte, no dia 17 de fevereiro de 1986. Eu acho que tenho uma trajetória um pouco diferente da maioria dos atores porque eu comecei, na verdade eu trabalhei com Direito até os 29 anos. Depois, com 29, que foi quando eu fui chamada pelo Kléber (Mendonça Filho) para fazer o Aquarius é que eu dei esse passo de largar o emprego público e me assumir como atriz profissionalmente.

MCB: Você é formada em Direito?

BC: Sim.

MCB: Agora, antes do Kléber, o primeiro filme é o curta Contagem (Gabriel Martins e Maurílio Martins)?

BC: O primeiro filme que eu fiz foi em 2010, com o pessoal da Filmes de Plástico, o curta Contagem. Foi, realmente, a minha primeira experiência com câmera. Eu já tinha entrado em um curso no Palácio das Artes, estava no primeiro ano, e alguém me enviou um e-mail falando que tinha esse pessoal da Faculdade que estava formando no curso e que precisava fazer um projeto de final de curso. Tinha um teste, eu fui lá fazer e saí arrasadíssima, falei “Meu Deus, que péssimo!” Daí passou um tempo e os meninos me chamaram para fazer e foi ótimo. Eles foram para o Festival de Brasília e ganharam prêmio. Tem um gap que foi entre esse, que foi em 2010, até 2015, quando fiz o meu primeiro longa, o Aquarius, com o Kleber. Nesse meio tempo, fiquei fazendo teatro e depois disso que eu tomei essa decisão, aí vieram vários filmes.

MCB: Você pode citar alguma peça em que atuou?

BC: Eu não cheguei a fazer peça, eu fiz o curso do Cefart, fiz a formação inteira, então as peças que eu participei foram de final de curso depois, até quis fazer, mas aí aconteceu tanta coisa no cinema que não dava mais tempo.

MCB: Para o Aquarius foi teste também, não é?

BC: Foi. Eu estava em Belo Horizonte e fiz o teste com o Marcelo Caetano. Foi interessante porque foi o último teste do Brasil, eles fizeram em vários estados e Belo Horizonte era a última cidade, era o último teste do último dia de teste. Eu fiz e passou um tempinho o pessoal me ligou, fazendo a primeira sondagem, perguntando se eu cortaria o cabelo, porque eu estava com o cabelo gigante naquela época. Eu falei que topava, e depois me ligaram para me chamar definitivamente. 

MCB: E você já via ou percebia em si uma semelhança com a Sônia Braga para você fazer esse personagem?

BC: Eu acho que não, sabe, acho que fisicamente não, não consegui ver. 

MCB: Mas no filme nota-se.

BC: É, eu acho que tem uma coisa que o Kléber puxou assim, ele queria uma coisa de energia parecida, sabe, então nesse sentido eu consigo ver. E depois também quando eu comecei o processo de preparação lá para o Aquarius e aí eu tive acesso a muito material bruto que tinha sido filmado já, porque eu cheguei no final do filme, a minha participação faltava duas semanas, era uma semana ali dos anos 80 e a última semana já com a Sônia para fechar as cenas com o Irandhir eu acho. Eu tive acesso a muito material que tinha sido filmado com ela, então eu já tinha noção do que ela estava fazendo como personagem, e, para mim, isso foi muito importante, porque aí dá para chegar nesses trejeitos, em umas coisinhas assim.

MCB: Você faz a personagem dela mais jovem, então vocês não contracenam. Você chegou a conhecê-la?

BC: Conheci, conheci demais. A gente estava naquele prédio onde tinha o apartamento mesmo, o prédio era a base, então era tudo muito pequenininho, e aí no primeiro dia ela já me recebeu lá e tivemos contato. Ela não estava direto no prédio, estava em um hotel perto, mas ela sempre ia, então a gente tinha contato sim.

MCB: Você consegue relembrar a sua primeira impressão em um set de cinema? No Contagem que foi o primeiro e depois nesse segundo momento fazendo o longa?

BC: Eu acho que no Contagem aconteceu aquela coisa, como era um set muito pequeno, uma equipe pequena e tinha essa dimensão da pressão, eu acho que eu só tive aquela coisa do prazer muito intenso. Eu me lembro que era um primeiro plano, a câmera estava bem próxima e eu senti uma sensação de pertencimento absoluto com aquilo ali, era como se fosse tudo muito orgânico, muito natural para mim. E, mais do que muito natural, eu adorei a sensação de ter uma câmera na minha frente, sabe. Então do Contagem eu tenho isso, uma sensação de facilidade mesmo, de fluidez, de sentir que aquilo era muito gostoso de fazer. Com o Aquarius já entrou a dimensão de um grande set de filmagem, uma coisa muito profissional em um sentido de estrutura, de Sônia Braga e Kléber Mendonça. Então, para mim, essa segunda experiência, eu já estava mais nervosa, mais ansiosa, mas durante o processo foi muito bonito, do jeito que aconteceu. Porque eu acho que, de alguma maneira, toda a atmosfera de set que o Kléber cria tão bem vai contaminando tudo. Então eu me lembro que no final a gente estava muito vivenciando aquele apartamento com os companheiros de cena, e aí essa sensação foi passando, sabe. Era muito legal também ver, ter a estrutura de algo maior, as funções, ver tanta gente, entender um pouco dessa dinâmica, o que era a função de cada pessoa ali no set, dos movimentos de câmera, filmando um carro.  Eu me lembro muito de uma sensação assim, de estar na beira da praia lá em Recife, olhar, e estava toda a atmosfera do filme lá presente. Você realmente está em um lugar e está ventando, tem uma praia linda na sua frente, então, assim, tem todo um exercício de imaginação para outras coisas, mas essas coisas do set da locação eu me lembro que me impressionou muito também. 

