Ano 20

Andrea Ormond

Estranho Encontro. Este é o endereço onde acontece, atualmente, o mais interessante olhar sobre a cinematografia brasileira. Editado pela carioca Andréa Ormond, este blog é obrigatório para cinéfilos e pesquisadores do cinema brasileiro. Aliás, identificar Andréa Ormond apenas como crítica é um reducionismo, pois em seu blog, ela não apenas analisa nossa filmografia, ela resgata filmes, além dos ocasionais artigos e entrevistas com personalidades fundamentais do cinema nacional, mas que não estão sob as luzes da mídia. Tudo isso faz de Andréa Ormond uma pesquisadora, e como todo autêntico pesquisador, seja os veteranos Antônio Leão e Maria do Rosário Caetano ou jovens como Matheus Trunk, é apaixonante e generosa.

Andréa Ormond é graduada em letras e finaliza o curso de Direito. É também escritora, publicou, com repercussão, o livro Longa carta para mila. Como o próprio nome do blog indica, tem paixão pelo cinema de Walter Hugo Khouri – sentimento compartilhado por esse editor. E dá a medida certa para o cinema dele: “São filmes que elevaram o cinema brasileiro a um patamar de expressão poucas vezes alcançado, na medida em que ele também investigava um mundo supra-cinematográfico, um caldo cultural que incluía artes plásticas, filosofia, psicanálise, literatura. Nada nos filmes do Khouri é por acaso, por isso me espanto ao ver que ele não é comentado com a freqüência necessária”. Tem paixão também pelo cinema paulista, não à toa participou da obrigatória Revista Zingu!, editada por Matheus Trunk e especializada nesse cinema. Sua clareza sobre a complexidade do cinema brasileiro conquista de imediato: “Fui percebendo que muito do que se fala sobre o cinema nacional é contado de forma cindida, sem se ter a percepção do todo. Nós não somos apenas mercadores do sexo de um lado e intelectuais herméticos de outro. Somos muito mais, diversos e ilimitados”.

Desde janeiro que o Mulheres tinha entrado em contato com Andréa Ormond para esta entrevista. Mas daí veio a mudança de design e o longo tempo de “conserto” do site, pois muitos links quase desapareceram – ainda hoje vou reencontrando um e outro. Finalmente, conseguimos realizar este bate-papo. Andréa estava em férias, mas, generosamente, fomos conversando em uns tantos emails. Aqui, ela fala de sua paixão pelo cinema nacional, fala de cineastas e filmes, comenta sobre seu artigo inteligentíssimo sobre cinema popular e pornochanchada, e nos brinda com reflexões para um tipo de cinema muitas vezes renegado pela crítica, dando sequência a um tipo de recorte que sempre foi feito por luminares como Rubem Biáfora e Jairo Ferreira.



Mulheres do Cinema Brasileiro: Me fale sobre a sua formação - é advogada e escritora, não é isso?

Andréa Ormond: Sou formada em Letras pela PUC-Rio, e concluo este ano minha graduação em Direito, pela mesma universidade. Desde pequena sempre tive uma queda natural por ler e escrever, mas sem aquela coisa chata, pedante, do intelectual que se isola do mundo, no alto do Himalaia, sem qualquer contato com a realidade. É por isso que, quando paro para pensar sobre a minha formação, acho que ela foi e está sendo uma mistura de livros, filmes, viagens, amizades e aventuras, que explicam o fato de eu batalhar num ambiente formal como o do Direito e ao mesmo tempo também gostar de um ambiente mais lúdico, como é o das artes em geral. 

Mulheres: Você nasceu onde e quando?

Andréa Ormond: No Rio de Janeiro, em 1977.

Mulheres: De onde e de que momento vem a sua relação com o cinema brasileiro?

