Léa Garcia
Premiada como Melhor Atriz no Festival de Gramado 2004 – junto a Ruth de Souza – pelo filme Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, Léa Garcia é uma das mais importantes atrizes brasileiras. Presença fundamental nas artes cênicas, a atriz começou a carreira no TEN – Teatro Experimental do Negro, estreou no cinema em Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, e desenvolveu na TV uma carreira extensa cujo ponto alto é a odiada – à época – vilã Rosa em “Escrava Isaura” (1976), de Gilberto Braga.
Léa Garcia conversou com o Mulheres do Cinema Brasileiro pelo telefone de sua casa no Rio de janeiro. Ela lembra o início da carreira no TEN, “Não queria ser atriz, queria ser escritora”, da chegada ao cinema e da carreira na televisão, “A Rosa é o meu cartão de visitas”. Léa Garcia faz severas críticas ao cineasta Carlos Diegues, “Não quero fazer mais nenhum trabalho com ele”, e elogia Sylvio Back, “aqueles minutinhos em que eu apareço, aqueles segundos em que apareço na tela, valem mais do que vários trabalhos que eu fiz aí inteiros”. A atriz fala também, é claro, de Filhas do Vento, “ele era favorável aos nossos anseios, ele vinha realmente satisfazer os nossos anseios”.
Mulheres do Cinema Brasileiro: Léa, você começou sua carreira artística pelo Teatro Experimental do Negro. Como você chegou até o TEN?
Léa Garcia: Eu cheguei ao TEN através do Abdias do Nascimento. Nós estávamos morando juntos, eu era bem jovem e tinha acabado de ter um neném. Ele falava para mim que eu tinha um temperamento artístico, mas eu não queria, eu queria ser escritora. Então ele insistia para que eu verificasse o meu potencial. Eu não queria saber disso, então eu brigava em casa e dizia “não quero!”, aqueles ataques de garota de 16 anos. Aí ele me levava em frente do espelho e mostrava a minha máscara, assim e assado. Bom, ele me convenceu e eu acabei estreando em um trabalho que intitulava-se “Rapsódia Negra”, que era dança, poema. Eu estreei dizendo o poema “Navio Negreiro”, do Castro Alves.
Mulheres: Isso foi em 1952?
Léa Garcia: É. E eu já tinha um bebê. Dançando algumas coisas também, como “Rainha do Maracatu”, “Oxum”, e várias outras danças. Aí eu pisei nas tábuas e gostei.
Mulheres: Você que participou, como foi o TEN na época?
Léa Garcia: Olha, eu não peguei o TEN na época, quem pegou foi a Ruth de Souza, de 1945 a 48. Eu peguei o TEN numa outra fase, em 52. Eu dividia a minha vida entre o TEN e o bebê que eu tinha em casa. O objetivo do TEN era que, realmente, em termos artísticos, que não se pintasse mais nenhum ator branco para fazer papéis de negro e que abrisse esse espaço também para dar oportunidade às pessoas que tinham algum potencial em relação às artes cênicas. E o TEN, antes de mais nada, sempre se preocupou com a questão da discriminação racial. Esse era o objetivo maior, que era a parte sócio-racial.
Mulheres: E que é nos anos 50 e é uma luta até hoje.
Léa Garcia: Até hoje, pois é.
Mulheres: No final dos anos 50 você chega ao cinema. Foi o cinema primeiro ou foi a televisão?
Léa Garcia: Eu cheguei primeiro ao cinema. Eu fiz televisão, mas foi com o TEN, em São Paulo, estava grávida de meu segundo filho, foi lá na Tupi de São Paulo. Foi rápido, uma peça que eu encenei lá, “Onde Está Marcado a Cruz”, de (Eugene) O´Neil, que foi a peça que Ruth estreou em teatro. Eu fiz uma velhinha de 80 anos e eu tinha dezessete anos. Mas então, eu fiz primeiro cinema, eu fui fazer os testes para Orfeu.
Mulheres: Você chega ao cinema em um momento muito importante. Como você chegou até ele?
Léa Garcia: Eu desenvolvi toda a minha vida fazendo teatro no TEN, fiz algumas peças do Abdias, depois eu fiz “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes, e aí o meu nome começou a ser ventilado. Quando o Marcel Camus chegou, ele, na certa, deve ter feito um levantamento das pessoas daqui que tinham um pouco de projeção no meio artístico. Assim mesmo ele abriu um concurso na Maison de France para que as pessoas se candidatassem aos personagens de Orfeu. Eu fui correndo me candidatar ao personagem da Mira, porque eu a tinha feito no teatro, mas acontece que não era o tipo físico que o Camus queria.
Eu fiz a Serafina, que não existe na peça, só na adaptação cinematográfica. Eu concorri com várias candidatas, foram quatro finalistas e eu acabei conquistando esse personagem. Ele achava que eu não tinha o tipo físico para a Serafina, ele gostava mais do tipo da Teresa Santos, que hoje é uma mulher engajada no movimento negro em São Paulo, e da Eunice, uma menina que logo após as filmagens morreu em uma explosão de gás em um banheiro. Ela faz uma daquelas moças do filme. Mas eu, sabidamente, ficava observando elas interpretarem, e aí ficava tirando uma coisa de uma, uma coisa de outra, um pouquinho de cada uma. E Marcel começou a observar que eu me detinha muito olhando as outras ensaiarem. E nós ficamos lá, acho que um mês ou dois, fazendo esses testes. Eu estava sempre muito atenta e quando eu ia fazer o trabalho ele sentiu que eu colocava um pouco das outras. Ele percebeu um interesse maior. Aí eu conquistei a personagem.
Mulheres: E que fez um grande sucesso no Festival de Cannes.
Léa Garcia: É, eu quase ganhei a Palma.
Mulheres: Você foi indicada a Melhor Atriz, não é? Você se lembra quem ganhou na época?
Léa Garcia: Fui sim. Quem ganhou na época foi Simone Signoret, em Almas em Leilão.
Mulheres: Depois você repete outra parceria com ele em Os Bandeirantes. Você entra os anos 60 com um papel que eu, particularmente, acho maravilhoso, em Ganga Zumba (Carlos Diegues). Aquela cena em que você cantarola, eu gosto muito.
Léa Garcia: Você gosta daquela cena? Eu não gosto.
Mulheres: Eu adoro.
Léa Garcia: Eu gosto da cena do rio com o Pitanga, eu gosto da cena do leque, a cena do leque eu acho ótima. Dificilmente eu acho ótimo alguma coisa que eu faço, mas a cena do leque, se arrastando no chão para apanhar o leque, ele se desenrola e ela mesmo se prejudica, aquela cena eu acho muito boa, porque é uma cena em que eu não estava posando e ela é naturalmente sensual, sem cortar nada.
Mulheres: Aí nos anos 60 você ainda faz o Santo Módico (1964).
Léa Garcia: É, do Robert Mazoyer, que foi o assistente do Camus em Orfeu Negro.
Mulheres: Nessa mesma década você começa nas novelas, em 69, na novela “Acorrentados”.
Léa Garcia: Na TV Rio?... “Acorrentados” na TV Rio, com Leila Diniz, Betty Faria acabando de ter a neném, Dina Sfat ainda sem casar com o Paulo José. Tinha muitos atores na novela. Monah Delacy, Ivone Hoffman…
Mulheres: Na televisão você desenvolve uma carreira longa com mais de 20 novelas.
Léa Garcia: É, eu ganhei esse ano em São Paulo um prêmio do Emanoel Araújo. Eles fizeram um levantamento e eu fui a atriz negra que mais fez televisão até aquela data. Naquela época, daqui a pouco deixa de ser. E não só novelas, naquele tempo tinham muitos casos especiais, série “Aplauso”, “Obrigado Doutor”, o “Fantástico” com aquelas cabeças de poesia, “Plantão de Polícia”. Então eu fiz todos esses seriados.
Mulheres: É impossível falar de televisão sem falar da Rosa em “Escrava Isaura”.
Léa Garcia: A Rosa é o meu cartão de visitas.