MCB: Agora, para além do seu talento você teve muita sorte também, é, porque nos dois formatos você acabou estreando em filmes muito comentados, premiados, que circularam. Como foi para você construir essa personagem, no Contagem e no Aquarius?

BC: No início, a gente começa muito às cegas, eu não entendia muito bem o processo, se é que existia algum processo. Eu não tinha uma técnica ou de experiência com outros atores para poder entender como era feito, então você vai meio que em um lugar que é meio que intuitivo mesmo. No caso do Contagem, tinha uma coisa muito forte com a relação, a relação com o Robert (Frank) se deu de uma maneira muito rápida, a conexão, então era meio que um jogo mesmo, de diálogo. Eu acho que fui ganhando o personagem, a situação do filme era muito clara, simples e eficaz, o jogo com o Robert funcionou de uma forma muito gostosa. Eu acho que foi muito fluido nesse sentido. Eu fui para Contagem na época, eu sou de BH, para poder ter um pouco de noção daquela atmosfera, mas eu não tinha muito a noção do que era fazer uma vivência no lugar, de imersão e tal. No Aquarius, que já era um outro processo, foi mais difícil, porque eu tinha como parâmetro o que a Sônia estava fazendo, a construção dela, não tinha como eu chegar com uma proposta de personagem minha. Por mais que uma pessoa mude com o tempo tem algumas restrições, o que é muito bom em algum sentido, isso te facilita, acho que restrição para ator é bom, porque você cresce muito nas restrições. Por outro lado, eu já estava condicionada, e aí foi em um lugar mais técnico, talvez de realmente entender uma gestualidade, de tentar imprimir esta gestualidade no corpo. Como era de época, eu tentei passar por esse lugar, o que era aqueles anos 1980, e voltar em algumas fotos, algumas músicas, e de imprimir todo um tempo que eu acho que é importante quando a gente está em uma coisa de época, importante para a construção da personagem. 

MCB: Com o Aquarius você foi para Cannes, teve aquele episódio do protesto. Você imaginou que estaria no meio desse furacão todo assim no início de carreira?

BC: Nunca! Eu acho que o fato do meu primeiro longa ser interpretar uma personagem que a Sônia Braga estava fazendo me deu um pouco dessa vertigem de falar “Caramba, as coisas podem acontecer muito rápido”. Então eu já tinha vivido um pouco dessa vertigem na hora de fazer o filme. Mas, cara, Cannes foi o primeiro festival de cinema que eu fui na vida, começar ali é uma loucura, mas, ao mesmo tempo, como é o primeiro festival, você vai meio que com o olho de primeira vez. Talvez se eu já tivesse uma carreira de atriz e tivesse vivenciado muitos festivais, eu iria ter melhor uma vivência do que era Cannes. Como eu não tinha e eu estava super leiga naquilo, então eu cheguei falando, acho que hoje em dia eu consigo ter mais dimensão da importância do festival do que naquela época. O que foi bom para mim, foi meio que uma defesa, porque eu acho que se eu tivesse na primeira experiência com esse peso do que era aquilo eu tinha desmaiado. 

MCB: O próximo filme é o Baixo Centro, do Ewerton Belico e do Samuel Marotta.

BC: Foi.

MCB: Você tem uma participação linda, contracenando com o Renan Rovida.

BC: Com o Renan tem uma cena longa, e tem uma cena com a Cris (Moreira). 

MCB: E tem uma cena performática sua maravilhosa.  O Baixo Centro tem aquele registro, aquele caldeirão do centro de Belo Horizonte, mas ele também ele evoca a questão da noite, tanto da periferia quanto daquela noite. Você transita nesses momentos.  Como foi fazer o Baixo Centro?