Andréa Ormond: Olha, como toda brasileira, cresci ouvindo horrores do cinema nacional. “Muito sexo, muito comercialismo, muita vontade de ganhar dinheiro a qualquer custo, explorando a tendência natural dos latinos de se interessarem pelos assuntos de cama e mesa.” E é claro que na cabeça de uma criança ou de uma adolescente (ou mesmo de um adulto, vamos ser sinceros) tudo o que é proibido é mais atraente, instiga a curiosidade de sabermos como é, o que é, do que se trata (risos). Além disso, a TV aberta sempre passava filmes nacionais, em horários pouco convidativos, mas que todo mundo achava o máximo ver e comentar no dia seguinte, na escola. Mas o que me marcou profundamente, e é a base da minha descoberta pelo que amo no cinema nacional, foram as seções de nacionais das locadoras de vhs. Ali se abriu um mundo novo para mim. Tinha de tudo: os standards da intelligentsia brasileira, filmes pops dos anos 80, Atlântida, Vera Cruz e sobretudo Walter Hugo Khouri. Fui percebendo que muito do que se fala sobre o cinema nacional é contado de forma cindida, sem se ter a percepção do todo. Nós não somos apenas mercadores do sexo de um lado e intelectuais herméticos de outro. Somos muito mais, diversos e ilimitados. Com o advento do Canal Brasil, como contei em um dos meus textos no Estranho Encontro, esta compreensão ficou ainda maior, pois só aí tive acesso a filmes que nem mesmo em mostras ou salas de cinema especializadas podia ver. 

Mulheres: Você acha que o público mudou em relação à forma de apreciação e de entendimento do cinema brasileiro?

Andréa Ormond: Acho que a visão que o público tem do cinema brasileiro mudou, talvez tenha se tornado um pouco mais tolerante. Mas ainda há certo divórcio filme x público, e acredito que seja necessário todo um movimento cultural forte para mudar isso. Não é coisa fácil, que vá se fazer do dia para noite. Por outro lado, hoje em dia o cinema brasileiro antigo pode ser revisto e revalorizado, para quem sabe influenciar uma nova geração de cineastas. Ainda falta alguém olhar para trás e se perguntar, “o que era bom?”, e daí construir algo legitimamente brasileiro e realmente novo. 

Mulheres: Você se lembra qual foi o primeiro filme brasileiro que assistiu?

Andréa Ormond: Essa é difícil de lembrar… Deixa ver… Bom, não sei se foi o primeiro filme brasileiro que eu vi, mas é provável que tenha sido dos Trapalhões, que aliás, introduziram grande parte das pessoas da minha geração no público do cinema nacional. 

Mulheres: Levando-se em conta todas as diferenças dos tempos entre um e outro, como você vê, se é possível fazer um retrospecto neste sentido, três cinemas de grande público: Mazzaropi, Trapalhões e Xuxa?

Andréa Ormond: São três momentos do cinema popular que mostram o quanto existe público para o cinema brasileiro. Na minha opinião, o Mazzaropi era um gênio da linguagem do povo. Já os Trapalhões eram ótimos comediantes, que marcaram muito um período específico dos anos 70 e 80 no país. A Xuxa foi um fenômeno de massas, aproveitado também no cinema, e não creio que haja algo além disso para ser dito sobre sua performance cinematográfica. 

Mulheres: Como se deu sua paixão por Walter Hugo Khouri? O que você gosta mais e o que você gosta menos no cinema dele? Ou gosta de tudo? 

Andréa Ormond: A paixão pelo cinema do Khouri veio nessa exploração das velhas locadoras de filmes brasileiros. O que mais gosto nele é a firmeza dos seus propósitos. Khouri sabia exatamente o que queria, tinha um ideal de cinema e o praticava sem ceder às pressões. E todos contam que eram muitas, vinham de todos os lados. Isso não é pouco para um artista de um país pobre, em que as chances de se expressar são bastantes reduzidas. Infelizmente, nos últimos filmes Khouri parecia um pouco cansado, e não produziu coisas tão boas quanto as dos anos 60, 70 e 80. 

Mulheres: Dá para você citar alguns títulos desses dois momentos do Khouri?

Andréa Ormond: Dos grandes filmes do Khouri, dá para destacar além dos sempre citados Noite vazia, Eros, Corpo ardente, As amorosas, etc., quase todas as suas produções dos anos 70. O último êxtase é uma obra-prima irretocável, e mais Palácio dos anjos, As deusas, O anjo da noite. São filmes que elevaram o cinema brasileiro a um patamar de expressão poucas vezes alcançado, na medida em que ele também investigava um mundo supra-cinematográfico, um caldo cultural que incluía artes plásticas, filosofia, psicanálise, literatura. Nada nos filmes do Khouri é por acaso, por isso me espanto ao ver que ele não é comentado com a freqüência necessária. Nos anos 90, Forever, As feras e Paixão perdida são apenas razoáveis, não têm o mesmo brilho de antes. 

