Ano 20

Maria Augusta Ramos

Maria Augusta Ramos é um dos grandes nomes do documentário brasileiro. Nascida em Brasília, DF, em 16 de novembro de 1964, começou na carreira artística estudando música - graduou-se na UNB e estendeu os estudos em estadias na França e na Inglaterra. Em 1990, Maria Augusta Ramos especializou-se em direção e edição na Holanda, país onde terá trabalhos premiados - Butterflies in your stomach (1998) premiado pela TV holandesa; e Desi (2000) Prêmio de Público no Festival de Amsterdã. “Depois disso eu comecei a trabalhar para televisão pública holandesa, trabalhei na parte infantil da televisão e fiz uma série documental sobre crianças e o amor, eram seis episódios de 15 minutos, uma série documental com uma proposta bem interessante. Ao mesmo tempo, comecei a desenvolver roteiros e fiz outros curtas também. Eu resolvi fazer um longa com uma menina de 10 anos na época, chamada Desi, e aí eu fiz meu segundo longa que se chama Desi, é um filme que se passa na Holanda, Amsterdã, em holandês, e que ganhou o prêmio de público em Amsterdã, prêmio de melhor documentário no Festival de Cinema Holandês.”

Maria Augusta Ramos dirigiu um dos documentários mais impactantes do Cinema da Retomada: Justiça (2004), em que assinou também o roteiro. “O Justiça representou essa necessidade, meu desejo de voltar ao Brasil e de fazer um filme no Brasil depois de muitos anos morando fora. De olhar para a sociedade brasileira e as mudanças que estavam acontecendo, e, principalmente, refletir sobre a questão da tensão urbana”. Com Juízo, volta a impactar: “O Siro Darlan, que hoje é desembargador, mas na época era Juiz da Primeira Vara da Infância e Juventude, viu o Justiça, gostou muito e me convidou para uma conversa. Ele me perguntou porque eu não fazia um filme sobre os menores infratores dentro do universo da infância e juventude, o que eu nunca imaginei ser possível pela questão da lei que impede que o menor infrator seja exposto. E também porque eu nunca imaginei que eles me permitiriam, que os juízes da Vara da Juventude me permitiriam filmar”.

Maria Augusta Ramos dirigiu outros documentários, como Seca, Morro dos Prazeres e Futuro junho”. “Então não é que eu me interesso pelos excluídos, eu me interesso pela sociedade, eu antes de mais nada me interesso pelas relações humanas e sociais, pela interação do indivíduo com o outro, esse outro sendo família, sendo a comunidade, sendo a sociedade. Isso que me interessa, essa interação, essas relações de poder e como isso nos forma, forma esse indivíduo, então no fundo falar da sociedade através do indivíduo”.

Maria Augusta Ramos esteve na 19a Mostra de Cinema de Tiradentes lançando Futuro Junho e conversou com o Mulheres do Cinema Brasileiro. Ele repassou sua trajetória e falou sobre sua formação, os primeiros trabalhos, a experiência na Holanda, os filmes como Justiça, Juízo e, claro, Futuro Junho, e muito mais.
 

Mulheres do Cinema Brasileiro:  Para começar, nome, cidade em que nasceu, data de nascimento e formação.

Maria Augusta Ramos: Meu nome é Maria Augusta Ramos, nasci em Brasília, em 1964, ano da Revolução (Ditadura civil-militar),16 de novembro de 1964. Eu estudei Música na UNB, sou graduada em Música, depois eu estudei fora, fiz Mestrado em Londres, fui morar na Holanda e fiz Academia de Cinema, me tornei documentarista.

MCB: Na década de 1990, não é isso?

MAR: Ai meu Deus, eu tinha 28 anos, agora tenho 54, faz as contas.

MCB: 1992.

MAR: 1991 mais ou menos, eu terminei a Academia de Cinema com 30 anos, 1992.

MCB: E aí você já começa a dirigir filmes lá, não é isso?

MAR: Isso.

MCB: Você poderia citar alguns desses trabalhos? Eu sei que tem um que até ganhou prêmio lá em Amsterdã.

MAR: Primeiro eu fiz dois filmes durante a Academia, ainda estudando, e o meu filme de conclusão, que eu considero assim de certa maneira, meu primeiro longa, chamado Brasília de Fevereiro, não sei se você já ouviu falar. eu fiz em Brasília, e esse longa de Holanda já passou em cinema, aqui no Brasil passou em alguns festivais, foi para vários festivais internacionais.

