Ano 20

Ana Regis

Ana Regis nasceu em 14 de fevereiro de 1970, em Belo Horizonte. A graduação foi em Letras, mas mesmo antes da Faculdade, foi como atriz que começou a carreira artística: “O curso de Letras veio porque minha família queria que eu fizesse um curso superior, e aqui em Belo Horizonte não tinha um curso superior de artes cênicas, só tinha em Brasília, Salvador e Unicamp, eu acho. Isso foi em 1988, e aí o curso de Letras me pareceu mais próximo do teatro do que qualquer outro. Até pensei em Educação Física e tudo, mas não era isso, achei que as Letras me complementariam mais em relação ao teatro. Eu comecei no teatro antes, no Tangran, que era uma escola que tinha aqui em Belo Horizonte,  era do Paulinho Polika, ele foi meu primeiro professor. Era uma escola de desenvolvimento de criatividade.”

A carreira como atriz se intensifica, ela participa de oficinas, integra a Companhia Cínica, atua em espetáculos, e a experiência acaba desaguando também na dramaturgia. E foi ao participar da Oficina de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, espaço cultural do Grupo Galpão, que veio o convite para o audiovisual: “Na época que eu fazia a Oficina de Dramaturgia, tinha o Marcelo Braga Freitas, que era um dos sócios da Envídeo, e ele sabia que eu dava aula pra criança, aula de teatro, eu dou aula há muitos anos. Ele me chamou pra fazer uma direção de teste para o elenco de um comercial, que era com crianças.”

Uma nova frente de trabalho se abre para Ana Regis, e ela se torna respeitada produtora de elenco para cinema e publicidade em Belo Horizonte. Trabalha em muitos comerciais e, para o cinema, trabalha com elenco para os longas Vida de Menina (2003), de Helena Solberg, Depois daquele baile (2004), de Roberto Bomtempo, Mutum (2005), de Sandra Kogut, 5 frações de uma quase história (2006), de Cristiano Abud, Cris Azzi, Tales Bahia, Lucas Gontijo, Armando Mendz e Guilherme Fiúza, Fronteira (2006), de Rafael Conde,  A hora e a vez de Augusto Matrága (2009), de Vinícius Coimbra, O menino no espelho (2011), de Guilherme Fiúza, e O homem na multidão (2012), de Cao Guimarães e Marcelo Gomes. Depois, acaba abandonando a função e privilegiando o trabalho de atriz e de professora de teatro: “Não consigo conciliar com meu trabalho de atriz. Quando eu fazia, os vários filmes que eu fiz, eu podia ter feito testes e tal, mas eu não tinha essa coragem, acho que era uma questão ética mesmo, de eu falar do meu próprio trabalho, não constranger o diretor, dele falar ‘olha, não, não é você’. Porque também é chato para o diretor falar na cara, para isso tem o produtor de elenco, ele que vai dar a má notícia para a pessoa, entendeu?”.

Ana Regis conversou com o site Mulheres do Cinema Brasileiro em 2012 no Galpão Cine Horto, espaço importante em sua trajetória. Na entrevista ela fala sobre o início de sua trajetória, sua formação, o trabalho no teatro, no cinema, as especificidades de uma produtora de elenco, e outros assuntos.


Mulheres do Cinema Brasileiro: Para começar, data de nascimento, naturalidade e formação. 

Ana Regis: Eu nasci em 14 de fevereiro de 1970, sou formada em Letras, língua portuguesa, pela UFMG.

MCB: Como sua formação em letras deságua nas artes cênicas? Como começou a trajetória de atriz?