BC: Foi muito legal, porque eu já tinha passado pelo Aquarius, então eu já estava mais situada como atriz. E tinha um grupo de atores muito bons, muitos profissionais do teatro, gente que já chegou e tinha experiência. O Ewerton e o Samuel já tinham toda uma coisa de trazer referências, então em nossa preparação a gente viu muito filme. Eu acho que foi a primeira vez que eu tive um trabalho estruturado de preparação, de falar “Olha só, eu posso buscar nessa fonte para preparar essa personagem”. Frequentar o centro de Belo Horizonte e entender o que era, o que podia ser essa personagem, o que podia ser esses jovens que estavam ali surgindo. Entender uma experiência muito bonita porque eu estava experimentando, começando a entender que tinha alguns passos que me davam mais segurança. E como teve muito tempo para ensaio, a possibilidade de passar as cenas antes, então muita coisa foi descoberta durante o ensaio. É importante quando a gente tem essa possibilidade de ir explorando a personalidade e ir abrindo camadas e possibilidades antes de filmar, porque, às vezes, isso não é possível. E no meio do filme você vai caindo, meio que tropeçando, e descobrindo coisas. Por outro lado, o Baixo Centro tem essa coisa de ser Belo Horizonte, minha cidade, então tem toda uma familiaridade com a coisa do espaço e que está muito presente no filme. Era uma personagem muito diversa, então tinha essa cena que era mais performática, que era uma outra linguagem. Tinha uma cena de texto muito forte com o Renan Rovida, que era uma coisa de contracenar mesmo. Tinha umas cenas sozinhas de andança, de perambulação, então tinha vários momentos que, para mim, foram muito prazerosos, poder explorar várias coisas em um personagem.

MCB: Essa cena específica, performática, ela fica marcada, pelo menos para mim ficou. A câmera do cinema gosta de você, na hora eu me lembrei de outra atriz, a Clara Chouveaux, como a câmera filma ela.

BC: A Clara é muito foda!

MCB: Ali com ela é a mesma coisa, você percebe isso, o quanto o cinema parece ser o seu espaço natural?

BC: Percebo, eu não vou te falar que não percebo, com modéstias mineiras. Porque sim, eu acho que tem uma questão que é curiosa, né, misteriosa até. Não sei por onde passa, o que determina isso, se é só uma questão fotogênica minha, que não tem a ver também em ser uma pessoa feia ou bonita, é outra coisa.

MCB: Nem com talento. 

BC: Nem com talento. Então, às vezes, eu acho isso meio injusto com os atores, porque eu fico pensando, tem atores que, por mais que tenha uma formação, por mais que estudem a vida inteira, essa questão da câmera, tem essa coisa da câmera gostar, né, a câmera te escolher. 

MCB: Refazendo a minha fala, é um talento, mas é um talento oculto, né, porque tem atores talentosíssimos que não aparecem, tem alguns que são talentosíssimos ou menos talentosos, mas que a câmera faz assim, explode. 

BC: E é isso, é uma coisa completamente sem controle, você não tem dimensão dela enquanto você não tem na sua frente uma câmera filmando. Eu acho que tem uma coisa também do estar gostando de ser filmado, porque, às vezes, eu vejo companheiros de teatro que não têm esse prazer, essa vontade de ter a câmera, porque acha que a câmera é um fator limitante. Que está lá no seu movimento todo de expansão e aí quando põe uma câmera na sua frente é mais um fator coercitivo. Para mim é diferente, eu tenho uma relação que eu sinto, eu me sinto crescer com ela, parece que essa triangulação ali no olho, câmera ator e equipe acompanhando é uma coisa que me impulsiona, eu sinto uma energia vindo dessa coisa. Então eu acho que tem esse lugar de conforto, tanto que você sente à vontade de brincar com ela de alguma maneira e de desfrutar dessa relação que é misteriosa. Não consigo falar dela direito, mas que tem, é tão concreto, eu sinto uma sensação do set que eu sei exatamente o que é aquilo, quando começa aquela coisa da câmera, o magnetismo assim. Eu acho que tem atores que gostam e tem atores que não, eu, definitivamente, adoro.

MCB: E tem também o diretor né. Por exemplo, o Walter Hugo Khouri fazia muito isso, ele filmou muitas mulheres, muito atrizes, e as cenas são muito impressionantes. Se a gente pegar hoje mesmo a Paula Gaitán em Exilados do Vulcão, aquelas mulheres ali, é impressionante a forma que a câmera projeta.

BC: Tem isso também, que é do olhar de quem está dirigindo.

MCB: Além da câmera.

BC: Tem o gosto da pessoa.

MCB: Falando nesse diretor, a percepção dele com a atriz também.

BC: Exatamente. Eu me lembro do Aquarius, quando a gente foi filmar, era o segundo dia talvez, e o Kléber falou “Vamos colocar uma câmera em primeiro plano na Bárbara”. Eu me lembro dessa sensação, quando a câmera aproximou, de eu falar “Que bom, que delícia”. E é o diretor sacar que você pode curtir aquilo, o tanto que você pode dar, que pode tirar de você.

MCB: Foi nesse período do Baixo Centro que você faz TV? Aquele especial  "Dia dos Reis"?

BC: Não, depois do Baixo Centro veio No Coração do Mundo, foi um emendado no outro. 

MCB: Foi logo em seguida?

BC: Foi logo em seguida. Então em 2016 foi Baixo Centro e logo depois No Coração do Mundo. Foi muito difícil isso porque eu já saí de um filme emendando em outro, quando eu estava terminando Baixo Centro eu já estava fazendo o ensaio para o No Coração do Mundo.  O No Coração do Mundo tem essa coisa de voltar em um personagem que já tinha sido feito há muito tempo atrás, ela estava com uma nova proposta. No roteiro, os meninos já tinham transformado essa personagem, mas de toda maneira era revisitar aquele lugar que eu curtia, acho a Rose muito divertida.