Mulheres: Eu queria que você falasse um pouco sobre esse personagem, já que você mesma a considera seu cartão de visitas.
Léa Garcia: Na época ele me incomodava bastante, mas agora eu acho que ele foi um dos trabalhos positivos que eu fiz. Aliás, eu considero todos os trabalhos que eu fiz, mesmo aqueles que aparentam não ter grande importância. Eles são todos muito importantes na minha vida. Quanto à Rosa, é sempre muito bom fazer a vilã, o próprio público gosta muito da vilã. E para o ator enquanto trabalho é muito bom porque você libera as suas feras e explora um lado que você acha que talvez não tenha. Isso é muito bom. Como ele era o segundo personagem feminino da novela, ele tinha essa grande importância na história e realmente foi um personagem que cada vez que a TV lembra das grandes vilãs, aí no Vídeo Show ou em vários outros programas da Globo, nas grandes vilãs da televisão, a Rosa está sempre incluída.
Mulheres: E porque você não gostava na época?
Léa Garcia: Porque eu apanhei muito na rua. Eu apanhei bastante. Eu fui vaiada uma vez no Sambódromo, o Sambódromo inteirinho me vaiou. Foi com meu querido amigo falecido, vai fazer um ano agora, Haroldo de Oliveira. Nós estávamos passeando com a esposa dele e mais alguns amigos meus e o Haroldo brincando se posicionou bem no meio da passarela e foi dizer, “Minhas senhoras e meus senhores, eu tenho a honra de apresentar a vocês aquela que tanto maltratou a nossa Isaurinha” (risos). Eu fui me encolhendo e dizendo para ele “não faça isso, Haroldo”, e ele rindo porque ele era muito engraçado. Aí o Haroldo falou isso e todo o público me vaiou: úuuuuuuuuuu. (risos).
Apanhei também tomando um táxi, uma mulher me deu um beliscão no braço e me disse que não aguentava mais me ver fazendo tanta maldade. Meu caçula, que tinha uns dez anos, dizia, “bate nela mamãe, bate nela”, e eu disse, “não vou bater nada, se eu bater vai ficar pior ainda”. Uma outra vez foi pior ainda, essa eu falei no “Fantástico”. Eu gosto muito de fazer feira, esse meu lado de Iansã é muito interessante. Eu fui à feira de manhã, eu morava no Flamengo e fui a uma feira que tinha no Catete. Então, quando eu estava toda prosa andando na feira, uma mulher me lasca uma corvina no meu peito, me bate com aquela corvina para eu parar de fazer maldade com a Isaura. Sabe o que é levar uma peixada no peito, aquelas escamas todas em cima de você? O Rubens de Falco também sofreu, aliás todos esses vilões de novelas sofreram bastante. Agora é que o público já está em um processo de compreensão, mas antes era muito forte para o grande público.
Eu morava numa casa que tinha um quintal enorme, eu morei um ano em Oswaldo Cruz em uma casa grande que era toda arborizada e eu tinha mudado. Eu morei lá um ano, durante a época da novela, e saí porque eu não aguentava mais ter que ficar indo para lá e para cá, achava longe, subúrbio. Aí (risos), apedrejaram a casa toda (risos), quebraram vidraça, a casa toda. Os vizinhos me ligaram, “Léa se você estivesse morando aqui ia ser um terror”. A minha prima morou durante não sei quantos anos, a Cléa Simões, atriz também...
Mulheres: Ela é sua prima?
Léa Garcia: É minha prima não consanguínea, é por afinidade. Ela morava em Ramos e eu ia sempre na casa dela, todo domingo, durante anos, 20 anos ou mais. Na época da “Escrava Isaura” ela estava em casa assistindo a novela e aí daí a pouco eu morro. A vila inteira foi para a praça gritando: “bandida, bem feito!”. Aí a Cléa chegou e disse “gente, o que é isso, vocês conhecem a Lea!” (risos).
Mulheres: Eu já li você falando de uma personagem de televisão que você gosta que é a Leila da novela “Marina” (1980). É um destaque?
Léa Garcia: Gosto muito. Para mim ela é importante porque o pessoal diz aí que a gente não vê negro com uma posição social em novelas. A Leila tinha uma posição social boa, era professora de história em um colégio de grã-finos. A Íris Nascimento fazia a minha filha, ela estudava no mesmo colégio e sofria discriminação por parte de algumas alunas, mas ela se mantinha firme. Às vezes eles não respeitavam a entrada dela em sala de aula, ela voltava, impunha silêncio e respeito, e sabia se colocar muito bem com eles. E teve um momento em que a minha filha começa a ficar com problemas em relação ao rapaz por quem tinha se apaixonado, um rapaz branco, e eu então dou uma aula para ela da História do Brasil em relação ao Quilombo dos Palmares. Só que a moça que fez a pesquisa fez uma pesquisa que não tinha a minha visão, tinha uma visão eurocentrista, a visão da história oficial. Aí eu cheguei para o Herval Rossano, diretor, e pedi para ele se eu podia mudar. Naquele tempo eu fazia parte da direção do IPCN (1980), eu não era diretora, eu fazia parte do corpo de direção. Aí então o Herval disse que sim, que eu pegasse e depois levasse para ele ler.
Era um momento em que eu falava duas páginas quase, sem parar, a novela quase toda naquele dia era eu dizendo isso. Eu fico muito boba, assim, muito surpresa, porque o pessoal do Movimento Negro nunca mencionou isso. Eu levei ao diretor Herval Rossano, ele mostrou para a pesquisadora dele, Ana Maria, ela concordou, e eu disse toda a página do Quilombo dos Palmares com a visão afro-brasileira, com a visão realmente certa do que aconteceu, com toda a problemática da época colocada de uma forma decente, sem paternalismos, sem nada, e nunca (veemente) eles disseram nada.
Mulheres: Como é o seu envolvimento com o Movimento Negro?
Léa Garcia: Eu vou dizer uma coisa para você: a minha postura é de uma pessoa que sabe o preconceito que nós passamos, sabe que nós temos que ter uma conscientização dessa questão. Eu comecei a fazer parte, mas eu saí. Porque antes de mais nada eu sou atriz e eu não eu não podia permitir que determinadas pessoas do Movimento Negro achassem que eu era mais atriz que engajada. Então eu disse a eles “Já que aqui dentro eu não posso ser as duas coisas, eu vou ser o que eu realmente tenho, todo o meu sentimento, a minha alma voltada. E que é a arte de representar, porque através dela eu posso fazer várias denúncias”. Então eu não me afastei, eu apenas não tomo mais parte de direção de nada, não estou engajada ali, mas com todo o meu sentimento democrático e anti preconceito racial voltada para o social desse país, o sócio-econômico do país. Extremamente voltada para a nossa questão porque ela é vital para nós.
Mulheres: Lá do TEN, nos anos 50 até agora, você acha que modificou muito a questão do artista negro nos veículos?
Léa Garcia: Não, o que aconteceu foi que houve uma penetração maior. Foi muito bom porque as pessoas que abriram as portas estão vendo que tudo que passaram, com todas as dificuldades, que isso tudo foi muito bom, porque essa penetração agora de vários atores, vários jovens que estão surgindo, isso é muito importante. Que nós temos realmente que ocupar esses espaços, se nós quisermos realmente produzir trabalhos que nos dizem realmente respeito nós temos que ocupar todos os cargos, direção, produção, não só como ator, porque se ficar só como ator você não consegue nada. Você tem que estar nos postos de direção, de produção, câmera, edição, para você chegar realmente a ter um lugar ao sol.
Mulheres: O que você pensa sobre políticas como a de cotas para negros nas universidades?