AR: Na verdade, a trajetória começou antes, antes das Letras. O curso de Letras veio porque minha família queria que eu fizesse um curso superior, e aqui em Belo Horizonte não tinha um curso superior de artes cênicas, só tinha em Brasília, Salvador e Unicamp, eu acho. Isso foi em 1988, e aí o curso de Letras me pareceu mais próximo do teatro do que qualquer outro. Até pensei em Educação Física e tudo, mas não era isso, achei que as Letras me complementariam mais em relação ao teatro. Eu comecei no teatro antes, no Tangran, que era uma escola que tinha aqui em Belo Horizonte,  era do Paulinho Polika, ele foi meu primeiro professor. Era uma escola de desenvolvimento de criatividade, que trabalhava com essa coisa do improviso, mas não esse improviso do Match (Grupo Match de Improvisação), da técnica de impro, era uma coisa mais formal. Mas era basicamente um improviso, a gente criava os espetáculos a partir de improvisos, e foi lá que se deu o embrião do Armatrux, foi com a minha turma de teatro, que era a Paula Manata, o palhaço Popó, enfim, era o pessoal do Armatrux, que hoje já tem outra formação, acho que da formação original está só a Paula Manata. Foi o Paulinho (Polika) que dirigiu o primeiro espetáculo. Depois, dentro da faculdade, tinha um grupo de teatro da Letras, que na época era dirigido pelo Wilsinho Oliveira. Teve uma audição e logo em seguida ele saiu, quem assumiu a direção foi o Vavá Sena, que é do grupo Real Fantasia. Eu fiquei no grupo uns três anos. No primeiro ano eu fiz monitoria de lógica do pensamento científico, e depois eu fui ser bolsista do grupo de teatro, não podia ter duas bolsas. 

Lá dentro também tinha o Sunshine. O Sunshine foi um verdadeiro celeiro de artistas aqui de Belo Horizonte, eu participei primeiro como caloura, mas interpretando e não cantando, fazendo personagem, uma esquete. Eu ganhei, fui promovida à jurada. Eu estava me lembrando, o Cristiano Abud, que é roteirista aqui em Belo Horizonte, fez o roteiro do 5 frações de uma quase história, de vários curtas premiados, era da produção. O Armando Mendz, que dirigiu um dos episódios do 5 frações, que dirigiu um curta muito bacana com o Otávio Augusto, também era da produção. Tinha a Janes, Janaina Patrocínio, que é produtora de cinema. Então teve muita gente, o Elias Santos, que era o próprio Elias Sunshine. O Elias Sunshine começou com um trabalho de disciplina de RTVC, lá da Escola de Comunicação, e foi se desdobrando. O Elias virou radialista, fundador da Rádio UFMG, foi uma coisa que deu muitos frutos mesmo e foi bem bacana.

MCB: Uma das marcas da cena mineira, aqui em Belo Horizonte, particularmente, que é muito forte, é a questão do teatro de grupo. Você é uma das fundadoras da Companhia Cínica, não é isso?

AR: Isso.

MCB: Eu queria que você me contasse como isso aconteceu.

AR: Na época que eu fazia o Tangran, lá com o Paulinho Polika, eu conheci o pessoal do Armatrux. Na ocasião, a escola fechou e eles formaram o Armatrux. Eu mudei para Vitória, fiquei um ano morando lá, e quando voltei já fui para a Faculdade de Letras, mas continuei a relação com eles. A Paula (Manata) me deu toque de uma oficina que iria ter no Galpão com o pessoal do grupo e eram textos de Nelson Rodrigues, do A vida como ela é. Foi o primeiro contato que eu tive com essas crônicas, e até hoje sou apaixonada. Eu fiz essa oficina, eram uns 20 atores mais ou menos fazendo essa oficina, de um mês. Depois teve uma nova oficina nos mesmos moldes para outros 20 atores, e dessa segunda oficina saiu a Companhia Cínica. Mas eu não era da Companhia, eu me ofereci para entrar, eles me ligaram perguntando se eu tinha o telefone da Sinara, que era uma atriz que fez Palácio das Artes e hoje é uma grande amiga minha. Ela tinha um cabelão e eles precisavam de uma atriz com cabelão cacheado e tal. Aí eu dei o telefone e falei: “Vocês não estão precisando de uma atriz de cabelo curtinho?”. Aí eles falaram, “ah, pode vir”. E aí eu fui, eles estavam montando, na época, A intrusa, que é um texto do Maeterlinck , meio maldito porque narra a entrada da morte em uma casa. É lindo o texto, maravilhoso, foi uma montagem que deu um trabalho danado, a gente ensaiava 12 horas por dia, durante um período curto, uns três meses. Aí a gente fez três apresentações só e depois não fizemos mais, acho que é um texto maldito.

MCB: Isso foi quando e qual era essa formação da Companhia?