Mulheres: O Khouri filmou muitas das mais belas e importantes atrizes brasileiras. Quais atrizes você lamenta não ter sido filmadas por Khouri e, caso ele estivesse vivo, quais imaginaria que ele estaria filmando?

Andréa Ormond: Das atrizes do seu tempo, fico imaginando o que poderiam ter sido filmes com Leila Diniz e Maria Della Costa, por exemplo. Apesar de bem diferentes, são divas que renderiam bastante nas mãos de Khouri. Das atrizes atuais, Maria Luiza Mendonça é o primeiro nome que me vem à cabeça agora. 

Mulheres: Quero te propor alguns nomes de atrizes filmadas por Khouri para você comentar. É um verdadeiro abecedário, mas não resisto em te pedir isso (pode ser em uma, duas ou três linhas, e pode escolher, não precisa ser todas, isso é abuso meu). 

(dos nomes sugeridos, Andréa escolheu os abaixos):

Lilian Lemmertz 
Minha atriz preferida no cinema brasileiro. Belíssima, de uma fotogenia assombrosa. Em um close a Lilian conseguia demonstrar a essência da personagem e a do filme em si, tal a forma com que o rosto, a expressão e a inteligência da interpretação ficam grudadas na memória do espectador. E pensar que o Khouri a descobriu em uma viagem de elevador (risos), e a convidou para Noite vazia, papel que ela própria recusou por não se achar pronta, aparecendo apenas no O corpo ardente

Adriana Prieto
A Adriana Prieto personifica aquela lenda clássica de os heróis morrerem jovens. Acho que essa é a característica que nós pensamos logo de cara quando lembramos dela. Mas existem dois dados interessantes e que poucos lembram. A amizade dela com o irmão, Carlos, maquiador e ator bissexto, que aparece inclusive no Rainha diaba. O Carlos Prieto estudava os traços, a postura e a persona da Adriana. Outro aspecto interessante é que a Adriana, apesar de ter nascido na Argentina, foi criada no subúrbio do Rio, longe do glamour cinematográfico da Zona Sul. 

Sandra Bréa
Sempre associo a Sandra Bréa ao final dos anos 70. A Sandra vedete, explosiva, e que como todos sabem acabou comprometendo grande parte das suas possibilidades pela postura louquérrima fora das câmeras. Além disso, é curioso ver que dois dos seus trabalhos mais expressivos no cinema, o República dos assassinos, do Miguel Faria Jr., e A herança dos devassos, do Alfredo Sternheim, têm um tom introspectivo, atormentado, que abrem a possibilidade para a gente entender a performance da atriz sob outros ângulos. 

Mulheres: A Lola Brah está no filme que dá nome ao seu blog e é uma atriz que gosto muito. Mas acho que ela não tem o reconhecimento merecido em relação à importância que teve no cinema brasileiro. Você concorda ou não? Dá para você comentar sobre ela?

Andréa Ormond: A Lola Brah teve uma trajetória muito interessante, não só profissional, mas pessoal também. Refugiada da Rússia, ela atuou, por exemplo, no “Ravina” do Biáfora, no Estranho encontro e no Fronteiras do inferno, estes dois do Khouri. E como acontece muito aqui no Brasil, na geléia geral brasileira, como diria o Gilberto Gil, ela foi parar aonde? No Bandido da luz vermelha! (risos) Veja só, como é sempre bom mantermos aquele alerta sobre o qual a gente falava agora há pouco: as pessoas não podem entender um fenômeno artístico e cultural, como o cinema, de uma forma cindida, estigmatizada. Uma atriz da Vera Cruz trabalhando com o Sganzerla e depois com o Pedro Carlos Rovái, no Ainda agarro esta vizinha, naquela loucura toda, ao lado da Adriana Prieto, do Hugo Bidet, do Fregolente. A Lola Brah personifica um desses “causos” do cinema brasileiro que merecem e precisam ser revistos e revalorizados. 

Mulheres: Como nasceu o blog Estranho Encontro?

Andrea Ormond: Eu tinha o costume de escrever críticas, pensando em um dia publicá-las em livro. Ainda faço isso em relação a filmes latino-americanos de que gosto muito, talvez um dia publique algo nesse sentido. Mas em relação aos filmes brasileiros, ali por 2005, descobri o mundo dos blogs de cinema, que era menor do que hoje, mas já estava bem atuante. Foi então que concluí que era a forma mais fácil de difundir idéias sobre cinema ou sobre qualquer assunto, com ampla liberdade e a custo zero, e venho utilizando-o desde então. 

