Ruth de Souza
Uma das mais importantes atrizes brasileiras, Ruth de Souza completou no último dia 8 de maio 60 anos de carreira. Uma das pioneiras da televisão, só na Rede Globo está há 38 anos - e a emissora acabou de completar 40. Nos anos 40, Ruth de Souza ajudou a fundar o TEN – Teatro Experimental do Negro, iniciativa do ator e diretor Abdias do Nascimento, que alterou para sempre o espaço reservado aos negros nas artes cênicas brasileiras.
Na mesma época, Ruth de Souza chega aos cinemas, primeiro passando pela Atlântida e depois pela Vera Cruz, onde se torna uma de suas musas. É na Vera Cruz que atua em “Sinhá Moça”, o grande momento da sua carreira no cinema, e pelo qual concorre ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Veneza, ao lado de ídolos internacionais como Katherine Hepburn e Lili Palmer. Entre outras atuações notáveis no cinema está a de “Assalto ao Trem Pagador”, clássico dirigido por Roberto Farias, em 1962.
Politizada e defensora da causa negra, mesmo sem levantar bandeiras, “Eu não levanto nenhuma bandeira, eu deixo o meu trabalho falar por mim”, Ruth de Souza é mesmo presença fundamental no panorama artístico brasileiro. A atriz concedeu entrevista exclusiva ao Mulheres e repassa a sua carreira. Ela fala do TEN, dos trabalhos na televisão, dos trabalhos no cinema e em especial da Vera Cruz, sobre questões relacionadas ao negro, do premiado filme “Filhas do Vento”, e homenageia Bibi Ferreira.
Mulheres: Você começou sua carreira no TEN – Teatro Experimental do Negro.
Ruth do Souza: Sim, na época não tinha ator negro, tinha o Otelo (Grande Otelo), que fazia teatro de revista, mas não era considerado ator, era considerado cômico. O Abdias do Nascimento fundou o TEN para provar que existia ator negro sim, que na verdade o que não tínhamos era oportunidade. E aí no TEN foram montadas várias peças.
Mulheres: A primeira peça foi “O Imperador Jones”, de Eugene O´Neill. Foi você que escreveu para ele, solicitando os direitos, não foi?
Ruth de Souza: Eu dei a idéia. É que não tínhamos dinheiro algum e daí dei a idéia da gente escrever para ele. O Abdias escreveu e ele então nos liberou todas as suas peças.
Acho que essa atitude veio da minha história de escrever cartas. Eu sempre quis ser atriz e era fascinada pelo cinema de Hollywood da época. Eu viva escrevendo para os atores de lá e recebia respostas. Até hoje guardo cartões do Bing Crosby, do Don Ameche.
Mulheres: O TEN entrou para a história, e, na época, deve ter sido mesmo um acontecimento e tanto.
Ruth de Souza: Eu costumo dizer que o TEN foi um espanto na época. Até então não tinha atores negros no teatro e aí a gente surge e monta o O´Neill, um autor de muito sucesso naquele momento, com várias montagens, como “Ana Christie”, com a Dulcina de Morais, e “Desejo”, com os Comediantes.
O GNT fez uma série de entrevistas com mulheres e eu fui uma delas. E lá eu conto, muito comovida, que na estréia do TEN a guerra acabou. Foi um carnaval, uma festa em frente ao teatro, com as pessoas cantando o hino nacional.
Mulheres: Quanto tempo você ficou no TEN?
Ruth de Souza: Foram cinco anos, fazendo uma peça por ano. Depois eu fiz algumas peças com a Dulcina (de Morais) e com a Marina Sampaio, aí já como atriz profissional. Depois fui trabalhar no cinema e na televisão.
Mulheres: Ainda no teatro da época, você foi trabalhar com Os Comediantes, não é?
Ruth de Souza: Foi em “Terras do Sem Fim”, do Jorge Amado, que reuniu o TEN e Os Comediantes. E aí foi um estouro. Estavam Cacilda Becker, Maria Della Costa, Sandro Apolônio, um grande elenco, todos em começo de carreira. Quando “Terras do Sem Fim” virou filme, como o nome de “Terra Violenta”, o Jorge Amado me convidou para eu fazer o mesmo papel que havia interpretado na peça. O Jorge Amado foi o meu padrinho, ele foi muito importante nesse momento da minha carreira.