Depois disso eu comecei a trabalhar para televisão pública holandesa, trabalhei na parte infantil da televisão e fiz uma série documental sobre crianças e o amor, eram seis episódios de 15 minutos, uma série documental com uma proposta bem interessante. Ao mesmo tempo, comecei a desenvolver roteiros e fiz outros curtas também. Eu resolvi fazer um longa com uma menina de 10 anos na época, chamada Desi, e aí eu fiz meu segundo longa que se chama Desi, é um filme que se passa na Holanda, Amsterdã, em holandês, e que ganhou o prêmio de público em Amsterdã, prêmio de melhor documentário no Festival de Cinema Holandês. Foi um filme importante na minha carreira, porque houve um reconhecimento internacional e que, certamente, me permitiu fazer o Justiça, então uma coisa foi puxando a outra.

MCB: Por que você foi para a Holanda?

MAR: Porque eu me casei. Na verdade, eu já morava em Londres, fiz mestrado em Londres e lá eu conheci meu ex-marido, que é musicólogo. Nos casamos e ficamos um tempo em Londres, e aí me mudei com ele para a Holanda, daí a razão, e me ingressei na Escola de Cinema.

MCB: Você permanece com esse contato com a Holanda? Você mora no Brasil?

MAR: Agora sim, mas eu morei durante muitos anos na Holanda. Eu voltei a filmar no Brasil um pouco antes do Justiça. Eu fiz um filme para uma série de trens de viagens de trem que eu filmei no Rio, na Central do Brasil.  De qualquer maneira, desde o Justiça que eu venho fazer os filmes aqui, então passo muito tempo aqui, faço preparação, venho fazer pesquisa, depois tem a pré-produção, a produção, edição. O Justiça e o Juízo eu filmei, editei e finalizei aqui no Brasil. Então eu tenho vivido aqui e lá, eu vou e volto, desde esse período eu realizei alguns filmes aqui e alguns filmes lá, dois filmes média metragens. Esses filmes e também os filmes que eu filmei no Brasil, que são filmes brasileiros, com a equipe toda brasileira, eles são coproduções, então eu tenho coprodutor português e com a televisão holandesa. O Justiça, o Juízo e o Seca são os únicos filmes até agora meus que não são coprodução com a Holanda, que são 100% brasileiros em termos de produção. O Justiça foi produzido pela Fox Filmes, o Juízo pela Four Filmes, os dois foram patrocinados pela Petrobrás, então são dois filmes que isso não aconteceu.

MCB: Eu não vi o Morro dos Prazeres, eu vi o Justiça, o Juízo e o Futuro Junho. Você teve um interesse pessoal pelos excluídos socialmente?

MAR: Se eu tenho um interesse pessoal pelos excluídos?

MCB: É, porque uma hora você fala pelos condenados em processo com a justiça, aqui no Futuro Junho pessoas excluídas também.

MAR: Eu não tenho interesse pelos excluídos não, eu tenho interesse pela sociedade, pela cultura, pelo Brasil. Tentar entender, compreender a sociedade brasileira, onde está a minha identidade. Eu morei muito tempo fora, e em determinado momento, quando eu fiz o Justiça, eu tive essa necessidade de voltar para as minhas raízes, para o meu país. Eu faço filme para isso, para compreender um pouco a realidade de onde eu venho, de onde eu vivo. Eu acho que os filmes que eu fiz na Holanda também foi uma necessidade de compreender e me inserir naquela cultura holandesa. Então não é que eu me interesso pelos excluídos, eu me interesso pela sociedade, eu antes de mais nada me interesso pelas relações humanas e sociais, pela interação do indivíduo com o outro, esse outro sendo família, sendo a comunidade, sendo a sociedade. Isso que me interessa, essa interação, essas relações de poder e como isso nos forma, forma esse indivíduo, então no fundo falar da sociedade através do indivíduo. Se você pensar no Justiça e no Juízo, não são filmes sobre os excluídos, são filmes sobre o sistema judiciário que funciona dentro de uma sociedade, e naquilo que eu chamo de teatro da justiça. Os filmes retratam essas relações e essas contradições, essas particularidades da sociedade brasileira através dessas relações sociais e destes tipos sociais, esses seres humanos de diferentes classes sociais e classes econômicas, e não só os excluídos.

