Ano 20

Fernanda Montenegro

Os atores Fernanda Montenegro e Raul Cortez, o diretor Marcos Bernstein, e a produtora Kátia Machado estiveram em Belo Horizonte para o lançamento do filme “O Outro Lado da Rua”. Na agenda, uma pré-estréia à noite para convidados e na manhã seguinte uma coletiva para a imprensa. Na pré-estréia, depois de todos dizerem algumas palavras para o público, Fernanda saiu pelo corredor dizendo “o filme agora é de vocês”. Na coletiva, deixou claro a satisfação com o resultado do filme, primeiro longa-metragem de Marcos Bernstein, então roteirista de sucesso – é co-autor dos roteiros de “Terra Estrangeira” e “Central do Brasil”, ambos de Walter Salles (no primeiro, co-direção de Daniela Thomas). “É um cineasta!” Ela diz sobre seu diretor. Durante quase uma hora a equipe conversa com os repórteres, sempre com elegância, interesse e simpatia.   

Questionada sobre o que a atraiu na personagem Regina - uma aposentada que foge da solidão prestando, voluntariamente, serviços como informante para a polícia, e que acaba por se envolver com um possível assassino – Fernanda diz que chamou-lhe atenção “a instabilidade, a inquietação dela, o mal-estar dentro dela, o inconformismo dentro dela. Tem lá seus momentos de depressão doméstica, mas levanta e canta, vai pra rua fazer qualquer coisa. Uma personagem mais humanizada, menos equacionada, mais solitária”. Sobre o primeiro encontro com Raul Cortez no cinema, o encontro de dois gigantes do teatro, onde se reuniram pela primeira vez, segundo o gentilíssimo Raul, na peça “Dançando o Rock in Roll”, Fernanda diz: “Eu acho que nós tínhamos esse encontro marcado no destino da gente, e o Marcos Bernstein teve a gentileza de nos chamar e nos reunir”. 

 Em determinado momento da coletiva, Fernanda Montenegro diz que “toda criação de ator tem uma zona não explicável, uma zona do mistério mesmo, do fazer um personagem”. E é sobre sua profissão, sobre a violência no país – “o Rio de Janeiro é a Geni do país” -, e sobre a sua personagem Regina e o filme “O Outro Lado da Rua’ – premiado nacional e internacionalmente, (Fernanda recebeu o prêmio de Melhor Atriz, mais um prêmio nos Estados Unidos, no Tribeca Festival Film, criado pelo ator Robert De Niro depois do 11 de setembro; ela, a única atriz brasileira indicada ao Oscar -  por ‘Central do Brasil”) que Fernanda Montenegro conversou com a imprensa de Belo Horizonte. O Mulheres do Cinema Brasileiro, claro, não poderia ficar de fora desse grande momento. 

   
Mulheres: Ontem eu assisti ao filme, e mais uma vez você tem uma interpretação maravilhosa. Na sua trajetória, você tem momentos luminosos no Cinema Nacional: “A Falecida” (Leon Hirszman), “Tudo Bem” (Arnaldo Jabor), “Eles não usam Black-tie” (Leon Hirszman)... Mas quando você lançou o “Central do Brasil”, você disse que naquele momento o bichinho do cinema tinha te pegado de vez. O que mudou de lá para cá? Você passou a receber mais convites ou a prestar mais atenção nesses convites? 

Fernanda Montenegro: Eu sou uma pessoa de teatro, uma atriz de teatro, do diamante do teatro. E o cinema sempre veio quando podia fazer, quando tinha tempo, quando sobrava tempo do teatro. E o cinema tem uma dinâmica, que quando o ator chega lá está em disponibilidade. É um lugar onde a gente terceiriza o talento da gente, a gente faz as cenas quantas vezes o diretor acha necessário, o material fica ali, você não escolhe o que vai para o filme, é a critério do diretor, do montador. Você é uma matéria-prima, você tenta produzir o melhor, mas você não tem nenhuma autonomia, a não ser na hora da ação. Você faz mais ou menos buscando o que você intui, o que o diretor te passa. Mesmo o enquadramento, às vezes você preferia que a câmera estivesse do outro lado, você acha que não houve um contraponto, uma contracena, mas isso tudo você não tem nada a ver. É um exercício de abrir mão e de paciência. Isso, pra quem vem do teatro, você leva um tempo pra se acalmar diante disso. É preciso que você faça um filme, outro filme, pra que você entenda a dinâmica do cinema. Principalmente, pra gente que vem do teatro, onde você se propõe de corpo inteiro, e é com você mesmo, porque depois que abre pano você vai pra uma ação teatral, é você, você mata no peito ou não. Com o tempo eu fui entendendo, eu tive que me educar pro cinema, eu acho que a gente, o cinema é um exercício de paciência principalmente. E de esperar, esperar a cena que vai ser ou não escolhida. Quando vai ser lançado. Pra onde você vai quando for lançado, compreende? Não tem autonomia. O teatro é opinativo mesmo, em cima do ator. Cinema não. Então, pra educar pra isso leva um tempo. Eu acho que a partir, foi realmente a partir do Central, porque foi um filme assim que a gente andou pelo sertão, sabe, vivemos quarenta dias no sertão, é central do Brasil, zonas muito difíceis, e é pelo resultado do filme, é que você entende a importância do cinema, como é fundamental fazer cinema. Uma vez, foi assim, o Paulo Gracindo não queria fazer cinema, a gente tinha feito “A Falecida” e, anos depois, convidaram a gente pra fazer um curta, aliás, muito bom, que se chama “Trancado por Dentro” (Artur Fontes, 1988). Não sei se vocês viram. Você viu? 