Mulheres: “Terra Violenta” foi uma produção da Atlântida não é? Como foi filmar lá, você que sempre teve paixão pelo cinema.
Ruth de Souza: Foi uma emoção muito grande, eu estava começando. Fiquei muito comovida, foi a realização de um sonho. Na Atlântida eu fiz também “Falta Alguém no Manicômio” e “Também Somos Irmãos”.
Mulheres: Depois você vai para a Vera Cruz, estúdio paulista de cinema que vai ter uma grande importância na sua carreira.
Ruth de Souza: Sim, na Vera Cruz eu fiz cinco filmes. A Vera Cruz foi muito importante, eu fiz um contrato longo, tinha muita divulgação. Foi São Paulo que deslanchou minha carreira.
Mulheres: Em várias declarações, você sempre relembra da Vera Cruz com muito carinho. Há, no entanto, por parte de alguns críticos e historiadores, uma má vontade com esse período do cinema brasileiro, por acha-lo americanizado.
Ruth de Souza: Existe sim. Mas sabe o que eu acho, era ciúme. Por causa da Vera Cruz houve um ciuminho do Rio de Janeiro. A Vera Cruz impôs um padrão de qualidade que não existia no cinema. Tudo era feito com muito cuidado, muita beleza, havia uma produção incrível. Eu considero o cinema brasileiro como antes e depois da Vera Cruz.
Na época, falava-se muito que a Vera Cruz não era brasileira, porque trouxeram muitos técnicos estrangeiros. É uma bobagem. Na verdade, a Vera Cruz fez escola, pois cada técnico estrangeiro tinha um assistente brasileiro. O Mauro Alice que é um dos nossos maiores montadores foi um desses assistentes. O Geraldo Santos Pereira foi outro.
O que havia era muito ciúme, muita mágoa. A Vera Cruz deu um impulso muito grande para o cinema brasileiro. Vendo os filmes hoje eu fico impressionada com os planos. A Vera Cruz fez “O Cangaceiro” (1953, Lima Barreto), que nos levou para o Festival de Cannes pela primeira vez. Fez “Sinhá Moça” (1953, Tom Payne e Oswaldo Sampaio), pelo qual concorri ao prêmio de Melhor Atriz em Veneza. Ou seja, dois dos mais importantes festivais de cinema do mundo.
Mulheres: O Tom Payne, mesmo, com quem você rodou seus filmes lá, não é muito lembrado.
Ruth de Souza: É aquela velha história, como ele era inglês não pode, tem que ser brasileiro. Eu não concordo com isso, não acho correto. Como não era cinema brasileiro o que a Vera Cruz fazia? “Caiçara” (1950, Adolfo Celi e Tom Payne) é um tema nosso, “Cangaceiro” também. “Sinhá Moça” é nosso, “Terra é Sempre Terra” (1952, Tom Payne) também.
Tinha era muita mágoa. Nem sei se é elegante de minha parte dizer, mas havia muito despeito. O José Lewgoy mesmo, que foi um grande ator, tinha muita mágoa por não ter sido convidado a trabalhar lá. Tem um diretor aí que também é a mesma coisa. É como hoje, quando muita gente fica infeliz por não estar trabalhando na Globo. A Vera Cruz, como a Globo faz hoje na televisão, implantou um padrão de qualidade no cinema. Ela foi uma Companhia que se propôs a ser uma fábrica de cinema brasileiro, e durante quatro anos fez 18 filmes.
Mulheres: E como foi para você, uma fã do cinema de Hollywood, estar ali na Vera Cruz, que também implantou um modelo de “star-system”? Falando nas mulheres, que é o assunto do site, havia um elenco poderoso, não é?
Ruth de Souza: Eu ficava maravilhada. As primeiras estrelas foram Eliane Lage, que há pouco lançou um livro, e Marisa Prado, minha grande amiga que, infelizmente, faleceu no Egito. Depois vieram do Rio de Janeiro a Tônia (Carrero) e a Ilka (Soares).