MCB: Quando eu te falo isso é porque, ainda que seja a partir dessas relações, inclusive de poder, os personagens, grande parte dos personagens, é de pessoas excluídas. Então eu complemento a pergunta: Te interessaria focalizar a elite econômica brasileira, por exemplo?

MAR: Sim.

MCB: Porque eu não estou falando de Judiciário.

MAR: Sim, interessa, mas eu já acho que faço isso nos filmes, acho que está inserido, eu acho que os operadores da lei são, por exemplo, se você pensar nos filmes, os juízes, essa classe média culta, intelectual.

MCB: Mas aí são instituições.

MAR: Não, elas não são só instituições não, elas são instituições, mas essas pessoas fazem parte de uma elite, certamente.

MCB: Sim.

MAR: Mas você fala uma de uma elite econômica, o 5%.

MCB: É porque quando você está falando no Justiça, aí tem o juiz, já, por exemplo, como você filma o metalúrgico dentro da casa dele, aí tem a pessoa. É nesse sentido que estou dizendo, por exemplo, se a elite econômica, independente do que ela representa, seja pelo viés da justiça ou outro, te interessaria esse objeto? Quando eu falei do excluído, é porque quando você entra na pessoa, no personagem pessoa, é o excluído, até então quando você entra na elite, é a instituição, ou a justiça, é nesse sentido que te perguntei.

MAR: É porque eu não concordo com você, o juiz é a instituição e o acusado é o indivíduo, não, o acusado é o representante desse extrato social, o juiz desse outro extrato social. No Futuro Junho tem o metalúrgico, tem o motoboy, o metroviário, e tem o economista do mercado financeiro, o universo do mercado financeiro. A tentativa é de justamente não criar um maniqueísmo, é de exatamente mostrar cada personagem como um ser social político, mas também como ser único, ser indivíduo, com suas contradições, desafios, suas frustrações. Então realmente como indivíduo e não só o juiz, ou só o criminoso, justamente para que a gente humanize para rever e desconstruir esse preconceito que nós temos, eu digo eu também, que temos em relação a esses seres sociais. Digamos, quem é esse excluído? Quem é esse acusado? Quem é esse juiz? Quem é esse economista? Quem é essa elite? Ele é representante de uma elite, né? Mas eu entendo o que você está falando de chegar nessa elite muito poderosa, sim eu também pensaria, quem sabe em um próximo filme.

MCB: Você falou que esses trabalhos na Holanda te possibilitaram fazer o seu filme aqui, não é isso?

MAR: Sim, possibilitou.

MCB: Te deu visibilidade.

MAR: Sim.

MCB: Já era claro o tema que você iria tratar nesse filme?

MAR: Não, não era. O Justiça representou essa necessidade, meu desejo de voltar ao Brasil e de fazer um filme no Brasil depois de muitos anos morando fora. De olhar para a sociedade brasileira e as mudanças que estavam acontecendo, e, principalmente, refletir sobre a questão da tensão urbana. Eu escolhi o Rio de Janeiro porque o espaço para mim é muito importante, o espaço e a cidade. Eu fui fazer pesquisa e, por coincidência, uma amiga minha me levou ao Fórum, eu nunca tinha assistido uma audiência do sistema brasileiro de justiça. Eu fui à uma audiência de vara criminal e eu digo que me encantei, me encantei porque eu vi ali que eu não precisava sair daquela audiência, daquela sala de quatro paredes brancas e cinzas para falar do Brasil. Ali eu vi dramas, personagens passando na minha frente, o drama se desenvolvendo e acontecendo, então decidi ali, naquele momento, a fazer o Justiça. Fiz pesquisas, escrevi um roteiro e fiz o Justiça.

MCB: O Justiça é um filme muito tenso, eu, pelo menos, fiquei muito tenso com o filme.

MAR: É um filme claustrofóbico.

MCB: E ele te projetou como uma das grandes cineastas. 
 
MAR: Sim. Eu acho que o que aconteceu com o Justiça é que meu cinema foi, pela primeira vez, recebido uma maneira muito forte, houve uma tensão, ele foi reconhecido no Brasil pelas pessoas que estavam fazendo cinema, pelos críticos e pelo público, intelectuais escreveram sobre o filme. Quer dizer, antes existiam algumas pessoas de cinema que conheciam meu trabalho, o Desi, o Brasília, eu já tinha passado esses filmes aqui, mas o Justiça foi o que me lançou, que trouxe um reconhecimento no Brasil.