Léa Garcia: Olha, eu acho que a questão da cota é muito importante. Eu não falo em termos de paternalismo não, eu falo em termos de dar oportunidades, porque muitas vezes as vagas terminam. E depois se passa por uma peneira seletiva em que os acentuadamente mais negros dançam. Então eu não quero dizer que você vai dar um espaço a quem não merece, a quem não está bem preparado, não é isso. Eu quero dizer que se você sobrou em determinado momento você poderá ser aproveitado daqui a pouco. Eu fico triste quando eu encontro vários negros dizendo que isso os incomodam porque se sentem humilhados, porque acham que isso é uma forma de paternalismo, não é. Se você tiver uma visão de que você passa realmente por peneira, e a gente sabe que passa, não pode ser encarado dessa forma. Agora, daqui a pouco talvez não precise mais, com essa coisa agora da ENEN eu acho que daqui a pouco não se precisa mais disso. Por enquanto, só, quem sabe, dois ou três anos, daqui a pouco não. É negros e índios, já passou da hora. A gente tinha que fazer isso também em empresas, não é só em faculdades não. Em empresas privadas não se pode fazer, mas nas empresas exige-se pessoas de boa aparência e qual é a boa aparência que se exige?
Mulheres: Léa, voltando um pouco para o cinema, eu queria que você comentasse alguns filmes: tem O Forte (1974), do Olney São Paulo...
Léa Garcia: Gostei muito de fazer.
Mulheres: Compasso de Espera (1969), do Antunes Filho, Ladrões de Cinema (1977), do Fernando Cony Campos, A Deusa Negra (1978) e A Noiva da Cidade (1978). Eu gostaria que você falasse sobre Compasso de Espera, esse filme do Antunes Filho é quase mítico, muita gente não viu.
Léa Garcia: Eu mesma não vi o filme, eu só vi a parte que eu fiz no dia. Aliás, eu vi o filme em São Paulo, em uma projeção rapidamente, não me lembro mais, só me lembro daquela cena em que como angu com o Zózimo Bulbul, que faz o meu irmão. Se você me perguntar do que realmente tratava o filme eu não me lembro mais.
Mulheres: Eu ia perguntar se você se lembra de como era a direção do Antunes?
Léa Garcia: Me lembro, me lembro. Antunes é um cara meio engraçado, mas estava bem, naquela época, ele estava mais tranquilo, foi boa a direção dele. Eu só fiz uma cena no filme, ou duas parece, se não me engano. Eu não me lembro mais.
Mulheres: E A Deusa Negra (1978)?
Léa Garcia: A Deusa Negra foi muito bom, com Ola Balogum. Nós íamos fazer aquelas cenas todas debaixo d’água, só que não houve possibilidade. Eles não conseguiram a piscina, não conseguiram nada, eu queria fazer debaixo d’água, como é realmente, fosse num lago ou coisa assim.
Mulheres: E A Noiva da Cidade, do Alex Viany?
Léa Garcia: Esse aí eu tenho muito carinho por ele, porque o Alex era uma pessoa muito querida, pessoas que eu adoro, como Betina (Vianny) e Bibi (Vianny). Nós vivemos em uma cidade que eu tenho impressão que não existe mais, Volta Grande, não deve estar mais como era naquela época. Nós vivemos assim um período de sonho naquela cidade. Convivendo com Humberto Mauro, com a esposa dele, dona Bebê, pessoas que nem existem mais. Me traz recordações muito boas em termos de convivência.
Mulheres: A minha entrevista anterior foi com a Dóris Monteiro, cantora que foi lançada como atriz pelo Alex Viany no cinema em Agulha no Palheiro (1953).
Léa Garcia: Eu tinha um carinho muito grande pelo Alex, aquele filme tem muita gente que morreu, mas muitas. Aliás, em Ganga Zumba tem uma cena em que o Pitanga é o único vivo, meu Deus do Céu!, todo mundo morreu ali, uma loucura. Eu gostei bastante.
Ladrões de Cinema foi lá em cima no morro, eu tenho uma cena apenas e foi muito interessante fazer aquela cena com o Antero Luís.
Mulheres: Ladrões de Cinema é um clássico.
Léa Garcia: É um clássico do Fernando e ele fez muito bem. Aquele filme foi muito dificultoso, teve vários problemas, mas foi bom.
Mulheres: Você voltou ao Ganga Zumba e me veio uma questão: onde anda Luíza Maranhão?
Léa Garcia: Pitanga disse que ela está na Europa. Parece que ela se corresponde sempre com o Antônio Pitanga. Parece que as pessoas estavam dizendo que ela tinha morrido, mas não. Quando eu fui fazer com ele uma entrevista agora para o Caderno de Cinema, ele então disse que Luísa Maranhão, ela era muito bonita, né? está lá, não sei se na Itália, em um lugar qualquer da Europa.
Mulheres: Nos anos 80 você faz com o Carlos Diegues o filme Quilombo (1984) e depois volta nos anos 90 fazendo Orfeu (1999). O Cacá Diegues é tido como o cineasta brasileiro que mais focaliza a cultura negra no conjunto de obra. Como que é trabalhar com o Cacá Diegues? Você concorda com isso?
Léa Garcia: Olha, eu não sei o que aconteceu com o Cacá Diegues em relação a mim, porque no Quilombo ele me chamou, eu tenho uma participação apenas, eu faço aquela cena, uma pietá com o Milton Gonçalves deitado no meu colo, ali nos leprosos, na morte dos leprosos. Eu não queria fazer o Orfeu, esse segundo Orfeu, eu até falei para o Milton que ia devolver e o Jorge Coutinho disse para eu não fazer isso. O Cacá disse “Léa, eu quero te homenagear, você que é a única que fez Orfeu”. Mas ele não me homenageou, porque ele me botou como participação especial, ele não me colocou nos créditos maiores do filme. E a tomada que ele fez comigo ele devia ter feito com qualquer pessoa. Porque eu fiz uma tomada, uma única cena à noite, cumprimentando a Zezé (Motta) na porta, com uma criança que gritava, que não podia ver a câmera na frente dela, a criança me socava, me unhava, coitada da menina, ela tinha pavor da câmera. E eu tenho reações com o filho porque ele muda de nome, com a neném, surpresa porque o filho inventa um nome que não era dele e aquela loucura de ter que trabalhar e tem que deixar a criança. Ele fez tudo em plano geral, eu não sei o porquê. Então ele me usou à toa, talvez ele tenha querido mostrar o quanto eu já estivesse ultrapassada, eu acredito.
Mulheres: É mesmo? Você acha isso?
Léa Garcia: Eu acho isso. Porque homenagem ele não me fez em momento algum, em momento algum. Não tenho medo de dizer isso e eu digo isso para o Cacá. Homenagem o Cacá não me fez em momento algum.
Mulheres: Curioso, porque você é uma presença tão forte em Ganga Zumba.
Léa Garcia: Ele não me fez homenagem em momento algum, algum. Nem no outro, o Milton disse “vamos Léa, fazer a cena juntos”, e eu fiz em Quilombo. E quanto a esse Orfeu.... Mas como o filme é uma porcaria, uma droga, não tem importância, foi até bom eu ter aparecido pouco, o filme é um horror. Na hora em que fui ler o texto e eu vi o menino chamando a Eurídice de Pocahontas, eu disse “Puxa porque ele não a chama de Iracema, Jaci, por que Pocahontas?” Ah não, Deus me livre! E não vi o filme. Eu vi uma vez na televisão, um pedaço, desliguei porque foi horrível o que estava vendo, eu não queria mais.
Eu saí da gravação e ele disse “Léa venha ver”, e eu disse “eu não enxergo no monitor, eu sou míope”. E é verdade, eu tenho que ficar de óculos e com a cara grudada no monitor. Ele disse “você gostou?” Eu disse, “Eu gostei tanto”, e olhei para a cara dele e virei as costas. Aí a moça olhou para mim, a menina da produção, “Lea, o trabalho...” e eu saí de perto dela, não disse nada. Primeiro me enfeiaram toda, passaram coisa no meu rosto para eu ficar mais velha, uma roupa horrorosa que não tinha sentido. Aliás, em relação às roupas daquele filme... Então eu fiquei surpresa, porque se eu posso ser mãe do menino de 12 anos e de uma menina pequenininha, eu não tenho necessidade de estar vestida feito uma carcamana. As mulheres negras do morro usam bermuda, top, são gordas, uma bunda enorme, a barriga lá na frente. Essa é a realidade no morro, atualmente. Você não usa cinza nem preto, e nem fica toda suja, não tem necessidade de fazer isso com você, com a pessoa. Eu podia estar normal, normal, normal. Porque é assim, atualmente é assim, elas descem aqui e você nem sabe se são do morro ou não. Então realmente eu achei um descaso do Cacá Diegues e não o perdoo, não o perdoo mesmo. Não quero fazer mais nenhum trabalho com ele.