A época da Vera Cruz foi uma maravilha, era uma família, atores e técnicos torcendo juntos para que tudo desse certo. E ela não desapareceu na história, o seu grande defeito, o que fez a Vera Cruz acabar é a mesma dificuldade que o cinema brasileiro enfrente até hoje, que é a distribuição. Ainda há pouco fizemos um filme premiado, “Filhas do Vento” (2005, Joel Zito Araújo), que até agora não foi lançado. Acho que seu lançamento será só em agosto.
Mulheres: Seu grande momento na Vera Cruz foi “Sinhá Moça”, não é? Fale um pouco sobre esse filme.
Ruth de Souza: Foi sim. Na época, eu tinha ganhado uma bolsa da Fundação Rockfeller para estudar teatro nos Estados Unidos. Aí recebi uma carta que dizia que tinham um trabalho importante para mim no novo filme da Companhia. Eu fiquei muito contente porque minha estadia lá estava terminando e seria muito bom voltar já com trabalho.
Quando voltei eu vi que o papel era realmente muito bom e o fiz com muita garra. O Tom Payne gostava muito de mim, já tinha me dirigido nos outros filmes e sabia o que podia tirar de mim, me cuidava muito. Por esse papel eu fui indicada ao prêmio de Melhor Atriz no Festival de Veneza. Eu fui a primeira atriz brasileira indicada para um prêmio desse porte e hoje ninguém fala mais nada, hoje fazem muito barulho é com a Fernanda Montenegro.
Mulheres: E nesse festival, em que quem levou o prêmio foi a Lili Palmer, você concorreu com uma das suas ídolas: Katherine Hepburn. Como foi para você na época, que tempos antes escrevia cartas para os astros de Hollywood, concorrer com ela?
Ruth de Souza: Foi maravilhoso, foi uma alegria muito grande, eu queria ser atriz e eles tinham me aceitado. No dia 8 de maio agora eu fiz 60 anos de carreira, eu nunca parei de trabalhar, desde o TEN até hoje, o que é raro, ainda mais para uma atriz negra. Eu já tinha conhecido a Katherine, quando ela foi dar uma palestra lá onde eu estudava, eu como aluna.
Mulheres: Depois de passar pela Atlântida e pela Vera Cruz você foi para a Maristela, outra companhia expressiva da época. Como foi?
Ruth de Souza: Na verdade, na Maristela eu fiz só um filme, “Quem Matou Anabela?” (1956, Dezso Hamza).
Mulheres: Filme esse que você gosta, não é?
Ruth de Souza: Gosto sim. Eu tinha contrato fixo na Vera Cruz, daí quando ela acabou foi aquela coisa desagradável, a gente sem saber para onde ir.
Mulheres: A Imprensa Oficial de São Paulo lançou uma publicação importante, a Coleção Aplauso, que está registrando a trajetória de alguns dos nossos artistas. Lá, você repassa a sua carreira (Ruth de Souza: Estrela Negra). Você gostou do resultado do livro?
Ruth de Souza: Sim. Eu nem sabia que ia virar livro, a menina veio aqui, a Maria Ângela (de Jesus), me entrevistou, mas não falou que era para o livro. Ela veio aqui umas duas vezes. Depois me mandou o material para eu ver se estava tudo ok. Tempos depois eu fui convidada para ir a São Paulo para o lançamento. Foi muito bonito, estavam lá todos os atores, o Anselmo Duarte, a Nidia Lycia, com o livro sobre o Sérgio Cardoso. Foi muito bonito, eu fiquei comovida, São Paulo gosta muito do meu trabalho. Ainda há pouco eu voltei a São Paulo para a inauguração de um teatro com o meu nome.
Mulheres: Que maravilha, eu não sabia desse teatro.
Ruth de Souza: O Emanoel Araújo inaugurou um museu lá no Ibirapuera sobre a cultura negra e deu o meu nome para o teatro, ele tem 150 lugares. Eu fiquei muito feliz, é uma resposta ao meu trabalho.
Mulheres: Nos anos 60 você participa do Cinema Novo atuando no clássico “Assalto ao Trem Pagador” (Roberto Farias).