AR: Isso foi em 91, 92. Quando eu entrei era Bete Penido, Mariana Muniz, Nina Caetano e Júlio Maciel. Tinha mais dois atores, eu não vou lembrar mais os nomes porque um só fez A intrusa e foi embora, e o outro foi pra São Paulo e perdi o contato. Nós viramos a Companhia Cínica, nós quatro, depois a Bete saiu, saiu assim, como atriz, mas estava sempre com a gente, e entrou a Denise Barin, que é uma atriz do Rio. Nós montamos o Catavento, que é a primeira peça da Companhia Cínica que circulou, foi indicada a prêmios , era um espetáculo de rua, que foi um grande aprendizado. Eu fazia um clown e essa coisa do contato com a linguagem de clown. Depois a Bete volta efetivamente e dirige a gente no O amor de Don Perlimplin, que é um texto do Lorca. Então o Catavento estreou em 93, o Lorca estreou em 98, e depois em 99 a Mariana foi pra Espanha, Nina foi fazer mestrado e a Denise Barin saiu. O Lenine entrou substituindo no Catavento e fazendo o protagonista do Perlimplin. No início era uma codireção, depois a Bete assumiu a direção. São parceiros que se prolongaram em minha vida. O amor de Don Perlimplinfoi o primeiro trabalho que eu fiz com o Chico Magalhães, por exemplo, que é cenógrafo, e ele continuou. Depois, em vários outros trabalhos ele esteve comigo. Mas enfim, elas foram embora. O Júlio (Maciel) ia assumir o segundo Oficinão do Cine Horto, que seria sobre o descobrimento do Brasil, a gente ficou meio à deriva com a saída das meninas e decidimos acabar com o grupo. 
Foi muito engraçado, eu senti um alívio tão grande. Depois daquele dia que a gente estava conversando eu fiquei pensando, assim, do tanto que é bom você trabalhar em grupo, mas o tanto que é bom você ser uma atriz avulsa também, sabe?  Eu senti uma liberdade tão grande, de falar não pras coisas que eu não queria e escolher o que eu iria fazer, porque em um grupo, além de você e os outros componentes, tem uma entidade que é o próprio grupo. Então tem vez que você abre mão de algum coisa sua pelo grupo, alguma vontade, algum desejo seu. Por exemplo, eu nunca montei o Nelson Rodrigues porque não era desejo da Companhia Cínica, eu sempre quis fazer uma daquelas personagens ninfetinhas e tal, agora não dá mais, agora vou ter que fazer a jovem senhora do Nelson Rodrigues, as jovens senhoras dele, mas enfim.

MCB: Dá para fazer a Geni (de Toda nudez será castigada).

AR: Dá, dá para fazer a Geni. Mas enfim, aí eu fui para o Oficinão, fiz teste, foi aquela loucura porque o Júlio estava dirigindo e ele não podia participar da banca, já que eu, Nina e Lenine resolvemos fazer. A Nina resolveu fazer em função da coisa do processo colaborativo, que já era um anseio dela. E aí fizemos, foi uma experiência maravilhosa, com 20 atores, nunca tinha trabalhado com tanta gente, 20 atores oriundos das mais diversas linhas de trabalho, desde teatro de igreja, passando pelo teatro comercial e teatro de pesquisa, gente vindo da Dinamarca, que era a Silvana, tinha gente de tudo que era jeito, em pensamentos muitos diferentes. Foi muito bacana e foi o primeiro processo colaborativo que aconteceu em Belo Horizonte. Foi o primeiro ano da Oficina de Dramaturgia do Cine Horto com o Luiz Alberto de Abreu coordenando e a gente fazendo tudo concomitante. Foi muito desgastante o processo durante o ano todo, mas ao mesmo tempo muito rico, todo processo colaborativo que eu tenho notícias sempre me falam isso, eu acho que é uma tônica do processo.

MCB: É isso que eu ia te perguntar agora, como nasce aí a dramaturga?

AR: Então, aí, o que acontece, eu tinha acabado de fazer o Oficinão, estava avulsa como eu havia dito antes, e...

MCB: O resultado do Oficinão foi o Caixa postal 1500?