Mulheres: O subtítulo do blog diz “cinema brasileiro pela ótica feminina”. O que 
quer dizer “ótica feminina”? Você acredita que há um “olhar feminino” no 
cinema brasileiro? 

Andréa Ormond: O subtítulo nasceu na hora em que estava construindo o blog. A crítica de cinema no Brasil, feita por mulheres, é muito restrita. Sobre cinema brasileiro então, é raríssima. Eu quis chamar atenção justamente para isso, sobre ser um trabalho crítico feito por uma mulher, falando sem preconceitos sobre todos os aspectos do cinema brasileiro. Agora, sobre existir um olhar feminino no cinema brasileiro, que é uma questão completamente diferente, acho que nunca houve um movimento, crítico ou fílmico, que canalizasse o debate para isso. Até mesmo porque homens ou mulheres não podem se isolar em ilhas, e se pudessem, creio eu, o mundo ficaria muito chato (risos).

Mulheres: Sim, são questões diferentes, mas emendei uma na outra porque a segunda é uma questão que me interessa muito. Já vi algumas mulheres falando sobre esse possível olhar feminino no cinema, algo que não compreendo ainda muito bem. Nas suas críticas sobre tantos filmes no Estranho Encontro você chegou a perceber alguma diferença quando o filme foi dirigido por uma mulher?

Andréa Ormond: Não consigo perceber isso. Acho que as autoras e os autores possuem universos próprios, trabalham com tendências e obsessões que lhes são particulares. Claro que também existem filmes sem qualquer característica autoral, realizados como produtos para serem colocados no mercado. Então, as características que chamam a minha atenção para determinado filme não tem a ver com o fato de ele ser feito por mulheres ou homens, acabo não vendo isso como uma determinante. 

Mulheres: Você escreveu um artigo interessante distinguindo cinema popular e 
pornochanchada. Você pode falar um pouco sobre isso aqui no Mulheres?

Andréa Ormond: Como eu disse no artigo, me parece contraproducente que filmes policiais, dramas e comédias de costumes sem qualquer conteúdo erótico sejam ainda chamados de “pornochanchadas”, apenas porque eram feitos naquele mesmo esquema de produção da Boca do Lixo e do cinema independente carioca. O cinema policial brasileiro é riquíssimo, um gênero único, e merece ser chamado por seu nome próprio. Dizer que Khouri fez pornochanchadas também é absurdo, uma injustiça tremenda. Isso não desmerece as verdadeiras pornochanchadas, pelo contrário, as difere e valoriza enquanto gênero singular. Esta diferenciação sempre me pareceu importante, para que o cinema brasileiro possa ser revisto sem um julgamento apressado e parcial. Ele é muito maior e tem muito mais diversidade do que uma divisão tola e maniqueísta entre engajados e pornógrafos. 

Mulheres: Dá para você citar alguns filmes policiais e pornochanchadas que gosta?

Andréa Ormond: Nos policiais, Eu matei Lúcio Flávio, com o Jece Valadão; O outro lado do crime, com o apresentador Gil Gomes; Rainha diaba; República dos assassinos, Amor bandido; todos são autênticos cult-movies. Dá pra citar mais uns dez, que adoro ver e rever. Já no quesito pornochanchada, David Cardoso e Carlo Mossy são as citações óbvias. Giselle, particularmente, é a minha pornochanchada preferida e a de nove entre dez pessoas que gostam do assunto. 

Mulheres: Qual a importância da pornochanchada para o cinema brasileiro na sua opinião? 

Andréa Ormond: A importância maior da autêntica pornochanchada, aquela em que os filmes giram em torno da discussão da sexualidade, foi a de viabilizar um cinema brasileiro praticamente auto-sustentável do fim da década de 60, até meados da década de 80. Foi a de refletir, de uma forma bem brasileira e esculhambativa, os questionamentos e quebras de paradigmas que o mundo ocidental estava atravessando nos anos 60 e 70. A pornochanchada me parece ter, além da influência óbvia do cinema italiano, certas raízes no movimento tropicalista. 

Mulheres: Quais são para você os maiores talentos da pornochanchada? E quais os melhores filmes? 