Mulheres: Sim. 

Fernanda: “Não Fernanda, não vou fazer”. Eu disse: Paulo vamos fazer Paulo, porque é a única maneira que alguém daqui a alguns anos saiba quem foi a gente, e vão ver como a gente trabalhava. Aí insisti e ele fez. E depois fizemos um outro filme juntos..., “Tudo Bem”, e ele também não queria fazer: “porque é muito chato, a gente espera muito”... Hoje estou certa que a gente deve fazer cinema. Eu descobri, hoje eu tenho amor pelo cinema. 

Mulheres: É isso que eu ia perguntar, vendo essa importância você hoje já descobriu esse prazer? 

Fernanda: Esse prazer no cinema, sabe. Abrir mão, aceitar, concordar, entender que não é seu o processo, que o processo está nas mãos do diretor e do montador. Às vezes o melhor do filme não vai. Cenas que você suou para fazer, que ficaram boas, por n razões, quer dizer, por causa do tempo, ou porque a dinâmica mesmo da narrativa. No “Central do Brasil”, quando ela rouba o menino, ela pega o menino e joga o menino do lado de fora do corredor, e agente sai numa corrida desabalada, nós corremos pelo Rio de Janeiro inteiro assim, dentro daquele prédio, escadaria. Quando vi montado era assim: correu, já faz o sinal pro táxi, já entra no táxi, suada... Então, ficou tudo ali. Depois entendi a verdade, porque não fez falta. Mas você não pode imaginar o trabalho, o trabalho que deu fazer aquela corrida pelos buracos do Rio de Janeiro com aquela criança. Não sei quantas vezes, porque a gente faz workshop, depois faz plano americano, faz close, e não foi. Acabou. É isso mesmo. 

Mulheres: É curioso o que a Fernanda falou (que a direção, no filme “O Outro Lado da Rua”, deu tempo para os atores se proporem, para os personagens se proporem dentro da história, uma direção larga, sem taquicardia), porque ontem, quando eu estava assistindo ao filme, eu me lembrei muito do Theo Angelopoulos (diretor grego, de “Paisagem na Neblina”), na direção dele. Não sei se foi no tom azul no filme, mas é que já se escreveu que no filme dele (no “Paisagem’), o abraço tem o tempo de um abraço, e isso que a Fernanda tava dizendo não são tempos mortos, são tempos de vivências das personagens. Isso tá muito definido na direção. 

Fernanda: É, porque hoje em dia tem uma dinâmica no cinema em que você, o espectador, não pode se cansar, o espectador não pode desligar, o espectador, né... Tem uma coisa assim muito estressante em cima das cenas. O filme tem também essa coisa do diálogo, o diálogo é essencial, então nem falta nem é verborrágico, quer dizer, a gente não se explica no diálogo. O que entra de diálogo é essencial para dar uma luz na interiorização dos personagens, mas também eles não se explicitam muito, porque nada é cronístico, a narrativa está muito mais no comportamento do que propriamente na ditatização que se possa fazer através de um diálogo. Eu só queria contar uma particularidade do roteiro e da filmagem. O roteiro terminava na cena da qual eu mais gosto no filme, que é a cena em que Raul e eu estamos sentados à mesa e ela pergunta pra ele se ela queria, se a mulher dele queria a eutanásia, se ela queria, porque pra ela é fundamental essa pergunta. Se ela fica com ele na dúvida, ela ta abrindo um flanco muito duro pra vida dela, ela vai ser conivente. Também dentro das nossas leis a eutanásia não é permitida, se ele dissesse que realmente ela queria, que aconteceu. É só pra ilustrar o que eu estou falando. Ela faz essa pergunta. 