MCB: Eu adoro No Coração do Mundo. Não é só porque eu faço uma participação e nem porque eles são meus amigos, mas eu adoro mesmo. E você tem duas cenas muito impressionantes. Aquela cena que você encontra a Kelly Crifer, na garagem do ônibus, com você conversando com ela, tem ali, para mim, uma apropriação tão grande da personagem que a gente acredita naquilo. E a outra cena que, para mim, é uma das mais belas do filme, que é você e a Grace Passô na rede, aquilo eu acho que é um dos pontos mais altos do filme.

BC: Aquela cena conseguiu imprimir tudo que aconteceu no set, aquele dia, sabe, porque filmar aquela cena com a Grace foi exatamente aquilo, a gente estava muito à vontade, muito conectada, foi uma coisa assim de sentir um conforto naquele tempo, nos silêncios. A Grace é muito impressionante, né. Atuar com alguém que você admira muito você já chega “Ai meu Deus do céu, vamos lá, Grace”. Por outro lado, estar com um ator muito bom te permite atuar, praticamente viver, e aí tudo fica muito fácil. Então essa é a sensação que eu tive fazendo com a Grace, não tinha aquela preocupação com o personagem ou com atuação, porque era simplesmente sentar, olhar para ela e viver aquele momento. Tem alguns atores muito fodas que acho que te excluem daquele lugar de brilhos dele e tem outros que te acolhem, eu acho que a Grace te faz levar junto com ela, pegar e te levar para dentro daquela situação, então foi isso. Quando eu vi o filme, quando eu vi aquela sequência tão longa que, e aquilo eu acho que foi praticamente um take só que a gente fez, eu falei “Que bom, que bom que ficou”. Porque eu acho que quando você filma dentro de um set você tem uma sensação que o filme não consegue captar exatamente.

MCB: Porque toda aquela parte sua com o Frank é ótima, tudo remete muito ao Contagem.  Em No Coração a sua personagem é muito ampliada e por isso citei essas outras cenas. 

BC: Eu acho que para os meninos foi muito difícil isso, tinha um material para fazer uma série, muita gente, muitos personagens, então muita coisa foi filmada. Acho que, foi difícil fechar aquilo e entender o que poderia ser filme em um tempo mais justo. E o que você fala, dessas cenas serem diferentes do Contagem, eu acho que, especialmente, na cena com a Grace eu fiquei muito feliz de ela existir no filme, porque é o momento de duas mulheres e duas mulheres que são amigas. Eu acho que o No Coração do Mundo traz essa relação muito forte, dessa presença feminina dona de si, essas mulheres que estão com poder de decisão sobre as próprias vidas. Ter isso representado em diálogos, o que é justamente muito difícil de acontecer, duas mulheres falando de outras coisas, sozinhas, no caso do filme foi muito legal, fiquei muito feliz de existir. 

MCB: Eu ia falar exatamente isso, porque eu escrevi sobre o filme. O filme é das mulheres, ne? As atrizes são muito fodas, tudo assim, desde vocês até quem está fazendo uma ponta, como a Christiane Antuña.

BC: A Rejane (Faria), de motorista de ônibus.

MCB: Sim, muito foda, não só as atrizes como as personagens. 

BC: Eu fico pensando no tanto que isso já foi pensado um pouco, mas por outro lado é acho que é o normal, eu vendo a minha vida no contexto de tudo, comparando as minhas avós com os meus avôs. Você vai para Contagem e é isso mesmo o que você vê, as mulheres são muito mais fodas, os homens completamente perdidos, muito à deriva na vida e com essa questão do álcool muito presente. Enfim, as mulheres ali tocando o bar, trabalhando, levando a família e tal. Então eu acho que por outro lado o filme só reflete o que já é. O que me impressiona na falta de representatividade da mulher no cinema ou na maneira como somos colocadas, porque eu falo “Cara, você não está reproduzindo o que está à sua volta. Você prestou atenção dois segundos no que acontece mesmo? Vocês vão ver que o lugar de poder é das mulheres em todos os lugares, em todos os núcleos de trabalho”. O que acontece na vida são mulheres empoderadas com poder de decisão na vida, que tocam tudo, por isso que pessoal fala “Uma mulher muito forte”. Isso me incomoda completamente, isso não existe, a mulher tem que ser forte, e não tem uma divisão das mulheres fortes e das mulheres fracas, o que é essa mulher fraca? Então quer dizer que para eu ser vista como uma mulher eu tenho que ser uma mulher forte? Mulher masculina? O que está remetendo essa divisão assim? Porque é isso, na minha vida o tempo todo eu estou cercada de exemplos femininos, desde as minhas avós que foram pessoas determinantes na pessoa que eu sou hoje. Então eu acho que o filme reproduziu o que já existe, né, naquele contexto. 

MCB: E aí acontece a televisão?