Mulheres: Você termina os anos 90 fazendo Cruz e Souza – O Poeta do Desterro (1998), do Sylvio Back. Como foi trabalhar com ele?
Lea Garcia: Foi muito bom, eu gosto bastante daquele filme, é um filme difícil, não é para grande público. E também é um filme muito do Sylvio, muito voltado para dentro dele e para dentro do Cruz e Souza. Não é fácil também você fazer um filme dizendo poemas do simbolismo do Cruz e Souza, são poemas bem difíceis de fazer e eu acho que naqueles minutinhos que eu apareço, aqueles segundos em que apareço na tela, valem mais do que vários trabalhos que eu fiz aí inteiros, porque foi muito bem aproveitado. Eu não tive nome como destaque nem nada, tive nome normal, mas estava lá, ente as pessoas principais do filme. Eu também não era o Cruz e Souza, eu não era a mulher dele, então eu não podia ter o nome na frente, mas eu era o quarto nome e a cena foi muito bem aproveitada, tudo o que eu fiz foi muito bem aproveitado. Olha, foi um prazer fazer aquele filme com o Sylvio Back e o convívio com a equipe dele também foi muito boa, o convívio com todo o elenco, o convívio sem estrelismos, não tinha ninguém posando de estrelo nem olhando de cima, nada disso, excelente o convívio. A mesma coisa foi o filme do Joel (Zito, Filhas do Vento), pessoas que você convive bem, com quem você tem um bom relacionamento, uma equipe maravilhosa. Então o filme do Sylvio foi muito bom, ficou uma amizade muito boa dele com a gente, e atencioso, não é tratar você como um lixo. É um cinema sério.
Agora fala-se tanto lá do Palmares, do Quilombo. O Quilombo para mim é muito festivo, eu acho uma festa. Eu entendi ali a visão do diretor, ele achou que chegou lá em cima, porque o Ganga Zumba é uma preparação para o Quilombo. Mas Quilombo é uma festa, apesar das mortes acontecendo, é tudo muito festivo. Será que aquelas pessoas tinham tempo de fazer aquelas trancinhas cheias de contas? Cada hora que o Pitanga vem ele está com um cabelo diferente na cabeça, cada um a cada hora. Não, eu sei que na África tinha tempo para isso, mas lá em cima no Quilombo não tinha muito não. Muita fantasia, muito carnavalizado, muito.
Mulheres: Os anos 2000. Você participou do Viva Sapato (Luiz Carlos Lacerda, 2002). Eu não vi esse filme ainda.
Léa Garcia: E nem eu. É que na duas vezes em que eles me chamaram para as estreias que teve aqui eu estava em Lavras Novas fazendo Filhas do Vento. Depois teve uma outra exibição, mas eu estava em Cantagalo fazendo Remissão, do Sílvio Coutinho.
Mulheres: Esse filme você já rodou?
Léa Garcia: Eles estão aprontando. Remissão está sendo aprontado, está na fase de montagem.
Mulheres: E o grande momento Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, em que você foi premiada esse ano no Festival de Gramado (com Ruth de Souza). Esse é um filme que foi aplaudido por toda a crítica.
Léa Garcia: É, foi muito prazeroso fazer Filhas do Vento.
Mulheres: O filme reuniu um elenco imbatível, você, Ruth, Maria Ceiça, Elisa Lucinda...
Léa Garcia: As meninas, (Maria) Ceiça, Danielle (Ornelas), Taís (Araújo), Thalma (de Freitas). Milton Gonçalves, Rocco (Pitanga), Zózimo Bulbul, meu querido Zózimo, meu irmãozão amado, então foi muito bom. E o Joel, que é um diretor maravilhoso, excelente, e que nos deu essa chance de um diretor negro estar rodando um filme de 35 mm que ganha, que premiou tanta gente.
Mulheres: Ele já vinha com aquele trabalho tão bonito, A Negação do Brasil, o documentário, a participação dos atores negros nas novelas, e se coroou agora com Filhas do Vento. Teve aquela polêmica em Gramado com o Rubens (Ewald Filho) e que depois acabaram resolvendo as questões. Você que está dentro, qual a importância de um filme como esse, já que nós falamos sobre a participação do artista negro desde o TEN até hoje.
Léa Garcia: Filhas do Vento foi um filme que, desde o início, quando o roteiro chegou até nossas mãos, que nós torcíamos muito para que acontecesse bem. Porque ele era favorável aos nossos anseios, ele vinha realmente satisfazer os nossos anseios, de um elenco composto a maioria por atores negros e com um diretor negro, vários elementos dentro da equipe negros também. Então esse filme veio realmente justificar, favorecer e mostrar que nós estamos certos, que a partir do momento em que nós temos um diretor e um elenco negro e tivermos um dia a produção, nós estaremos muito bem, porque nós estaremos fazendo, representando sem nenhuma visão eurocentrista.
A nossa realidade, será a nossa verdade que estará à tona porque temos a mão de um homem que sabe o que é isso, ele é um homem do interior, a mãe dele é mineira, a família dele é mineira, e é negro. Ele sabe como cada uma daquelas mulheres iriam se comportar. Então aí vem um cinema verdade. Ele veio realmente mostrar que nossos anseios estão certos, nós temos que nos preocupar é com os espaços para que possamos ser reconhecidos algum dia.
Mulheres: No teatro você tem também uma carreira extensa. Está agora em “As Pequenas Raposas”.
Léa Garcia: Terminamos no Rio e vamos no dia 3 de janeiro para Brasília. Depois voltamos a Niterói, não sei se vamos a São Paulo, vamos ver.
Mulheres: Tem projeto para o cinema? Eu li sobre um projeto que você falou que se chama “Minuano”...
Léa Garcia: Eu estive falando com o Eliobe, diretor. Nós temos esse projeto já há uns três ou quatro anos, mas há o problema da verba. Eu fico como medo, porque as pessoas estão envelhecendo, Zózimo ( Bulbul) já está meio doentinho. Eu vou ter que enfrentar o extremo gaúcho com um vento terrível, eu sou a personagem principal do filme. Eu fico com muita pena do atraso e espero que eu possa fazê-lo.
Mulheres: Ele então ainda está nesse processo, está se conversando sobre ele?
Léa Garcia: Está na captação de recursos.
Mulheres: Durante a carreira do cinema brasileiro tem alguma atriz que você destacaria, que você gosta muito, seja da época dos primeiros filmes ou atualmente? Tem alguma atriz que você gosta, admira?
Léa Garcia: Eu gosto muito de algumas atrizes negras. Eu vou citar, eu gosto muito dos trabalhos da Neusa Borges, da Ruth de Souza, da jovem Taís Araújo, da Thalma de Freitas. As outras, as que não são negras, eu não preciso citá-las porque elas sempre são muito citadas.
Mulheres: Alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
Léa Garcia: Tem uma atriz que me apoiou muito em um momento muito difícil da minha vida, e que se chama Bibi Ferreira, quando eu fiz “Piaf” com ela. Essa criatura talvez, se fosse uma outra pessoa, não aceitaria as dificuldades que tive durante os primeiros seis meses para fazer aquele personagem. E a Bibi me segurou e isso eu tenho guardado em mim durante muito tempo, para o resto da minha vida.
Mulheres: Muitíssimo obrigado, foi um prazer enorme falar com você.
Léa Garcia: Eu também. Ah, tenho três filhos, três netos, dois bisnetos.
Mulheres: família grande, né?
Léa Garcia: Médio, né?
Mulheres: Mas já faz um barulhinho.
Léa Garcia: (risos). Obrigada, tudo de bom para você.