Ruth de Souza: Primeiro que eu nem sei se concordo com esse nome, “Cinema Novo”.
Mulheres: É porque é assim que esse ciclo ficou conhecido, assim com o da Vera Cruz, o da Atlântida.
Ruth de Souza: Sei, mas é que fica parecendo que o outro era velho (risos). Eu adorei fazer o “Assalto ao Trem Pagador”. O Roberto Farias é um doce. Ele me convidou para fazer o filme, mas aí aconteceu uma história que eu sempre conto. Ele me convidou para fazer o papel da amante, mas aí eu disse para ele que eu não tinha jeito de amante, que eu queria fazer a esposa. Ele então me disse que quem tinha comprado os direitos na Bahia era o namorado da Luíza Maranhão e exigia que o papel fosse dela. Ele me disse também que tinha que ser uma mulher sexy, por causa daquela cena do dinheiro na cama, veja só, e eu disse para ele, “você ta me chamando de assexuada?”. E ele, não, não é isso.
Daí eu fui para casa e contei as cenas, cada uma de nós tinha exatamente 10 cenas. E aí, por instinto, eu fiz a personagem daquele jeito, o Roberto até declarou depois que ficaram duas esposas. Eu fiquei muito feliz. O Roberto é uma pessoa de muita delicadeza, é uma pena que não esteja mais fazendo cinema e anda mais dedicado à televisão.
Mulheres: A Luíza Maranhão sumiu. Como foi a relação com ela, foi boa?
Ruth de Souza: Muito não. Na verdade, não existe uma convivência muito próxima entre as atrizes negras.
Mulheres: Nem com a Lea Garcia?
Ruth de Souza: A Lea é a mais chegada. Mas não existe uma relação mais próxima entre todas nós.
Mulheres: Por que você acha que isso acontece? Será competição?
Ruth de Souza: Não sei. Em todas as áreas há sempre muita competição, talvez pode ser isso também. Eu não tenho muita liberdade para falar com elas sobre os meus sucessos. Ultimamente, a única que me recebeu espontaneamente, de braços abertos, foi essa menina que está no filme “Bendito Fruto” (2004, Sérgio Goldenberg), a Zezeh Barbosa. E como ela está bem no filme, eu gostei muito.
Mulheres: É curioso você dizer isso, porque tem um elenco de atrizes negras maravilhosas: você, Lea Garcia, Chica Xavier, Neusa Borges, Zezé Motta.
Ruth de Souza: E pronto, acabou. É muito pouco. Porque hoje tem novos nomes que vão surgindo, mas que é outra coisa. Hoje tem a Isabel (Fillards), a Taís (Araújo), a Thalma (de Freitas), a Danielle Ornelas, que é muito boa. Mas muitas atrizes hoje vêm com uma coisa diferente. Eu não sei explicar, mas é aquela coisa de falar “sou atriz e modelo”. Eu sou de uma outra época, de ser atriz mesmo, que é bem diferente, é ter uma responsabilidade muito grande. Eu, por exemplo, sempre procurei passar uma imagem positiva da mulher negra.
É impressionante, o tempo passa e as coisas não mudam. Você vê pessoas negras no cinema, na televisão, nos shoppings, nas butiques, nos restaurantes? Não. Na minha época da Vera Cruz era assim, era só eu, e hoje eu vou às festas, aos lançamentos, e as coisas não mudaram muito. Continua sendo só eu e algumas poucas. A mulher negra fica em segundo plano, somos invisíveis.
Há pouco tempo eu fui participar de um evento na Petrobrás, e eu acho que eles não vão me convidar nunca mais (risos). O meu produtor me convidou para irmos até lá, mas não me avisou que eu ia participar de uma mesa-redonda. Foi no dia 8 de março, dia da mulher, e estavam lá a Júlia Lemmertz, a Dayer (Ludmila), a Dira Paes, a Lúcia Murat. Cada uma falando uma coisa sobre a mulher e eu fiquei pensando sobre o que eu ia falar, já que não tinha preparado nada. Até que chegou a minha vez e eu fui logo perguntando para a platéia: onde está a mulher negra no mercado?