Andréa Ormond: Como disse, Carlo Mossy e David Cardoso. Se alguém quer conhecer sobre pornochanchada, deve ver os filmes desses dois atores-produtores-diretores, além, claro, das comédias cariocas urbanas, como as dos irmãos Faria.

Mulheres: Gostaria que você falasse sobre o livro Longa Carta Para Mila.

Andréa Ormond: Foi um livro que escrevi sem grandes cobranças ou compromissos, apenas para contar uma história de amor entre duas meninas em idade universitária, uma carioca e uma paulistana. É o tipo de narrativa urbana que conheço bem, o mundo em que eu sempre vivi descrito em cento e poucas páginas. É bem diferente do meu trabalho como crítica, mas me deu muita satisfação fazê-lo e poder alcançar um público diferente do que se interessa por cinema brasileiro. 

Mulheres: A repercussão do livro foi muito boa, não é? Pensa em escrever outro ou já está escrevendo outro? - além, claro, do possível livro de críticas que torço para ser concretizado.

Andréa Ormond: Já estou escrevendo outro, mas vai demorar um pouco. Sobre o livro de críticas, penso em escrever um sobre cinema latino-americano, que é uma das minhas grandes paixões. Em relação ao cinema brasileiro, me sinto feliz escrevendo no Estranho Encontro (risos).

Mulheres: Quais são os seus autores preferidos?

Andréa Ormond: Dostoieviski e os russos em geral. Na literatura brasileira, gosto muito de João Gilberto Noll, Nelson Rodrigues, Marcia Denser, Hilda Hilst. Mas são vários, sem ordem de preferência.

Mulheres: Quais são os outros cineastas brasileiros que te interessam? Tem alguns filmes preferidos?

Andréa Ormond: Para fazer um trabalho crítico como o Estranho Encontro, acho que todo o cinema brasileiro acaba me interessando, sem distinção. Mas sou particularmente entusiasta da produção paulista, principalmente do final dos anos 60 e da década de 70. O cinema brasileiro feito em São Paulo é um mundo à parte, bastante rico e praticamente desconhecido da maioria das pessoas.

Mulheres: Por isso também sua participação nessa notável revista eletrônica que é a Zingu!?

Andréa Ormond: O Matheus Trunk, que edita a revista, costuma brincar dizendo que eu fui a “mãe da Zingu!” (risos). Também contribuo na Freakium, outra revista notável sobre cultura pop. As duas são iniciativas que aproveitam a facilidade de difusão da Internet para agregarem pessoas interessantes escrevendo sobre aquilo de que gostam. No caso da Zingu!, acho que ela é mais uma prova de que existe um grande interesse pelo cinema brasileiro “não-oficial”, dentro do qual o cinema feito em São Paulo foi um exemplo. No fundo, as pessoas começam a perceber que o cinema brasileiro é cultura pop de qualidade.

Mulheres: O que você não gosta no cinema brasileiro?

Andréa Ormond: Acho o cinema brasileiro antes da chamada Retomada tão bom quanto podia ser o cinema de um país subdesenvolvido e fechado sobre si mesmo. Era muito diverso e permitia uma ampla variedade de expressões. De 95 para cá, os filmes parecem sofrer de uma repetição temática que entedia um pouco, embora tenham aparecido alguns diretores que fazem um cinema na contramão desta tendência uniformizante, como o Beto Brant e o Cláudio Assis. O que não gosto no cinema brasileiro, pelo menos no atual, é seu excessivo bom mocismo e o excessivo didatismo no modo de filmar. Parece às vezes uma coisa para não correr o mínimo risco de erro. Antigamente, os cineastas brasileiros compensavam a precariedade técnica com ousadia e criatividade. Hoje isso desapareceu e se a parte técnica melhorou, a maioria dos filmes vem se tornando menos interessantes, com algumas notáveis exceções.

Mulheres: Dá para você citar alguns desses filmes atuais em que observa esse certo “comodismo”?

Andréa Ormond: Dentre os que assisti neste semestre, acho que aquele Proibido proibir, do Jorge Duran, foi o que mais me entediou. Não há nada nele que seja inovador, interessante ou diferente: a maneira de filmar, a montagem, o roteiro. É tudo absolutamente previsível. Por outro lado, uma semana antes tinha assistido ao Cheiro do ralo, que é genial.