Entrevista realizada em novembro de 2004.
Premiada como Melhor Atriz no Festival de Gramado 2004 – junto a Ruth de Souza – pelo filme Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, Léa Garcia é uma das mais importantes atrizes brasileiras. Presença fundamental nas artes cênicas, a atriz começou a carreira no TEN – Teatro Experimental do Negro, estreou no cinema em Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, e desenvolveu na TV uma carreira extensa cujo ponto alto é a odiada – à época – vilã Rosa em “Escrava Isaura” (1976), de Gilberto Braga.
Léa Garcia conversou com o Mulheres do Cinema Brasileiro pelo telefone de sua casa no Rio de janeiro. Ela lembra o início da carreira no TEN, “Não queria ser atriz, queria ser escritora”, da chegada ao cinema e da carreira na televisão, “A Rosa é o meu cartão de visitas”. Léa Garcia faz severas críticas ao cineasta Carlos Diegues, “Não quero fazer mais nenhum trabalho com ele”, e elogia Sylvio Back, “aqueles minutinhos em que eu apareço, aqueles segundos em que apareço na tela, valem mais do que vários trabalhos que eu fiz aí inteiros”. A atriz fala também, é claro, de Filhas do Vento, “ele era favorável aos nossos anseios, ele vinha realmente satisfazer os nossos anseios”.
Mulheres do Cinema Brasileiro: Léa, você começou sua carreira artística pelo Teatro Experimental do Negro. Como você chegou até o TEN?
Léa Garcia: Eu cheguei ao TEN através do Abdias do Nascimento. Nós estávamos morando juntos, eu era bem jovem e tinha acabado de ter um neném. Ele falava para mim que eu tinha um temperamento artístico, mas eu não queria, eu queria ser escritora. Então ele insistia para que eu verificasse o meu potencial. Eu não queria saber disso, então eu brigava em casa e dizia “não quero!”, aqueles ataques de garota de 16 anos. Aí ele me levava em frente do espelho e mostrava a minha máscara, assim e assado. Bom, ele me convenceu e eu acabei estreando em um trabalho que intitulava-se “Rapsódia Negra”, que era dança, poema. Eu estreei dizendo o poema “Navio Negreiro”, do Castro Alves.
Mulheres: Isso foi em 1952?
Léa Garcia: É. E eu já tinha um bebê. Dançando algumas coisas também, como “Rainha do Maracatu”, “Oxum”, e várias outras danças. Aí eu pisei nas tábuas e gostei.
Mulheres: Você que participou, como foi o TEN na época?
Léa Garcia: Olha, eu não peguei o TEN na época, quem pegou foi a Ruth de Souza, de 1945 a 48. Eu peguei o TEN numa outra fase, em 52. Eu dividia a minha vida entre o TEN e o bebê que eu tinha em casa. O objetivo do TEN era que, realmente, em termos artísticos, que não se pintasse mais nenhum ator branco para fazer papéis de negro e que abrisse esse espaço também para dar oportunidade às pessoas que tinham algum potencial em relação às artes cênicas. E o TEN, antes de mais nada, sempre se preocupou com a questão da discriminação racial. Esse era o objetivo maior, que era a parte sócio-racial.
Mulheres: E que é nos anos 50 e é uma luta até hoje.
Léa Garcia: Até hoje, pois é.
Mulheres: No final dos anos 50 você chega ao cinema. Foi o cinema primeiro ou foi a televisão?
Léa Garcia: Eu cheguei primeiro ao cinema. Eu fiz televisão, mas foi com o TEN, em São Paulo, estava grávida de meu segundo filho, foi lá na Tupi de São Paulo. Foi rápido, uma peça que eu encenei lá, “Onde Está Marcado a Cruz”, de (Eugene) O´Neil, que foi a peça que Ruth estreou em teatro. Eu fiz uma velhinha de 80 anos e eu tinha dezessete anos. Mas então, eu fiz primeiro cinema, eu fui fazer os testes para Orfeu.
Mulheres: Você chega ao cinema em um momento muito importante. Como você chegou até ele?
Léa Garcia: Eu desenvolvi toda a minha vida fazendo teatro no TEN, fiz algumas peças do Abdias, depois eu fiz “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes, e aí o meu nome começou a ser ventilado. Quando o Marcel Camus chegou, ele, na certa, deve ter feito um levantamento das pessoas daqui que tinham um pouco de projeção no meio artístico. Assim mesmo ele abriu um concurso na Maison de France para que as pessoas se candidatassem aos personagens de Orfeu. Eu fui correndo me candidatar ao personagem da Mira, porque eu a tinha feito no teatro, mas acontece que não era o tipo físico que o Camus queria.
Eu fiz a Serafina, que não existe na peça, só na adaptação cinematográfica. Eu concorri com várias candidatas, foram quatro finalistas e eu acabei conquistando esse personagem. Ele achava que eu não tinha o tipo físico para a Serafina, ele gostava mais do tipo da Teresa Santos, que hoje é uma mulher engajada no movimento negro em São Paulo, e da Eunice, uma menina que logo após as filmagens morreu em uma explosão de gás em um banheiro. Ela faz uma daquelas moças do filme. Mas eu, sabidamente, ficava observando elas interpretarem, e aí ficava tirando uma coisa de uma, uma coisa de outra, um pouquinho de cada uma. E Marcel começou a observar que eu me detinha muito olhando as outras ensaiarem. E nós ficamos lá, acho que um mês ou dois, fazendo esses testes. Eu estava sempre muito atenta e quando eu ia fazer o trabalho ele sentiu que eu colocava um pouco das outras. Ele percebeu um interesse maior. Aí eu conquistei a personagem.
Mulheres: E que fez um grande sucesso no Festival de Cannes.
Léa Garcia: É, eu quase ganhei a Palma.
Mulheres: Você foi indicada a Melhor Atriz, não é? Você se lembra quem ganhou na época?
Léa Garcia: Fui sim. Quem ganhou na época foi Simone Signoret, em Almas em Leilão.
Mulheres: Depois você repete outra parceria com ele em Os Bandeirantes. Você entra os anos 60 com um papel que eu, particularmente, acho maravilhoso, em Ganga Zumba (Carlos Diegues). Aquela cena em que você cantarola, eu gosto muito.
Léa Garcia: Você gosta daquela cena? Eu não gosto.
Mulheres: Eu adoro.
Léa Garcia: Eu gosto da cena do rio com o Pitanga, eu gosto da cena do leque, a cena do leque eu acho ótima. Dificilmente eu acho ótimo alguma coisa que eu faço, mas a cena do leque, se arrastando no chão para apanhar o leque, ele se desenrola e ela mesmo se prejudica, aquela cena eu acho muito boa, porque é uma cena em que eu não estava posando e ela é naturalmente sensual, sem cortar nada.
Mulheres: Aí nos anos 60 você ainda faz o Santo Módico (1964).
Léa Garcia: É, do Robert Mazoyer, que foi o assistente do Camus em Orfeu Negro.
Mulheres: Nessa mesma década você começa nas novelas, em 69, na novela “Acorrentados”.
Léa Garcia: Na TV Rio?... “Acorrentados” na TV Rio, com Leila Diniz, Betty Faria acabando de ter a neném, Dina Sfat ainda sem casar com o Paulo José. Tinha muitos atores na novela. Monah Delacy, Ivone Hoffman…
Mulheres: Na televisão você desenvolve uma carreira longa com mais de 20 novelas.
Léa Garcia: É, eu ganhei esse ano em São Paulo um prêmio do Emanoel Araújo. Eles fizeram um levantamento e eu fui a atriz negra que mais fez televisão até aquela data. Naquela época, daqui a pouco deixa de ser. E não só novelas, naquele tempo tinham muitos casos especiais, série “Aplauso”, “Obrigado Doutor”, o “Fantástico” com aquelas cabeças de poesia, “Plantão de Polícia”. Então eu fiz todos esses seriados.
Mulheres: É impossível falar de televisão sem falar da Rosa em “Escrava Isaura”.
Léa Garcia: A Rosa é o meu cartão de visitas.