A sala estava lotada de funcionários, os diretores todos da Petrobrás presentes. E eu perguntei onde estavam as mulheres negras nos escritórios, nas butiques. Que isso me revoltava muito, que não somos incapazes. E perguntei onde estavam elas naquela platéia?. Daí todo mundo ficou quieto e depois me aplaudiram muito. Daí veio uma das diretoras me dizer que havia uma negra em cargo de diretoria lá na Petrobrás, mas eu retruquei dizendo que era uma, cadê as outras?. Lá naquela platéia tinha umas quatro, assim no canto, e todas elas eram faxineiras. Isso me revolta muito. Eu acho que depois dessa a Petrobrás nunca mais vai me convidar para nada (risos).
Mulheres: É impressionante que desde o TEN até hoje essa realidade não tenha mudado muito.
Ruth de Souza: Não mudou, não mudou. Essas coisas me revoltam muito. Eu não levanto nenhuma bandeira, eu deixo o meu trabalho falar por mim. Mas eu acho que o próprio negro tem medo. Outro dia eu fui lá na cerimônia do Prêmio TAM e vi aquele menino do filme “Cidade de Deus” (2004, Fernando Meirelles) vestido daquele jeito, de bermuda, com uma mochila nas costas. Eu não o conheço porque eu não fui ver esse filme, eu detesto esses filmes que associam o negro somente a esse tipo de violência.
Mulheres: Você acha que essa postura dele na festa reforça o estereótipo do negro?
Ruth de Souza: Com certeza. Depois saiu no jornal que ele disse que foi daquele jeito porque tinha ido direto do trabalho. Como assim? Todo mundo foi depois do trabalho. Eu sempre procurei passar uma imagem positiva. E nunca tive medo, pois o máximo que eu poderia receber era um não. E, curiosamente, eu nunca recebi um não. Mas também nunca extrapolei, nunca pedi nada além. Eu, graças a Deus, tive muita sorte, em estar trabalhando até hoje.
Mulheres: E talento, não é Ruth?
Ruth de Souza: Então, sorte por Deus ter me dado talento. Deus tem sido generoso comigo, e eu também sou teimosa, e se estou até hoje é porque gostam do meu trabalho. Eu fui pioneira na televisão, na Tupi e depois na Globo, onde já estou há 38 anos, nela que acabou de fazer 40. Tive sorte também por ter tido um grande patrão como o Roberto Marinho, que deu uma ordem para que ninguém que tenha começado com ele e que tenha mais de 50 anos fosse demitido da Globo.
Mulheres: Eu não sabia disso.
Ruth de Souza: Ele teve consciência e foi compreensivo, porque ele sabia que depois dessa idade é muito difícil conseguir trabalho. Você pode ver que nas novelas têm os novos rostos, mas os antigos sempre estão por lá, sempre têm espaço para eles.
Mulheres: Há pouco tempo comentou-se muito que Taís Araújo foi a primeira atriz negra a protagonizar uma novela na Globo, mas lá no início você protagonizou “A Cabana do Pai Tomáz” (1969), ao lado do Sérgio Cardoso, não é? Quais foram os seus grandes momentos em novelas até agora?.
Ruth de Souza: Pois é, ninguém se lembra mais, no entanto fizeram esse barulho todo com a Taís. Eu fiz coisas maravilhosas. Eu gosto muito de “O Bem-Amado” (1973), em que eu fazia aquela enfermeira. Eu gosto muito de um especial chamado “Quarto de Despejo”, sobre a Carolina de Assis. Gostei muito de fazer “Sinhá Moça” (1986), ao lado do Otelo, e também de “Os Ossos do Barão” (1973), do Jorge Andrade.
Mulheres: Voltando ao cinema, na década de 70 você atua em um filme muito interessante que é o “Ladrões de Cinema” (1977). Como foi trabalhar com o Fernando Coni Campos?