MCB: Você passou a circular mais nesse universo do cinema com outras cineastas?

MAR: Eu acho que mais no meio de documentário, porque como eu faço documentário e, por mais que os meus filmes tenham uma estrutura narrativa própria, digamos assim, um desenvolvimento dramático próprio, eu me insiro, eu me vejo como documentarista. Aí sim, eu adentrei por esse universo do documentário, então conheci pessoas que para mim foi extremamente estimulante, uma influência a partir disso, do meu trabalho, de colegas que se tornaram amigos, como o Eduardo Escorel, Júlio Sales, Luíz Carlos Avelar. Aos poucos eu fui tendo contatos, hoje em dia tenho com a Sandra Kogut, que é uma pessoa com quem eu me identifico. Tem muitas mulheres fazendo documentário brasileiro, eu conheço o trabalho da Lúcia Murat, admiro o trabalho dela, é documentarista e tem um trabalho de ficção interessante. Falando de mulheres que realmente influenciaram no meu trabalho como cineasta eu nomearia a Chantal Akerman.

MCB: Faleceu há pouco tempo (5 de outubro de 2015).

MAR: É, faleceu. Ela realmente influenciou no desenvolvimento da minha linguagem, da minha narrativa.

MCB: Depois de todo esse reconhecimento com o Justiça (2004) você vai para o Juízo.

MAR: O Juízo, de uma certa maneira, veio a partir do Justiça, que foi uma experiência muito forte para mim, eu fiquei muito feliz com o resultado do filme. Ele teve um reconhecimento também surpreendentemente, porque ele é um filme crítico do sistema judiciário. Entre os operadores da lei, magistrados, promotores, na ala mais progressista, muitos assistiram ao filme, e aí eu fui convidada para exibi-lo em várias regiões. O Siro Darlan, que hoje é desembargador, mas na época era Juiz da Primeira Vara da Infância e Juventude, viu o Justiça, gostou muito e me convidou para uma conversa. Ele me perguntou porque eu não fazia um filme sobre os menores infratores dentro do universo da infância e juventude, o que eu nunca imaginei ser possível pela questão da lei que impede que o menor infrator seja exposto. E também porque eu nunca imaginei que eles me permitiriam, que os juízes da Vara da Juventude me permitiriam filmar. Então, nesse sentido, o Justiça abriu essas portas, porque o judiciário não se sentiu ameaçado, ele viu um reconhecimento do meu trabalho e do respeito com o que eu filmo e retrato os personagens, sendo eles excluídos ou elite, ou todas essas pessoas que participam do filme. Então aí se deu o Juízo, que meio que foi de uma ideia que surgiu do Sírio Darlan e que eu me encantei.

MCB: Nesse período você já estava de volta morando no Brasil?

MAR: Eu estava indo e vindo.

MCB: Mas aí entre um e o outro você fez trabalhos lá na Holanda, não é isso?

MAR: Entre o Justiça e o Juízo eu fiz um filme sobre um arquiteto urbanista holandês para a televisão, depois, entre Morro dos Prazeres e Futuro Junho, eu fiz um filme sobre um aborto, acompanho uma jovem mulher que fica grávida inesperadamente e considera se realiza ou não um aborto, é um filme que reflete sobre esse dilema da mulher.

MCB: Vamos falar do Morro dos Prazeres.

MAR: O Morro dos Prazeres é um filme que retrata a ocupação do segundo ano, digamos assim, porque eu acho que muita coisa já mudou em relação a UPP, Unidade de Polícia Pacificadora. O Morro dos Prazeres é uma comunidade no centro do Rio de Janeiro, em Santa Tereza, então o filme tenta refletir sobre essa proposta de inserção da polícia em uma comunidade que foi dominada pelo tráfico e que foi vítima de várias barbaridades cometidas pela própria polícia. O filme ele se propõe a pensar como essa interação entre a comunidade e a polícia, que é considerada pela comunidade, por muitos na época, como inimigo, passa a ser aquele que passa a ser essa transformação, que vai virar o amigo e ser capaz de passar a representar essa lei, trazer o Estado de volta para a comunidade e passar a representar a solução dos problemas das comunidades. Porque, inicialmente, a proposta da UPP não era só manter a lei, mas também através da UPP Social trazer uma melhora de bem estar, enfim de urbanismo, de limpeza do lixo, de saúde, escola, então tinha uma proposta que não se realizou, mas que existia na época.