BC: Na verdade, a televisão entra no final do ano passado, final de 2018, eu já tinha feito Bacurau. Depois de No Coração do Mundo veio o Breve Miragem de Sol.

MCB: Então vamos falar dele, esse filme do Eryk (Rocha) eu não conheço.

BC: Ele estreou no Festival do Rio, deve estrear esse ano nos cinemas. Foi um filme muito especial para mim, todos foram, mas este eu acho que me colocou em uma experiência muito radical de imersão que eu ainda não tinha vivido e que começou desde o primeiro momento. 

MCB: Foi convite também?

BC: Não, foi teste. Me lembro que iria fazer uma viagem e pedi para o pessoal do Eryk para eu fazer o teste antes de todo mundo, daí fui lá para o Rio. E aí não era um teste, aí que já começou a ser diferente, o Eryk me chamou para a casa dele e a gente começou a tomar um café, lá em Laranjeiras, uma casa linda. Aa gente começou a tomar café, tranquilo, começamos a conversar, com uma hora de conversa ele pergunta se podia ligar a câmera, eu disse tudo bem, continuamos a conversa com a câmera ligada. Depois de mais um tempo ele fala, ok, vamos lá, fomos para um carro, porque era taxista, então todas as cenas eram no carro, todas não, algumas, e aí que a gente foi para a parte texto. E aí não era um teste, era o Eryk filmando, eu com o Otto fazendo a cena, mas meio que já sendo dirigida por eles, não tinha uma sensação de acabou.  E aí passou fevereiro e o Eryk me chamou, eu fui fazer um segundo teste em julho porque já tinha sido definido que seria o Fabrício de Oliveira o protagonista, então eu precisava fazer um teste com ele, ver se dava essa coisa da química mesmo. Eu voltei e fiz com o Fabrício, a mesma coisa, horas e horas a gente conversando, batendo papo. Eu fui receber a reposta desse negócio em setembro, o meu teste tinha sido em fevereiro, e aí foi uma loucura, porque o Eryk me levou para o Rio, e Joelma também que deu a possibilidade de isso acontecer, a produtora. Eu fiquei na Zona Norte do Rio morando, eu ia para o Hospital, fazia plantão com as enfermeiras, então foi a primeira vez que eu tive essa imersão de fato muito forte, intensamente com tudo aquilo. Escrevi muita coisa que aproveitava, então eles tinham um interesse muito grande em tudo que era pessoal, tudo que eu podia trazer como Bárbara para a construção dessa personagem.

No processo de filmagem, a gente tinha essa coisa maravilhosa de doze horas para fazer uma cena, que é um luxo, é incrível você ter tempo para fazer uma cena, porque aí já tinha um texto que era muito bem escrito, era um roteiro que eu lendo eu não tinha dificuldade nenhuma de falar aquelas palavras. A gente ia para filmar com improvisação com o Fabricio, em um táxi, criando, filmando coisas, e depois de todo um processo de improvisação que a gente fechava a cena. Às vezes voltava até para o texto original, mas aí já com um outro registro, em um outro lugar e uma possibilidade de criação de coisas. Eu me lembro de uma cena da Funai que a gente fez que era tipo isso, foi uma diária inteira naquela cena, refazendo e refazendo, e eu me lembro que nem ficou no filme, mas é um privilégio você pode viver esse tipo de processo. Eu me lembro da gente, 5 horas da manhã, depois de eu ter entrado no mar, o Eryk filmando eu entrando no mar, a gente fazia o texto já com o sol nascendo, eu lembro muito dessa sensação da fisicalidade, da coisa do corpo, do cansaço estar no corpo, no movimento do seu corpo, sabe, porque tinha tempo para vivência mesmo. Então foi um filme em que eu me senti muito livre como atriz e como coautora da coisa, realmente. O Eryk o tempo todo pedia “Bárbara, escreve um texto e me manda por áudio no WhatsApp”. Nem ficou, mas para mim a personagem foi muito importante, um áudio no WhatsApp como se fosse uma ligação da personagem para a mãe das meninas contando a situação no hospital, e aí eu ia lá escrevia tudo que eu tinha vivido nesses áudios, então foram muitas coisas de frente de criação.

MCB: E aí vem o Bacurau?

BC: Não, não, aí vem o filme da Maria Clara (Escobar) que estreou agora, Desterro.

MCB: Então vamos falar sobre ele.