Mulheres: Pensadores do cinema brasileiro, como o crítico Inácio Araújo e o cineasta Carlos Reichenbach, destacam a internet como um espaço onde vem se fazendo uma crítica cinematográfica vigorosa. Como você, que é fã de Rubem Biáfora e Paulo Emílio, e que também tem um espaço cultuado como o Estranho Encontro analisa isso? 

Andréa Ormond: Como disse, escolhi o formato blog exatamente porque me pareceu o mais dinâmico para a crítica cinematográfica e para as idéias em geral. Existem blogs fabulosos de cinema, existem revistas de cinema feitas no formato de blog, isso sem falar no mundo fora dos blogs, dos sites de referência na web, como o Mulheres. Ou seja, grande quantidade de informação sobre cinema circula gratuitamente para o leitor brasileiro. Isso é uma conquista de todos nós e só tende a crescer. Tenho certeza de que o Biáfora se estivesse vivo e atuante, teria seu próprio blog (risos). 

Mulheres: Você poderia falar um pouco sobre o Biáfora e o Paulo Emílio? Paulo Emílio é muito amado, já o Biáfora tem muitos opositores.

Andréa Ormond: Sobre o Paulo Emilio, acho que era um homem da renascença, inclusive teria sido um dos maiores escritores brasileiros se a vida tivesse lhe dado mais tempo. Já o Biáfora tinha muitos opositores porque atacava justamente o cinema oficial, e respeitava o cinema independente. Ou seja, era um homem na contramão do seu tempo, convicto de suas opiniões. Para atacá-lo, muita gente diz que escrevia mal. Mas percebam que no seu estilo, conciso e prolixo ao mesmo tempo, o Biáfora dizia mais verdades por metro quadrado do que qualquer outro. Concordo com quase tudo o que ele escreveu. Mas minha maior influência no estilo de escrever críticas vem na verdade do Antônio Moniz Vianna, que foi para mim a leitura fundamental, o grande professor. Apesar de ser médico, alimentou gerações e gerações de leitores e seguidores, com sua formação ampla, erudita. Foi sem dúvida o maior crítico brasileiro e um dos maiores do mundo, o que não quer dizer que eu concorde com sua visão cinematográfica, que acho extremamente rígida. Neste ponto, sou muito mais cúmplice de Biáfora (risos), um espectador tolerante. Além dos três, gostaria de citar também Salvyano Cavalcanti de Paiva, José Lino Grünewald e Ely Azeredo como nomes importantes na minha formação. Li todos na coleção de periódicos da Biblioteca Nacional, no Rio.

Mulheres: Que considerações você pode fazer sobre a crescente participação das mulheres por trás das câmeras do cinema brasileiro?

Andréa Ormond: O mundo está mudando, as mulheres já são maioria nas universidades e se um dia forem parte significativa nas equipes de filmagem, já será um grande avanço. Mulheres e homens devem trabalhar em igualdade de condições, ter a mesma chance de expressão artística e intelectual. O cinema brasileiro e o país como um todo só tem a ganhar com isso.

Mulheres: Qual foi o último filme brasileiro que assistiu? 

Andréa Ormond: Carreiras do Domingos de Oliveira. Adorei e recomendo.

Mulheres: Você já disse que o Khouri é o maior cineasta brasileiro. Quem são os outros dois, para ficarmos em uma trinca de ouro? Ou não há páreos para ele?

Andréa Ormond: Eu tenho um certo problema com listas, porque sempre esqueço de um nome que depois lembro que eu nunca poderia ter esquecido (risos). Por isso gostaria de citar mais de dois: o Lima Barreto, pela força arquetípica e pela linguagem de O cangaceiro e Santuário; o Humberto Mauro, pelo aspecto seminal da obra; Nelson Pereira dos Santos e Carlos Reichenbach, pela coerência que mantêm através das décadas. 

Mulheres: Sempre convido minhas entrevistadas para homenagear uma mulher do cinema brasileiro de qualquer época e área. Quem você quer homenagear?

Andréa Ormond: Gostaria de homenagear a Lilian Lemmertz, minha atriz preferida, como eu disse agora há pouco. Tenho profundo respeito por sua interpretação, cheia de significados apesar de calmíssima na superfície, algo bastante difícil de ser alcançado no cinema, sem soar artificial aos olhos do público. Fico feliz de perceber que apesar de ter ido embora tão jovem, ela conquistou um lugar todo próprio em nossa cinematografia.

Mulheres: Muito obrigado pela entrevista.


Entrevista realizada em julho de 2007

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Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.