MCB: E agora vamos para o Futuro Junho, que é o filme que você está mostrando aqui na Mostra de Tiradentes e tem rodado por outros festivais, não é isso?

MAR: Sim. Deixa eu te falar uma coisa, no ano de 2014 eu fiz dois filmes, o Seca e o Futuro Junho, então cito ele aqui porque rodei também com ele em alguns festivais.
 
 CB: Você falou que seu interesse no Futuro Junho era falar sobre o impacto na economia, principalmente lá na Europa. A crise da economia foi seu primeiro interesse, depois você acabou apresentando um projeto lá na TV holandesa, e aí você veio para São Paulo, é isso?

MAR: Veja bem, meu interesse não era fazer um filme lá sobre aqui, houve um interesse no tema.

MCB: E aí você localizou aqui em São Paulo.

MAR: Eu sempre tive vontade de fazer um filme em São Paulo, sempre.

MCB: E aí, a partir disso você já começou com os personagens de diferentes extratos sociais, um motoboy, um metalúrgico...

MAR: Pensando e refletindo sobre esse modelo econômico, esse momento histórico brasileiro. Meus filmes são muito baseados, construídos, a partir do dia a dia dos personagens, de pessoas reais, então eu fui buscar pessoas que eu defini na época que seriam homens. Eu preferi que os personagens fossem homens, queria entrar no mundo masculino entre 35 e 40 anos, essa geração, e que cada um representasse um segmento importante da economia. O setor financeiro, a indústria através do metalúrgico, a indústria automobilística, que é uma das indústrias mais importantes e que movimenta bilhões de reais, o metroviário, o transporte público da empresa pública, o que possibilita no filme a refletir sobre a questão do público do privado do transporte, e o motoboy, que seria o representante dessa classe D e E que vira essa pseudo classe C, pseudo nova classe média.

MCB: A terceirização.

MAR: É, e a terceirização. Ele é um freelancer, trabalha para si mesmo. Então fui buscar esses personagens trabalhando com duas pesquisadoras, que são a Cristina Braga e a Marina Santos, E aí teve o processo de produção e o filme foi feito.

MCB: No debate você contou foi surpreendida por alguns acontecimentos, por exemplo, o personagem do…

MAR: Do metroviário, do Alexandre.

MCB: Você foi incorporando essas questões.

MAR: Exatamente, isso sempre acontece em todos os meus filmes, sempre o inusitado acontece, personagens que eram secundários e se tornam principais.

MCB: O cineasta Andrea Tonacci falou uma coisa interessante sobre isso, ele disse que tem pavor de roteiros fechados, que ele chamou de lápide. Ele falou que, às vezes, alguns cineastas trabalham com roteiros tão fechados que, para ele, esses roteiros poderiam ser terceirizados.

MAR: Eu concordo completamente com ele, isso é impossível em um filme com lida com a realidade, com personagens reais. Eu tenho que ter toda flexibilidade, eu tenho que acompanhar o que acontece na vida das pessoas, é isso que faz do filme o que ele é. Inicialmente, o roteiro é praticamente um cronograma baseado no cotidiano desses personagens e na esperança do que sempre se realiza que nessas situações, nesse cotidiano, principalmente naquele contexto histórico de São Paulo, que situações especiais vão acontecer e que vão revelar esse momento, tanto da vida de cada um deles, quanto desse momento histórico. Digamos que a gente vai filmar na casa de fulano, no trabalho de ciclano, no deslocamento do trabalho para casa, da casa para o trabalho, enfim, uma série de situações, e é durante essas cenas, nessas cenas que são reais, que essa realidade vai se revelar.
 
 
MCB: Agora eu vou retornar a provocação que eu fiz em você no início, porque no Futuro Junho você mira aqueles personagens todos e eles sempre afetados de uma forma ou de outra pelo espaço. Mas você tem cenas solos muito impressionantes de cada um dos personagens, por exemplo o do personagem cantando o Hino Nacional no metrô. Você tem o motoboy, tanto na cena do médico falando com ele que o neuropediatra iria demorar, que são muitos impressionantes, E, para mim, você faz uma cena crucial, que é com o metalúrgico, quando você filma ele na fábrica, sozinho, assistindo a Copa, aí você retira o que ele está vendo de foco e não tem ninguém ao lado dele, ele está sozinho. Sem falar nada você, para mim, faz um retrato dos excluídos do Brasil. Ali na cena da Copa, que já vinha muito bem colocado, quando o menino que está jogando as cartas fala o “Brasil de todos”, ele ironiza, mas ali quando você constrói, eu estou falando de uma construção cinematográfica, eu acho que o filme potencializa isso, e por isso eu te perguntei, lá no início, sobre os excluídos. É uma cena que você pensou? Ou mais que isso, tinha em você a vontade dessa cena solo? 
 