BC: O filme de Maria Clara, já começou muito diferente também. Ela me pediu “Barbara, escreve um texto, um monólogo para mim”. Eu nunca tinha feito, caguei nas calças de medo, “Meu Deus do céu, o que eu vou fazer?” Escrevi e mandei para ela. Fui para o Rio Grande do Sul logo depois do Breve Miragem, é doido quando você sai de um processo e cai em outro, porque tem todo aquele processo de transição. O filme era um encontro, não um encontro, mas eram várias mulheres. Eram só atrizes absurdas, e estavam lá, Isabél Zuaa, era a Dona Zezé (Maria José Novaes de Oliveira), Silvana Stein, E aí a gente naquele furor criativo, trocando figurinhas como mulheres, naquele concentrado, em um ônibus trip lá do Sul do Brasil. Foram dez dias só, mas foi bem marcante para mim, até porque foi o último filme de Dona Zezé e eu lembro dela muito feliz, muito empoderada. Primeiro porque estava fazendo um filme que não era do André (Novais Oliveira), um filme que ela tinha que decorar um texto, porque não era improvisação, e um filme que ela viajou para fazer, então, ela estava muito feliz. Todas nós estamos muito felizes, a gente dividia os quartos, então tinha toda uma coisa de dividir experiências, sabe, foi um encontro tão maluco porque o filme é sobre isso, mulheres, é sobre as possibilidades de existência de várias mulheres. É muito bonito quando você vê a experiência de set sendo traduzida no filme de alguma maneira, porque sempre que cai no lugar da vivência eu acho que é um lugar que mais me interessa.

MCB: Você teve essa possibilidade de poder trabalhar duas vezes com os diretores da Filmes de Plástico e também com o Kléber, é curioso porque são seus dois primeiros filmes e você teve segundos encontros.

BC: Esses encontros são uma delícia, é muito gostoso. 

MCB: Para o Bacurau foi teste ou convite?

BC: O Bacurau foi convite, o Kleber me convidou direto, me mandou o roteiro. Eu falei, “Caralho, que roteiro é esse!”.

MCB: Então o seu personagem já era para você?

BC: Já era para mim. O roteiro do Bacurau já era uma coisa maluca, assim, Tereza lá nas primeiras quarenta páginas, depois Tereza sumia, e aí vem os americanos. “O que está acontecendo aqui?” Eu me lembro de ler a história completamente chapada “Que história é essa?” E com uma sensação que era uma história muito nova. E aí tem todo esse conforto que eu tive com os meninos em No Coração do Mundo, de já conhecer o modo de fazer, de já conhecer as pessoas, e isso é muito gostoso. É importante para mim, pelo menos essa sensação no trabalho me ajuda muito, me dá liberdade. Bacurau foi uma coisa louca, e foram três meses no Sertão, no Seridó, quarenta atores, é um grupo de atores muito grande, gente que ia e vinha, eu fiquei no hotel o tempo todo, teve toda a pré, todo o tempo lá de filmagem, só eu e o Thomás (Aquino), os outros atores iam e vinham, parecia um encontro sabe.

Foi outro filme que eu acho que a vivência que foi criada dentro da convivência dos atores ficou muito refletido no filme, quando você tem aquela sensação de comunidade. Eu acho que isso aconteceu também na equipe, era uma equipe completamente apaixonada pela história que estava contando, e a gente estava trabalhando muito, porque Bacurau é um filme grande para o orçamento que teve, para o tempo, era tudo muito justo. E ainda teve problema de chuva, porque choveu muito, então tinha dia que a gente não conseguia chegar no set, chuva no sertão. Era muita coisa que a gente tinha que lidar, era um processo ambicioso, da estrutura, e a vontade de fazer era tamanha que era muito arrebatador. À medida que você vai filmando, você vai criando outra realidade, bem metafísico isso mesmo, que está coexistindo com a sua no set, sabe, parecem dois mundos. A sensação que eu tinha fumando Bacurau é que aquele mundo estava sendo criado, que ele estava coexistindo invisivelmente com a gente mesmo. Tanto que era difícil, às vezes, eram cenas muito violentas e pesadas, então de sair do set e falar “Como que eu vou fazer para dormir agora, como eu vou fazer para deixar isso de lado?” Porque a atmosfera criada e essa coisa de atmosfera é muito louco, eu acho que quando a direção realmente consegue isso, de você chegar no set e já estar posta a atmosfera da cena que você irá contar, você precisa fazer muito pouco como ator, sabe. Às vezes tem uns sets que são muito dispersos, então você chega, uma coisa meio fria, você tem um esforço para poder tirar a conexão. No Bacurau foi completamente o contrário, a sensação que eu tinha é que tudo já estava nesse mundo invisível que a gente ia criando, ele já estava ali, meio que catando aquela sensação e colocando na história.

MCB: Quando você leu o roteiro ou quando você estava filmando, você tinha dimensão do tamanho que o Bacurau iria tomar?

BC: Acho que intuitivamente já, racionalmente a gente se prende um pouco, é difícil também você fazer uma coisa pensando, eu não fico pensando no depois, eu sou muito concentrada nesses processos. Acaba que você vive mesmo é o processo, depois é depois, aí já não é a sua vida mesmo, acho que o diretor participa mais desse processo. Então acho que sim, acho que pela coisa da história ser tão nova, a estrutura de set que a gente tinha, a paixão com a qual estávamos trabalhando e criando aquela história sabe, eu tinha a sensação que seria um filme grande, que seria uma coisa potente e que iria chegar nas pessoas de uma nova maneira. Quando o negócio vem extrapola, nunca imaginei que fosse ser do jeito que foi, nunca imaginei ganhar prêmio em Cannes, isso aí era demais. 