(o diretor Marcos Bernstein interrompe Fernanda nesse momento dizendo “não vamos revelar demais o final do filme, por favor.)”. 

Fernanda: Não, não, não vai revelar nada. Se ela dissesse, ela faz a pergunta e ele sai por uma outra pergunta: “O que isso importa?”. Provavelmente, o espectador, ele não tem esclarecimento, não chega a ele a historinha respondida na respostinha. Ele volta com outra pergunta. E ela até diz: “Eu sabia que tinha que ter alguma coisa para um homem como você se interessar por mim”. Quer dizer, beirando o assassinato, ou sendo um assassino, ele seria bastante fora da lei pra se interessar por ela, que também é uma ponderação sobre a marginalidade a que ela se propõe. Então, tudo isso estava na para-linguagem do filme, mas é preciso ficar ali atento, porque nada é dito com sujeito, verbo e predicado. Esta cena fazia no roteiro, era a última cena do roteiro. E uma bela hora o Marcos (Bernstein) me disse que não ia ser a cena final, que não ia ser essa a cena. Eu fiquei em pânico, disse: “Você acabou com o filme! Não é aquela cena?” “Não, não é não, não deu certo ali”. Quer dizer, tudo que estava organizado no roteiro era aquela cena. E rolou, rolou, rolou, e a cena foi pra uma hora do filme, que hoje, vendo o filme, não pode deixar de estar ali. E pelo roteiro ela não poderia sair dali. Na feitura, no embate mesmo das coisas, é, a cena veio para um lugar absolutamente certo. Então são mudanças que a gente tem que estar muito por dentro da jogada, e o diretor precisa saber muito bem o que ele quer do filme dele, pra uma coisa que tava tão orgânica, de repente não era diante da imagem, lá não era. É ter o bom senso de mexer e nisso o filme é também, para quem faz o filme, uma surpresa. 

Mulheres: A questão polêmica, que é questão do sexo entre idosos. Em “Chuvas de Verão” (Carlos Diegues), a Miriam Pires e o Jofre Soares têm uma cena linda. Nesse filme ela é mais recatada, porque também tem a ver com o tom do filme. Foi uma opção estética da direção ou os atores interferiram na realização da cena? 

(depois de Marcos Bernstein dizer que “foi uma opção nossa, não é um filme explícito, não é um filme desnudado, é um filme que tem seus mistérios”; e Raul Cortez dizer que “o sexo ali é conduzido com muita delicadeza, então a proposta tem que ser aquela”, Fernanda diz:) 

Fernanda: Porque precede o diálogo, que ela diz “nós não somos mais crianças”, sabe, e ele diz “você acha que pra mim também é fácil, tirar a roupa?”. Ela diz “eu não me vejo aqui pelada, com você em cima de mim pelado”. Eu acho que é um diálogo muito cru, assim, mas sem ser grosseiro. Mas se expondo, quer dizer, não vai ser fácil. E a cena que se segue é uma cena de duas pessoas que se despem, e se possuem, não com os hormônios dos 20 anos, mas de gente também que se quer ainda estar em estado de beleza para o outro. Na maneira que possa se escamotear um pouco, é uma sensibilização erotizada mais do que uma trepada, tá entendendo? Eu acho que talvez o público fique olhando e é muito recebida a cena, porque a cena não vem pela trepada desbragada que a gente tá, atualmente, sendo massacrado em tudo que a gente vê não só no cinema, mas também na televisão. Quer dizer, você passa de zero pra uma luta livre desenfreada, tá entendendo? E a gente sabe que na vida há muita maneira de se amar, e toda maneira de amar vale a pena, compreende? Eu acho que a cena que precede, que ela fala que na verdade a barriga dela é um jogo da velha de tanta estria e diabo a quatro, e operações de cesariana, e o diabo. A gente não poderia ter feito a outra cena assim, como se fôssemos dois jovens aos 20 anos, sabe, de perna aberta, o outro por cima, bufando, e chupando, e mordendo, compreende? Porque eu acho que é isso que faz o público ficar quieto, porque se pode fazer cenas de amor com absoluta volúpia e absoluto erotismo, sem nheco, nheco, nheco. Que pode também, vai se chegar lá, mas essa parte ele (o diretor) não filmou.


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Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.