MAR: Não, em todos meus filmes têm momentos solos, momentos de introspecção do personagem, do personagem com si mesmo que a gente projeta, que tem uma função na estrutura do filme.  Em que o público pode se projetar nesse aproximar desse personagem, tendo em vista tudo aquilo que ele viveu, o que dá um respiro, eu gosto desses momentos de respiro, de silêncio. Então você tem o motoboy na moto ou o André no carro, o metalúrgico comendo sozinho, todos os meus filmes têm momentos assim. Eu gosto de filmar durante esses momentos em que as pessoas não estão fazendo nada, estão quietas consigo mesmas. E aquilo ali era completamente factual, ele naquele primeiro dia da Copa iria trabalhar, a gente viu aquela questão toda, o gatilho, o cara do sindicato então conversa com a diretoria da Volkswagen para ver se os funcionários conseguem ser liberados e aquilo não acontece. Ou seja, a fábrica não pode parar, ela tem que continuar trabalhando 24 horas, ele vai trabalhar na hora do jogo, é aquele fato, não fui eu quem criou aquela situação, de fato aconteceu. E como a gente termina o filme fazendo um paralelo com esses quatro personagens, onde eles estão naquele momento do jogo, ele estava ali, e eu concordo com você, é um momento muito comovente também porque ele é um personagem, de todos os quatros, o mais quieto, ele não é tímido, porque ele se sente super bem com a câmera, mas...

MCB: É o que menos seduz o público, né.?

MAR: Ele é um cara fechado, ele é um cara quieto, talvez para o público de difícil acesso, mas eu gosto muito dele, eu acho que ele é importante no filme, eu também fiquei comovida ali, inclusive sabendo o que significa para ele o jogo, porque antes você tem uma cena em que ele fala do futebol, ele gosta de futebol, e então é obrigado a trabalhar, ele vai ter que trabalhar durante o jogo, então ele representa esse excluído, é uma exclusão.

MCB: Agora é o momento de acompanhar o Futuro Junho?

MAR: De acompanhar o filme no cinema?

MCB: Sim, e em festivais.

MAR: É, agora é o momento de acompanhar o Futuro Junho e o Seca certamente. Vou distribuir o Seca esse ano, ele foi muito importante para mim, porque é um filme que eu quis fazer durante muitos anos e consegui fazer graças ao edital da Petrobras. Sou muito grata, a Petrobrás foi essencial nessa retomada do cinema brasileiro, do bom cinema brasileiro, do cinema pensante brasileiro. O Seca é um filme que tem um tema completamente diferente, que é a questão da água e da seca no Nordeste. Ele se passa no sertão de Pernambuco, ele acompanha um caminhoneiro de caminhão pipa que leva água durante a seca para as comunidades. A gente filmou em 2014 depois de uma seca muito forte, tanto para as comunidades urbanas quanto para as comunidades do interior, os pequenos sítios,

MCB: Para terminar, as únicas duas perguntas fixas do site. Qual foi o último filme brasileiro a que você assistiu?

MAR: Boi Neon (Gabriel Mascaro).

MCB: Qual mulher do cinema brasileiro, de qualquer época e de qualquer área, que você deixa registrada na sua entrevista como uma homenagem? 

MAR: Posso pensar e depois te digo?

MCB: Não, porque a ideia é isso, pensar sem maiores elaborações.

MAR: Que venha?

MCB: Sim, que você goste. São as únicas duas fixas do site e elas são inesperadas justamente por isso.

MAR: Que eu admiro o trabalho?

MCB: É.

MAR: Eu gosto da Sandra Kogut, pronto. Eu pensei também em uma atriz, mas vou falar de uma diretora. Pode ser duas?

MCB: Pode.

MAR: Uma atriz que me impressionou muito, é uma atriz nova que está em Boi Neon, que é a Maeve Jenkins, acho uma grande atriz.

MCB: Muito obrigado pela entrevista.

Entrevista realizada durante a 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2017.
Foto: Leo Lara

Veja também sobre ela

::Voltar
Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.