MCB: E o reencontro com a Sônia Braga?

BC: Sônia é muito impressionante. Todos esses atores que carregam em si a história do cinema, é essa sensação que eu tinha com a Sônia, de eu estar no hotel com ela jantando, e ela começar a me contar de coisas, anedotas da vida, e aí passa por toda a história do cinema brasileiro. Daí você fala “Caralho, que loucura, essa pessoa realmente viveu tudo aquilo”. Eu acho que o mais foda de ver a Sônia é ver o processo dela na preparação, ela está tateando e fica insegura com algumas coisas e tal, mas na hora que vai filmar explode. Eu me lembro da Sônia ensaiando a cena que ela está bêbada, ela perguntando para o Kleber, para o Juliano, e Sônia lá, no meio de umas cem pessoas, dominando completamente tudo. A relação que a Sônia tem com a câmera é um negócio misterioso, e é muito lindo poder acompanhar isso no set, essa inquietação dela de trazer coisas para personagem, de trazer coisas que ela acredita, de falar com a direção “Olha, essa cena aqui precisa ter e eu quero falar isso”. Essa propriedade com a qual ela faz o trabalho, não ser um papel só de passivo, mas ser muito ativo naquilo ali, no processo, e com consciência de várias camadas, consciência da dimensão política daquilo, da dimensão histórica, artística. O interesse dela em estar nos lugares de realmente conviver com as pessoas, e de estar próximo, destruir as barreiras pelo fato dela ser Sônia Braga. Isso tudo é muito lindo, essa inquietação que ela tem, é um fogo assim que Sônia tem de criação, e que é bem bonito. 

MCB: E tem outro ator que eu achei fabuloso, o Thomas Aquino, eu fiquei muito impressionado. 

BC: O Thomas é muito impressionante, ele tem uma vivacidade, uma capacidade de improvisação que é incrível. Eu ficava impressionada com isso no set, com ele assim de uma força, de logo já estar muito apropriado do personagem. A gente virou grandes amigos, ele é uma pessoa muito generosa, aberta. E tem o fato de a gente ter ficado lá direto, a Sônia também ficou, então a gente tem alguma responsabilidade sobre o grupo, algo nesse sentido. O fato de ter o Thomas sempre tão caloroso dentro daquele grupo foi muito importante para o filme, para além de tudo que ele faz como ator, o espírito dele dentro do set era uma coisa que alimentava a história. 

MCB: E aí vem a televisão.

BC: Aí vem a televisão. Eu fiz o "Dia de Reis", um especial da Globo Minas, foi minha primeira experiência de televisão, mas com o Marcos Pimentel, que era de cinema, cinema de documentário. Então teve uma equipe pequena, era muita câmera na mão, era tudo uma estrutura de cinema, e ele não queria que fosse um registro de televisão.

MCB: Mas depois você faz uma série, não é isso?

BC: Sim. Acho que nunca vivi TV em um nível hard de novela, de duas câmeras, esse esquema Projac de meses. A série se chama “Onde está meu Coração?”, vai estrear agora em 2020. Foi selecionada para Berlim, vai passar alguns capítulos lá.

MCB: De quem é a direção?

BC: A direção é da Luísa Lima, o José Luiz Villamarim faz a coordenação artística e o texto é do George (Moura) e do Sérgio (Goldenberg). Foi muito louco porque aí já era contracenando com Fábio Assunção. Eu falei “ Fábio, deixa eu te falar uma coisa, eu sei que você tem 27 anos de experiência, mas essa é a minha primeira, então vamos juntos”. O Fábio é muito acessível, muito legal, eu dou muita sorte com meus companheiros de cena, eu sempre construí boas relações. E aí é lindo também, você ver um ator que que já tem muito, a coisa da técnica, do domínio daquele meio, eu ficava olhando Fábio e, realmente, é impressionante.

MCB: As pessoas subestimam, mas fazer novela não deve ser fácil mesmo não.

BC: É difícil demais, demais. A coisa do tempo da preparação é diferente, e quando você faz um personagem coadjuvante, que era o meu, que você faz uma participação, você não tem aquela coisa de vivência com a equipe. Eu estava tão acostumada no cinema, né, era meio que seis diárias espalhadas durante cinco meses, então eu ia, filmava uma cena e ia embora. Então eu acho que esse aspecto para mim era o mais difícil na filmagem. A Luísa tinha muito interesse no tipo de interpretação do cinema, então não tive que mudar a linguagem para nada, sabe, não me foi requisitado isso em nenhum momento, então era bem tranquilo, foi bem gostosa a experiência. Depois eu fiz uma série com o Marcelo Caetano para o Canal Brasil chamada “Hit Parade”, que foi filmada em Belo Horizonte. Nessa série foi o que eu entendi o ritmo de trabalho de televisão, aí era doze horas por dia, amando aquele negócio, que é muito legal também. Eu sinto que interpretar tem essa coisa que é meio ginástica, você vai exercitando o instrumento de trabalho, então é essa coisa de ter que fazer tudo muito rápido, de ter pouco tempo, e, por outro lado, vai te dando uma agilidade que é bem interessante quando você conquista. O Marcelo dá muita abertura para criação, querendo, me pedindo muito para trazer para aquela personagem. Tinha uma preocupação que não fosse uma série de homens, porque é uma série dos anos 80, no contexto de musical, então tinha personagem masculino muito forte, e a minha personagem eu precisei construir ela bem firme, bem presente, para a gente ter esse contraponto. Foi um ritmo super intenso de filmagem. Depois disso eu fiz um filme em Goiás, chamado Fogaréu, uma produção da Bananeira Filmes, com uma diretora que está estreando, que é a Flávia Neves, e que foi também bem intenso, porque é uma protagonista muito grande. Então das 30 diárias do filme eu estava em 27, e filmando as cenas em um dia, foi uma loucura isso.