AR: Foi o Caixa postal, a gente trabalhou 1999 inteiro e estreamos em 2000. Era sobre o descobrimento do Brasil. Eu estava avulsa e me despertou muito que a gente... o processo foi muito em conjunto, então além dos dramaturgos assistirem à gente, a gente assistia aos seminários que o Abreu, quando vinha, trabalhava. Ele assistia à gente, depois a gente assistia a ele com os dramaturgos. E acabava que era tudo uma coisa só, ele é muito apaixonado pelo que faz. Então eu acho que eu me apaixonei pelo objeto de desejo dele, fiquei muito encantada, e era uma forma de me aproximar de um trabalho de atriz por um outro ângulo, foi uma das coisas que me moveu também. Comecei a participar da oficina, que acontecia uma vez por semana só, e a gente tinha que produzir em casa, o que culminou com o Por toda minha vida, que era um melodrama que o Eduardo Moreira ia dirigir. Ele propôs que a investigação fosse em cima do melodrama, o Abreu mais uma vez esteve presente, foi muito bacana, foi muito rico escrever. Eram oito cabeças, então foi bem legal o trabalho, de não autoria, de abrir mão das suas ideias pela ideia do outro, de novo um processo colaborativo, só que agora para um outro ângulo. Aí eu vi o tanto que eu fiz os dramaturgos do meu processo sofrerem, mudei de lado, né, mas foi muito legal, porque eu tinha esse outro olhar e eu entendia o que os atores estavam sentindo, sabe? Tem uma coisa desse ter experimentado, que foi importante. Depois eu fiz de novo mais um ano, aí eu escrevi junto com a Nina somente,  não foi um trabalho da oficina em si, a oficina estava começando o embrião do 3 por 4, que era um trabalho que tinha um diretor convidado, que era o marido da Marieta Severo, o Aderbal Freire filho veio como diretor, e o Abreu como dramaturgo.

Tinha um núcleo de diretores de pessoas que iam dirigir, tinha o núcleo de atores e o núcleo de dramaturgos, e aí formaram-se grupos, cada grupo com um diretor, um dramaturgo ou mais dramaturgos e os atores. Fizeram um projeto que foi muito bacana, só que eu não cheguei a terminar esse projeto porque no meio do processo o Júlio me convidou, eu e Nina. Na verdade, ele me convidou e eu falei que só ia se a Nina fosse, a Nina tinha acabado de ganhar neném, ela entrou como dramaturgista fazendo o levantamento de pesquisa e eu escrevendo o espetáculoCães de palha, e aí foi a escrita mais densa que eu tive. 

MCB: Você se lembra quando foi? 

AR: Foi em 2002, eu acho, e depois, em 2003, eu fui chamada pelo Ricardo Júnior, ele é um produtor e hoje é cineasta. Ele viu uma cena curta minha, que eu tinha escrito no Festival de Cenas Curtas, gostou do texto e indicou o meu trabalho de dramaturga pro Grupo Aleape, que estava montando um espetáculo de circo com o teatro, que veio a ser o Bicicleta branca, com direção do Chico Pelúcio e do Marcelo Bones. Eu entrei nesse trabalho já assinando sozinha e foi bem bacana. Depois disso eu fiz um espetáculo do Deu Palla, que foi o Hotel paraíso, e aí eu parei de escrever, parei de escrever pra teatro, eu não fiz mais nada. Eu tenho algumas coisas que eu escrevo pensando para eu fazer, que estão lá arquivadas, tem textos que eu comecei a escrever e eu devo voltar a mexer, mas nada assim de encomenda ou pensando em uma encenação, coisas assim, ideias que vão brotando. E tem a escrita do roteiro da Companhia Bárbara.

MCB: A gente ainda vai entrar nisso, mas antes eu queria te perguntar duas coisas: a relação sua com o Galpão é muito forte, não é? E com o Júlio Maciel também. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso. 