Mulheres: Eu queria que você falasse um pouco sobre esse personagem, já que você mesma a considera seu cartão de visitas.
Léa Garcia: Na época ele me incomodava bastante, mas agora eu acho que ele foi um dos trabalhos positivos que eu fiz. Aliás, eu considero todos os trabalhos que eu fiz, mesmo aqueles que aparentam não ter grande importância. Eles são todos muito importantes na minha vida. Quanto à Rosa, é sempre muito bom fazer a vilã, o próprio público gosta muito da vilã. E para o ator enquanto trabalho é muito bom porque você libera as suas feras e explora um lado que você acha que talvez não tenha. Isso é muito bom. Como ele era o segundo personagem feminino da novela, ele tinha essa grande importância na história e realmente foi um personagem que cada vez que a TV lembra das grandes vilãs, aí no Vídeo Show ou em vários outros programas da Globo, nas grandes vilãs da televisão, a Rosa está sempre incluída.
Mulheres: E porque você não gostava na época?
Léa Garcia: Porque eu apanhei muito na rua. Eu apanhei bastante. Eu fui vaiada uma vez no Sambódromo, o Sambódromo inteirinho me vaiou. Foi com meu querido amigo falecido, vai fazer um ano agora, Haroldo de Oliveira. Nós estávamos passeando com a esposa dele e mais alguns amigos meus e o Haroldo brincando se posicionou bem no meio da passarela e foi dizer, “Minhas senhoras e meus senhores, eu tenho a honra de apresentar a vocês aquela que tanto maltratou a nossa Isaurinha” (risos). Eu fui me encolhendo e dizendo para ele “não faça isso, Haroldo”, e ele rindo porque ele era muito engraçado. Aí o Haroldo falou isso e todo o público me vaiou: úuuuuuuuuuu. (risos).
Apanhei também tomando um táxi, uma mulher me deu um beliscão no braço e me disse que não aguentava mais me ver fazendo tanta maldade. Meu caçula, que tinha uns dez anos, dizia, “bate nela mamãe, bate nela”, e eu disse, “não vou bater nada, se eu bater vai ficar pior ainda”. Uma outra vez foi pior ainda, essa eu falei no “Fantástico”. Eu gosto muito de fazer feira, esse meu lado de Iansã é muito interessante. Eu fui à feira de manhã, eu morava no Flamengo e fui a uma feira que tinha no Catete. Então, quando eu estava toda prosa andando na feira, uma mulher me lasca uma corvina no meu peito, me bate com aquela corvina para eu parar de fazer maldade com a Isaura. Sabe o que é levar uma peixada no peito, aquelas escamas todas em cima de você? O Rubens de Falco também sofreu, aliás todos esses vilões de novelas sofreram bastante. Agora é que o público já está em um processo de compreensão, mas antes era muito forte para o grande público.
Eu morava numa casa que tinha um quintal enorme, eu morei um ano em Oswaldo Cruz em uma casa grande que era toda arborizada e eu tinha mudado. Eu morei lá um ano, durante a época da novela, e saí porque eu não aguentava mais ter que ficar indo para lá e para cá, achava longe, subúrbio. Aí (risos), apedrejaram a casa toda (risos), quebraram vidraça, a casa toda. Os vizinhos me ligaram, “Léa se você estivesse morando aqui ia ser um terror”. A minha prima morou durante não sei quantos anos, a Cléa Simões, atriz também...
Mulheres: Ela é sua prima?
Léa Garcia: É minha prima não consanguínea, é por afinidade. Ela morava em Ramos e eu ia sempre na casa dela, todo domingo, durante anos, 20 anos ou mais. Na época da “Escrava Isaura” ela estava em casa assistindo a novela e aí daí a pouco eu morro. A vila inteira foi para a praça gritando: “bandida, bem feito!”. Aí a Cléa chegou e disse “gente, o que é isso, vocês conhecem a Lea!” (risos).
Mulheres: Eu já li você falando de uma personagem de televisão que você gosta que é a Leila da novela “Marina” (1980). É um destaque?
Léa Garcia: Gosto muito. Para mim ela é importante porque o pessoal diz aí que a gente não vê negro com uma posição social em novelas. A Leila tinha uma posição social boa, era professora de história em um colégio de grã-finos. A Íris Nascimento fazia a minha filha, ela estudava no mesmo colégio e sofria discriminação por parte de algumas alunas, mas ela se mantinha firme. Às vezes eles não respeitavam a entrada dela em sala de aula, ela voltava, impunha silêncio e respeito, e sabia se colocar muito bem com eles. E teve um momento em que a minha filha começa a ficar com problemas em relação ao rapaz por quem tinha se apaixonado, um rapaz branco, e eu então dou uma aula para ela da História do Brasil em relação ao Quilombo dos Palmares. Só que a moça que fez a pesquisa fez uma pesquisa que não tinha a minha visão, tinha uma visão eurocentrista, a visão da história oficial. Aí eu cheguei para o Herval Rossano, diretor, e pedi para ele se eu podia mudar. Naquele tempo eu fazia parte da direção do IPCN (1980), eu não era diretora, eu fazia parte do corpo de direção. Aí então o Herval disse que sim, que eu pegasse e depois levasse para ele ler.
Era um momento em que eu falava duas páginas quase, sem parar, a novela quase toda naquele dia era eu dizendo isso. Eu fico muito boba, assim, muito surpresa, porque o pessoal do Movimento Negro nunca mencionou isso. Eu levei ao diretor Herval Rossano, ele mostrou para a pesquisadora dele, Ana Maria, ela concordou, e eu disse toda a página do Quilombo dos Palmares com a visão afro-brasileira, com a visão realmente certa do que aconteceu, com toda a problemática da época colocada de uma forma decente, sem paternalismos, sem nada, e nunca (veemente) eles disseram nada.
Mulheres: Como é o seu envolvimento com o Movimento Negro?
Léa Garcia: Eu vou dizer uma coisa para você: a minha postura é de uma pessoa que sabe o preconceito que nós passamos, sabe que nós temos que ter uma conscientização dessa questão. Eu comecei a fazer parte, mas eu saí. Porque antes de mais nada eu sou atriz e eu não eu não podia permitir que determinadas pessoas do Movimento Negro achassem que eu era mais atriz que engajada. Então eu disse a eles “Já que aqui dentro eu não posso ser as duas coisas, eu vou ser o que eu realmente tenho, todo o meu sentimento, a minha alma voltada. E que é a arte de representar, porque através dela eu posso fazer várias denúncias”. Então eu não me afastei, eu apenas não tomo mais parte de direção de nada, não estou engajada ali, mas com todo o meu sentimento democrático e anti preconceito racial voltada para o social desse país, o sócio-econômico do país. Extremamente voltada para a nossa questão porque ela é vital para nós.
Mulheres: Lá do TEN, nos anos 50 até agora, você acha que modificou muito a questão do artista negro nos veículos?
Léa Garcia: Não, o que aconteceu foi que houve uma penetração maior. Foi muito bom porque as pessoas que abriram as portas estão vendo que tudo que passaram, com todas as dificuldades, que isso tudo foi muito bom, porque essa penetração agora de vários atores, vários jovens que estão surgindo, isso é muito importante. Que nós temos realmente que ocupar esses espaços, se nós quisermos realmente produzir trabalhos que nos dizem realmente respeito nós temos que ocupar todos os cargos, direção, produção, não só como ator, porque se ficar só como ator você não consegue nada. Você tem que estar nos postos de direção, de produção, câmera, edição, para você chegar realmente a ter um lugar ao sol.
Mulheres: O que você pensa sobre políticas como a de cotas para negros nas universidades?