MCB:Vamos falar um pouco sobre esse filme? 

BC: É muito interessante porque foi entrar nessa dimensão de Goiás, que é um mundo muito nova para mim. Eu não entendia, eu tinha minhas suspeitas do que é Goiás, como um estado agropecuarista e misógino, racista, enfim, todas aquelas questões. E daí ir para lá e vivenciar a história. Porque tem uma história do lugar, a personagem se  chama Fernanda, ela volta para essa cidade para poder descobrir um pouco de suas origens, ela é filha adotiva, quer saber quem são os pais.  Lá em Goiás Velho tem uma coisa muito maluca, tem muitas pessoas com deficiência mental, não se sabe muito bem se foi coisa de mineração ou se foi o casamento entre parentes que foi trazendo esse problema. Uma pessoa de fora não pode falar isso, mas quem é de lá chama essas pessoas de bobos, tem esse termo bobo pra se referir a elas. Eram umas histórias muito cruéis, porque quando do nascimento, se pais viam que a criança tinha uma deficiência mental eles as colocavam na roda de adoção da igreja. Daí, as famílias ricas pegam essas crianças, levam elas para casa e elas são criadas como escravos, trabalham como servos. E com as famílias ricas se sentindo muito generosas por estarem ajudando aquelas pessoas, mas no fundo é um regime de escravidão que permanece até 2019, até 2020. Teve um menino da equipe mesmo que era de lá, ele falou “Engraçado, a minha família tem dez bobos trabalhando”. Eu nunca tinha pensado sobre isso, então Goiás foi entrar com umas questões sociais muito pesadas, foi um filme difícil para mim nesse sentido, porque era um filme em que a realidade estava sempre superando tudo que estávamos fazendo. Eu me lembro que um dia eu estava lá me preparando para um cena e tinha uma moça super simpática que iria fazer figuração, quando a gente saiu ela me contou que a mãe dela era uma dessas bobas, que ela tinha sido durante toda a vida estuprada pela cidade. Que tinha tido vários filhos e perdeu essas crianças, as pessoas tiravam essas crianças dela,  e que ela ficou completamente louca no final da vida. Lá ainda tem a questão dos  asilos em que são trancafiados as mulheres loucas, tanto essas que têm algum tipo de deficiência mental ou que essas famílias usam o serviço dessas pessoas a vida inteira e quando elas ficam mais velhas elas simplesmente as colocam lá porque não interessam mais. Ou qualquer mulher que tenha um desvio de conduta pode ser tranquilamente colocada nesse lugar.  

MCB: E esse é seu último trabalho? 

BC: Esse foi meu último trabalho em dezembro, engraçado falar assim porque você toma dimensão um pouco de tudo que está acontecendo.  

MCB: Você não está envolvida em algum filme?

BC: Não,  agora tenho alguns projetos para esse ano, eu não sei para quando vão ser. Talvez eu faça um filme com Maurílio (Martins), tem um outro projeto com o Marquinhos Pimentel para o meio do ano, tem um projeto no México, mas essas datas ainda estão meio flutuantes, não sei quando vão ser.  

MCB: Vamos então para  as únicas duas perguntas fixas do site. Qual o último filme brasileiro a que você assistiu?  

BC: Agora aqui na Mostra, o de ontem, eu vi três ontem, mas um que eu queria falar é o da Helena Ignez que eu vi, o Fakir, que foi foda, achei muito impressionante aquilo. 

MCB: E qual mulher do cinema brasileiro, de qualquer época e de qualquer área, que você deixa registrada na sua entrevista como uma homenagem? Alguém que você goste, que venha no seu coração. 

BC: No meu coração eu acho que é a Glauce Rocha, eu tenho uma coisa com ela muito forte, eu acho ela muito brilhante. O trabalho dela no cinema me impressiona, me instiga em um lugar profundo da atriz que eu quero ser. E dela na vida também, eu acho que ela tem uma vivência, um pertencimento daquilo tudo, ela tem uma relação com a profissão, com o lugar político na vida que é muito mais ampla, então vai para ela a minha homenagem. 

MCB: Muito obrigado pela entrevista.

BC: Muito obrigada, querido.


Entrevista realizada em janeiro de 2020, durante a 23a Mostra de Cinema de Tiradentes.


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 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.