Ruth de Souza: Eu gosto muito desse filme. A última vez que eu o assisti foi em uma sessão especial há uns dois anos, e eu o vivo procurando. Nesse filme eu fiz apenas uma cena, mas que gostei muito de fazer. Eu fiz aquela Maria Louca que fica excomungando o Tiradentes. A cena foi rodada no Morro do Pavãozinho, e na hora de roda-la o morro estava lá em peso. Daí, quando eu começo a amaldiçoar o Tiradentes houve uma reação enorme daquela platéia, eles começaram a uivar, defendendo o Tiradentes. Foi uma pena a câmera não ter registrado isso.
Mulheres: Nos anos 80 você faz o “Jubiabá” (1987), do Nelson Pereira dos Santos, mas eu sei que você não gostou muito do resultado.
Ruth de Souza: Como você sabe disso?
Mulheres: Você comentou no livro da Coleção Aplauso.
Ruth de Souza: Pois é, não gostei mesmo não. Eu fui levada lá para Cachoeira, na Bahia, fiquei lá durante 15 dias, para fazer aquela ceninha que poderia ter sido rodada aqui no Jardim Botânico, achei um desperdício. Não gostei.
Mulheres: Vamos falar agora de “Filhas do Vento”, do Joel Zito Araújo.
Ruth de Souza: Esse filme nasceu aqui na minha casa. O Joel fez um documentário muito bonito, uma pesquisa muito interessante sobre o ator negro, não sei se você viu.
Mulheres: Vi, o “Negação do Brasil”, e gosto muito, do filme e do livro.
Ruth de Souza: Ele e a Maria Ceiça vieram aqui e conversamos muito. O roteiro do filme tem muita coisa que lembra a minha vida. Inclusive, muita coisa que foi usada no cenário também veio da minha casa, quadro, fotografias, foto do Otelo.
Mulheres: O resultado do filme é maravilhoso, com um elenco sintonizado.
Ruth de Souza: Todo mundo fez o filme com muita vontade. Foi algo que a gente sempre quis fazer, aquela família, que poderia ser japonesa, que poderia ser qualquer família. Todo mundo fez com muita garra, um elenco entusiasmado, e foi maravilhoso filmar lá em Lavras Novas (Minas Gerais).
Mulheres: Depois teve aquela polêmica lá no Festival de Gramado (o filme ganhou vários prêmios, mas a equipe quis devolver os Kikitos depois de declarações polêmicas do Presidente de Júri, Rubens Ewald Filho, que, supostamente, teria justificado a premiação dizendo que ela era uma vitória dos negros em um Estado racista, mal-entendido que depois foi esclarecido).
Ruth de Souza: Foi aquela bobagem. Eu não estava lá, eu não viajo de avião, e como eu já fui à Gramado três vezes, já fui júri, inclusive, eu não quis pegar 20 horas de ônibus e fiquei em casa. Até brinquei dizendo que era para eles trazerem o meu Kikito (risos). Aí, eu estava em casa, e vi no rádio e na televisão que eu tinha ganhado o prêmio. No dia seguinte liguei para o Rubens Ewald para agradecer e também para comentar sobre o livro – Rubens Ewald é o idealizador da Coleção Aplauso – que havia vendido muito, só na noite do lançamento tinham sido vendidos cerca de 300 exemplares, muito mais em relação aos outros.
O Rubens então me perguntou se eu não estava sabendo da polêmica e me contou o acontecido. Daí a pouco me liga o Milton Gonçalves, com aquele jeito dele brigão, me dizendo que já estava combinado que íamos todos devolver o Kikito. No que eu disse que não iria devolver nada. Depois me liga o Joel, eu conto para ele que tinha ligado para o Rubens, e ele me xinga, dizendo que eu não tinha jeito, que eu sempre com a minha mania de ser diferente. E eu repeti que não ia devolver prêmio nenhum.
Durante a ditadura, o jornal Estado de São Paulo falou mal da peça do Chico Buarque, e os atores resolveram devolver o Saci que tinham ganhado da publicação. A Cacilda Becker devolveu, o Lima Duarte devolveu, mas eu disse que não ia devolver. Eles acharam um absurdo, me disseram que eu ia ficar sozinha, mas eu não devolvi. Eles então foram lá e colocaram os Saci no chão, na porta do jornal. Daí, o Estado nunca mais deu o prêmio.