Léa Garcia: Olha, eu acho que a questão da cota é muito importante. Eu não falo em termos de paternalismo não, eu falo em termos de dar oportunidades, porque muitas vezes as vagas terminam. E depois se passa por uma peneira seletiva em que os acentuadamente mais negros dançam. Então eu não quero dizer que você vai dar um espaço a quem não merece, a quem não está bem preparado, não é isso. Eu quero dizer que se você sobrou em determinado momento você poderá ser aproveitado daqui a pouco. Eu fico triste quando eu encontro vários negros dizendo que isso os incomodam porque se sentem humilhados, porque acham que isso é uma forma de paternalismo, não é. Se você tiver uma visão de que você passa realmente por peneira, e a gente sabe que passa, não pode ser encarado dessa forma. Agora, daqui a pouco talvez não precise mais, com essa coisa agora da ENEN eu acho que daqui a pouco não se precisa mais disso. Por enquanto, só, quem sabe, dois ou três anos, daqui a pouco não. É negros e índios, já passou da hora. A gente tinha que fazer isso também em empresas, não é só em faculdades não. Em empresas privadas não se pode fazer, mas nas empresas exige-se pessoas de boa aparência e qual é a boa aparência que se exige?
Mulheres: Léa, voltando um pouco para o cinema, eu queria que você comentasse alguns filmes: tem O Forte (1974), do Olney São Paulo...
Léa Garcia: Gostei muito de fazer.
Mulheres: Compasso de Espera (1969), do Antunes Filho, Ladrões de Cinema (1977), do Fernando Cony Campos, A Deusa Negra (1978) e A Noiva da Cidade (1978). Eu gostaria que você falasse sobre Compasso de Espera, esse filme do Antunes Filho é quase mítico, muita gente não viu.
Léa Garcia: Eu mesma não vi o filme, eu só vi a parte que eu fiz no dia. Aliás, eu vi o filme em São Paulo, em uma projeção rapidamente, não me lembro mais, só me lembro daquela cena em que como angu com o Zózimo Bulbul, que faz o meu irmão. Se você me perguntar do que realmente tratava o filme eu não me lembro mais.
Mulheres: Eu ia perguntar se você se lembra de como era a direção do Antunes?
Léa Garcia: Me lembro, me lembro. Antunes é um cara meio engraçado, mas estava bem, naquela época, ele estava mais tranquilo, foi boa a direção dele. Eu só fiz uma cena no filme, ou duas parece, se não me engano. Eu não me lembro mais.
Mulheres: E A Deusa Negra (1978)?
Léa Garcia: A Deusa Negra foi muito bom, com Ola Balogum. Nós íamos fazer aquelas cenas todas debaixo d’água, só que não houve possibilidade. Eles não conseguiram a piscina, não conseguiram nada, eu queria fazer debaixo d’água, como é realmente, fosse num lago ou coisa assim.
Mulheres: E A Noiva da Cidade, do Alex Viany?
Léa Garcia: Esse aí eu tenho muito carinho por ele, porque o Alex era uma pessoa muito querida, pessoas que eu adoro, como Betina (Vianny) e Bibi (Vianny). Nós vivemos em uma cidade que eu tenho impressão que não existe mais, Volta Grande, não deve estar mais como era naquela época. Nós vivemos assim um período de sonho naquela cidade. Convivendo com Humberto Mauro, com a esposa dele, dona Bebê, pessoas que nem existem mais. Me traz recordações muito boas em termos de convivência.
Mulheres: A minha entrevista anterior foi com a Dóris Monteiro, cantora que foi lançada como atriz pelo Alex Viany no cinema em Agulha no Palheiro (1953).
Léa Garcia: Eu tinha um carinho muito grande pelo Alex, aquele filme tem muita gente que morreu, mas muitas. Aliás, em Ganga Zumba tem uma cena em que o Pitanga é o único vivo, meu Deus do Céu!, todo mundo morreu ali, uma loucura. Eu gostei bastante.
Ladrões de Cinema foi lá em cima no morro, eu tenho uma cena apenas e foi muito interessante fazer aquela cena com o Antero Luís.
Mulheres: Ladrões de Cinema é um clássico.
Léa Garcia: É um clássico do Fernando e ele fez muito bem. Aquele filme foi muito dificultoso, teve vários problemas, mas foi bom.
Mulheres: Você voltou ao Ganga Zumba e me veio uma questão: onde anda Luíza Maranhão?
Léa Garcia: Pitanga disse que ela está na Europa. Parece que ela se corresponde sempre com o Antônio Pitanga. Parece que as pessoas estavam dizendo que ela tinha morrido, mas não. Quando eu fui fazer com ele uma entrevista agora para o Caderno de Cinema, ele então disse que Luísa Maranhão, ela era muito bonita, né? está lá, não sei se na Itália, em um lugar qualquer da Europa.
Mulheres: Nos anos 80 você faz com o Carlos Diegues o filme Quilombo (1984) e depois volta nos anos 90 fazendo Orfeu (1999). O Cacá Diegues é tido como o cineasta brasileiro que mais focaliza a cultura negra no conjunto de obra. Como que é trabalhar com o Cacá Diegues? Você concorda com isso?
Léa Garcia: Olha, eu não sei o que aconteceu com o Cacá Diegues em relação a mim, porque no Quilombo ele me chamou, eu tenho uma participação apenas, eu faço aquela cena, uma pietá com o Milton Gonçalves deitado no meu colo, ali nos leprosos, na morte dos leprosos. Eu não queria fazer o Orfeu, esse segundo Orfeu, eu até falei para o Milton que ia devolver e o Jorge Coutinho disse para eu não fazer isso. O Cacá disse “Léa, eu quero te homenagear, você que é a única que fez Orfeu”. Mas ele não me homenageou, porque ele me botou como participação especial, ele não me colocou nos créditos maiores do filme. E a tomada que ele fez comigo ele devia ter feito com qualquer pessoa. Porque eu fiz uma tomada, uma única cena à noite, cumprimentando a Zezé (Motta) na porta, com uma criança que gritava, que não podia ver a câmera na frente dela, a criança me socava, me unhava, coitada da menina, ela tinha pavor da câmera. E eu tenho reações com o filho porque ele muda de nome, com a neném, surpresa porque o filho inventa um nome que não era dele e aquela loucura de ter que trabalhar e tem que deixar a criança. Ele fez tudo em plano geral, eu não sei o porquê. Então ele me usou à toa, talvez ele tenha querido mostrar o quanto eu já estivesse ultrapassada, eu acredito.
Mulheres: É mesmo? Você acha isso?
Léa Garcia: Eu acho isso. Porque homenagem ele não me fez em momento algum, em momento algum. Não tenho medo de dizer isso e eu digo isso para o Cacá. Homenagem o Cacá não me fez em momento algum.
Mulheres: Curioso, porque você é uma presença tão forte em Ganga Zumba.
Léa Garcia: Ele não me fez homenagem em momento algum, algum. Nem no outro, o Milton disse “vamos Léa, fazer a cena juntos”, e eu fiz em Quilombo. E quanto a esse Orfeu.... Mas como o filme é uma porcaria, uma droga, não tem importância, foi até bom eu ter aparecido pouco, o filme é um horror. Na hora em que fui ler o texto e eu vi o menino chamando a Eurídice de Pocahontas, eu disse “Puxa porque ele não a chama de Iracema, Jaci, por que Pocahontas?” Ah não, Deus me livre! E não vi o filme. Eu vi uma vez na televisão, um pedaço, desliguei porque foi horrível o que estava vendo, eu não queria mais.
Eu saí da gravação e ele disse “Léa venha ver”, e eu disse “eu não enxergo no monitor, eu sou míope”. E é verdade, eu tenho que ficar de óculos e com a cara grudada no monitor. Ele disse “você gostou?” Eu disse, “Eu gostei tanto”, e olhei para a cara dele e virei as costas. Aí a moça olhou para mim, a menina da produção, “Lea, o trabalho...” e eu saí de perto dela, não disse nada. Primeiro me enfeiaram toda, passaram coisa no meu rosto para eu ficar mais velha, uma roupa horrorosa que não tinha sentido. Aliás, em relação às roupas daquele filme... Então eu fiquei surpresa, porque se eu posso ser mãe do menino de 12 anos e de uma menina pequenininha, eu não tenho necessidade de estar vestida feito uma carcamana. As mulheres negras do morro usam bermuda, top, são gordas, uma bunda enorme, a barriga lá na frente. Essa é a realidade no morro, atualmente. Você não usa cinza nem preto, e nem fica toda suja, não tem necessidade de fazer isso com você, com a pessoa. Eu podia estar normal, normal, normal. Porque é assim, atualmente é assim, elas descem aqui e você nem sabe se são do morro ou não. Então realmente eu achei um descaso do Cacá Diegues e não o perdoo, não o perdoo mesmo. Não quero fazer mais nenhum trabalho com ele.