Eu fiquei com o meu, ele é lindo, e hoje eu sei que ele é raro, está valendo 100 mil, porque é do Brecheret (risos). O Lima Duarte, quando ficou sabendo, lamentou ter devolvido o dele (risos).
O Rubens Ewald é um cara muito inteligente, muito esperto, eu duvido que ele tenha falado daquele jeito, estando lá em Gramado. Eu só sei que ninguém trouxe o meu Kikito. O Milton trouxe o dele, mas não trouxe o meu. Perguntei para a Ceiça, que estava meio com raiva por não ter sido premiada, que disse que também não tinha trazido. No final, ele foi parar lá em Brasília.
Certo dia eu estava aqui em casa, ainda deitada, quando uma moça me ligou dizendo que tinha vindo de Brasília, que estava perto de minha casa, e que se podia passar aqui para me entregar o meu prêmio. Eu então me levantei, me vesti, acendi as luzes da sala, me preparei para receber o prêmio, mas ela chegou com o Kikito embrulhado em um plástico e nem entrou, me entregou da porta mesmo (risos). E foi assim que eu recebi o meu Kikito, embrulhado no plástico, com aquela cara de boba (risos).
Mulheres: Você tem ido ao cinema, tem visto alguma coisa de Hollywood?
Ruth de Souza: Não, muito pouco. Mesmo porque eu não gosto dessa produção de hoje, que prioriza a violência. Eu gosto da Era de Ouro.
Mulheres: E filmes brasileiros, tem visto?
Ruth de Souza: Os últimos que vi e gostei muito foram “Bendito Fruto” e “ O Homem que Copiava” (2003, Jorge Furtado). Eu gosto muito também é dos filmes do Walter Lima Jr. Eu nunca trabalhei com ele, mas gosto muito de seus filmes, “Menino do Engenho” (1965), “Inocência” (1983), “Ele, O Boto” (1987).
Mulheres: Eu sempre convido minhas entrevistadas para homenagearem aqui no site uma ou mais mulheres do cinema brasileiro, de qualquer época ou área. Você gostaria de homenagear alguém?
Ruth de Souza: No cinema brasileiro é meio difícil, porque cada atriz faz dois ou três filmes. Mas se é para homenagear, eu homenageio uma senhora chamada Bibi Ferreira, nossa grande atriz, completa. Ela dança, ela canta, ela interpreta. Uma mulher que vive da sua arte e que merece minha admiração.
Mulheres: Você tem novos projetos, para a televisão ou para o cinema?
Ruth de Souza: Eu sou funcionária da Globo, e assim estou disponível para quando eles me chamarem. Mas se não me chamarem também não vou me importar de ficar quietinha (risos). Há uns quatro anos eu fiz um filme chamado “Nova Primavera” com aquele ator que fez o Romeu do filme do Zeffireli, Leonard Whiting, e que é meu amigo. Como o dinheiro acabou, o filme ficou pela metade, daí o câmera/iluminador não foi pago e por isso segurou o filme. Agora ele que fazer outro e quer que eu participe.
Mulheres: Tem alguma coisa que eu não te perguntei e que você quer falar?
Ruth de Souza: Eu te falei que eu sou Comendadora? Eu falo disso lá no livro. Eu recebi o título de Comendadora da Ordem do Rio Branco
É isso, eu sou uma pessoa feliz. O que importa é você chegar em casa cansada, depois de um dia de trabalho. Decepções a gente sempre tem na vida, mas eu tive sorte, eu trabalho, as pessoas gostam do meu trabalho, é isso que importa.
Ah, você conhece o Geraldo Santos Pereira? É meu amigo. Eu fiz o filme dele também, o “Aleijadinho” (2003, “Aleijadinho - Paixão, Glória e Suplício”). É um filme muito bonito, mas que foi muito mal lançado. Aqui no Rio passou em um shopping onde tem umas vinte salas e ele ficou lá sozinho. Muito mal lançado. Mas saiu em vídeo, vale a pena ver.
Mulheres: Eu ainda não vi, mas vou procurar. Muito obrigado pela entrevista, foi maravilhoso falar com você.
Ruth de Souza: Muito obrigada, eu me diverti muito com a nossa conversa.
Entrevista realizada em maio de 2005.
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