Mulheres: Você termina os anos 90 fazendo Cruz e Souza – O Poeta do Desterro (1998), do Sylvio Back. Como foi trabalhar com ele?
Lea Garcia: Foi muito bom, eu gosto bastante daquele filme, é um filme difícil, não é para grande público. E também é um filme muito do Sylvio, muito voltado para dentro dele e para dentro do Cruz e Souza. Não é fácil também você fazer um filme dizendo poemas do simbolismo do Cruz e Souza, são poemas bem difíceis de fazer e eu acho que naqueles minutinhos que eu apareço, aqueles segundos em que apareço na tela, valem mais do que vários trabalhos que eu fiz aí inteiros, porque foi muito bem aproveitado. Eu não tive nome como destaque nem nada, tive nome normal, mas estava lá, ente as pessoas principais do filme. Eu também não era o Cruz e Souza, eu não era a mulher dele, então eu não podia ter o nome na frente, mas eu era o quarto nome e a cena foi muito bem aproveitada, tudo o que eu fiz foi muito bem aproveitado. Olha, foi um prazer fazer aquele filme com o Sylvio Back e o convívio com a equipe dele também foi muito boa, o convívio com todo o elenco, o convívio sem estrelismos, não tinha ninguém posando de estrelo nem olhando de cima, nada disso, excelente o convívio. A mesma coisa foi o filme do Joel (Zito, Filhas do Vento), pessoas que você convive bem, com quem você tem um bom relacionamento, uma equipe maravilhosa. Então o filme do Sylvio foi muito bom, ficou uma amizade muito boa dele com a gente, e atencioso, não é tratar você como um lixo. É um cinema sério.
Agora fala-se tanto lá do Palmares, do Quilombo. O Quilombo para mim é muito festivo, eu acho uma festa. Eu entendi ali a visão do diretor, ele achou que chegou lá em cima, porque o Ganga Zumba é uma preparação para o Quilombo. Mas Quilombo é uma festa, apesar das mortes acontecendo, é tudo muito festivo. Será que aquelas pessoas tinham tempo de fazer aquelas trancinhas cheias de contas? Cada hora que o Pitanga vem ele está com um cabelo diferente na cabeça, cada um a cada hora. Não, eu sei que na África tinha tempo para isso, mas lá em cima no Quilombo não tinha muito não. Muita fantasia, muito carnavalizado, muito.
Mulheres: Os anos 2000. Você participou do Viva Sapato (Luiz Carlos Lacerda, 2002). Eu não vi esse filme ainda.
Léa Garcia: E nem eu. É que na duas vezes em que eles me chamaram para as estreias que teve aqui eu estava em Lavras Novas fazendo Filhas do Vento. Depois teve uma outra exibição, mas eu estava em Cantagalo fazendo Remissão, do Sílvio Coutinho.
Mulheres: Esse filme você já rodou?
Léa Garcia: Eles estão aprontando. Remissão está sendo aprontado, está na fase de montagem.
Mulheres: E o grande momento Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, em que você foi premiada esse ano no Festival de Gramado (com Ruth de Souza). Esse é um filme que foi aplaudido por toda a crítica.
Léa Garcia: É, foi muito prazeroso fazer Filhas do Vento.
Mulheres: O filme reuniu um elenco imbatível, você, Ruth, Maria Ceiça, Elisa Lucinda...
Léa Garcia: As meninas, (Maria) Ceiça, Danielle (Ornelas), Taís (Araújo), Thalma (de Freitas). Milton Gonçalves, Rocco (Pitanga), Zózimo Bulbul, meu querido Zózimo, meu irmãozão amado, então foi muito bom. E o Joel, que é um diretor maravilhoso, excelente, e que nos deu essa chance de um diretor negro estar rodando um filme de 35 mm que ganha, que premiou tanta gente.
Mulheres: Ele já vinha com aquele trabalho tão bonito, A Negação do Brasil, o documentário, a participação dos atores negros nas novelas, e se coroou agora com Filhas do Vento. Teve aquela polêmica em Gramado com o Rubens (Ewald Filho) e que depois acabaram resolvendo as questões. Você que está dentro, qual a importância de um filme como esse, já que nós falamos sobre a participação do artista negro desde o TEN até hoje.
Léa Garcia: Filhas do Vento foi um filme que, desde o início, quando o roteiro chegou até nossas mãos, que nós torcíamos muito para que acontecesse bem. Porque ele era favorável aos nossos anseios, ele vinha realmente satisfazer os nossos anseios, de um elenco composto a maioria por atores negros e com um diretor negro, vários elementos dentro da equipe negros também. Então esse filme veio realmente justificar, favorecer e mostrar que nós estamos certos, que a partir do momento em que nós temos um diretor e um elenco negro e tivermos um dia a produção, nós estaremos muito bem, porque nós estaremos fazendo, representando sem nenhuma visão eurocentrista.
A nossa realidade, será a nossa verdade que estará à tona porque temos a mão de um homem que sabe o que é isso, ele é um homem do interior, a mãe dele é mineira, a família dele é mineira, e é negro. Ele sabe como cada uma daquelas mulheres iriam se comportar. Então aí vem um cinema verdade. Ele veio realmente mostrar que nossos anseios estão certos, nós temos que nos preocupar é com os espaços para que possamos ser reconhecidos algum dia.
Mulheres: No teatro você tem também uma carreira extensa. Está agora em “As Pequenas Raposas”.
Léa Garcia: Terminamos no Rio e vamos no dia 3 de janeiro para Brasília. Depois voltamos a Niterói, não sei se vamos a São Paulo, vamos ver.
Mulheres: Tem projeto para o cinema? Eu li sobre um projeto que você falou que se chama “Minuano”...
Léa Garcia: Eu estive falando com o Eliobe, diretor. Nós temos esse projeto já há uns três ou quatro anos, mas há o problema da verba. Eu fico como medo, porque as pessoas estão envelhecendo, Zózimo ( Bulbul) já está meio doentinho. Eu vou ter que enfrentar o extremo gaúcho com um vento terrível, eu sou a personagem principal do filme. Eu fico com muita pena do atraso e espero que eu possa fazê-lo.
Mulheres: Ele então ainda está nesse processo, está se conversando sobre ele?
Léa Garcia: Está na captação de recursos.
Mulheres: Durante a carreira do cinema brasileiro tem alguma atriz que você destacaria, que você gosta muito, seja da época dos primeiros filmes ou atualmente? Tem alguma atriz que você gosta, admira?
Léa Garcia: Eu gosto muito de algumas atrizes negras. Eu vou citar, eu gosto muito dos trabalhos da Neusa Borges, da Ruth de Souza, da jovem Taís Araújo, da Thalma de Freitas. As outras, as que não são negras, eu não preciso citá-las porque elas sempre são muito citadas.
Mulheres: Alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
Léa Garcia: Tem uma atriz que me apoiou muito em um momento muito difícil da minha vida, e que se chama Bibi Ferreira, quando eu fiz “Piaf” com ela. Essa criatura talvez, se fosse uma outra pessoa, não aceitaria as dificuldades que tive durante os primeiros seis meses para fazer aquele personagem. E a Bibi me segurou e isso eu tenho guardado em mim durante muito tempo, para o resto da minha vida.
Mulheres: Muitíssimo obrigado, foi um prazer enorme falar com você.
Léa Garcia: Eu também. Ah, tenho três filhos, três netos, dois bisnetos.
Mulheres: família grande, né?
Léa Garcia: Médio, né?
Mulheres: Mas já faz um barulhinho.
Léa Garcia: (risos). Obrigada, tudo de bom para você.
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