AR: A Companhia Cínica surgiu dentro de uma oficina do Galpão, e o Júlio, que é ator do Grupo Galpão, dirigia a Companhia Cínica. Ele levou toda a vivência dele do Galpão pra lá. Eu lembro que a gente foi no Festival de São José do Rio Preto, a gente foi com o Catavento, e aí eu lembro que tinha uns debates depois das peças, eu nem sei se continua assim. Eu lembro que um crítico chamou a gente de filhote do Galpão, a gente falou que a gente era mesmo, e aí virou um debate. Qual o problema disso, é influência direta mesmo, acho que não só pra Companhia Cínica, mas para vários outros grupos que vieram e que estavam também fazendo teatro de rua, como o Sonho & Drama, acho que um influenciava o outro. Depois virou essa potência e tal, mas na época não era isso tudo, tinha tido o Álbum de família, não, mentira, já tinha tido o Romeu e Julieta, e já tinha sido mostrado para o mundo, vamos dizer assim. Então tinha algumas coisas que eram muito fortes, mas eu acho que o mais forte de tudo, pensando na influência do Galpão que veio através do Júlio, é realmente o pensamento de teatro que eu tenho hoje, que vem da minha formação com o Júlio. Eu não fiz Artes Cênicas, eu não tenho nenhuma formação teórica em teatro, o que eu sei de teatro eu aprendi na Companhia Cínica. Porque olha só, foi de 92 a 2000, e a gente fez dois espetáculos, não vou contar A intrusa porque foi um período de três meses só. Foram sete anos e dois espetáculos, então a gente estudava muito.  A gente tinha uma rotina de trabalho que não era voltado pra um produto, era de investigação mesmo, tudo veio dali, todo o pensamento, o meu respeito pelo teatro vem dali. Então é diretamente do Galpão, porque o Júlio também foi formado pelo Galpão, então uma coisa foi passando pra outra. 

MCB: E aí vem o Rubros (Rubros: vestido, bandeira, batom), que é marco importante na sua carreira.

AR: Demais, demais, é uma retomada. Porque em 2001 eu engravidei da primeira vez, quando eu estava fazendo Cães de palha, e aí eu perdi meu primeiro bebê. Em 2002 eu engravidei novamente. O bebê estava com seis meses e eu estava fazendo o Bicicleta branca. A dramaturgia também foi uma forma de eu não me afastar nesse período de gravidez, porque como eu tinha perdido o bebê eu não podia fazer exercícios, o meu treinamento de teatro era muito pesado e eu não podia mais fazer, eu tinha que dar um tempo. A escrita era uma coisa mais leve, mais tranquila e eu podia fazer em casa, depois que o bebê nasceu também era mais fácil eu trabalhar com a escrita do que com os ensaios diários. Depois eu resolvi ter outro filho e aí eu fiquei esse período sem trabalhar,  foram quatro anos sem atuar. O Rubros veio de um desejo, desejo mesmo de precisar voltar para o palco. Eu fiz o primeiro projeto, mas a gente não foi aprovado, era com a direção da Yara de Novaes. Depois eu, Bete e Mariana fomos aprovadas em um fundo com um projeto em que a ideia era fazer um espetáculo sobre o feminino, se chamava Se chover meu cabelo enrola.  Mariana e a Bete tinham acabado de chegar da Europa, Mariana da Espanha e Bete de Londres. A Bete tinha feito a escola do Bullier e estava com essa coisa do clown muito forte, ela foi uma das exceções, ela foi convidada pelo Bullier pra voltar e fazer mais um módulo de clown, que é uma coisa rara, dizem que ele nem dirige palavras às pessoas. A gente tinha esse projeto aprovado, a ideia era que a gente usasse a técnica de impro pra criar o espetáculo e que a linguagem do clown estivesse presente no espetáculo.  Demorou pra sair o resultado da aprovação, nesse meio tempo a Mariana foi aprovada em um concurso pra professor na UFMG, a Bete mudou lá o horário de trabalho dela, enfim, foi dando um tanto de coisa que mudou a vida de todo mundo. Eu tinha esse projeto do Rubros, como não ia dar pra fazer o nosso, eu fiz esse outro e mandei uma carta pra Prefeitura readequando, propondo esse novo espetáculo, que também abordaria a questão do feminino, mas aí mudaria a proposta de montagem. 

Fiz tudo que eles pediram, eles aprovaram, e aí chamei a Rita (Clemente), na verdade, primeiro falei com a Adélia Nicolete, dramaturga do Rubros, ela tinha feito o perfil das personagens e feito o enredo, ela não tinha escrito o texto ainda. Aí eu chamei a Patrícia Reis, que também foi uma coincidência, eu nem sabia que ia chamar, eu estava no Diamond, no shopping, tinha anos que eu não via a Patrícia, ela foi minha contemporânea de faculdade. Patrícia foi namorada do meu marido, quase parecido com a história do Rubros, primeira namorada dele. Aí eu vi a Patrícia e falei “gente, é ela, encontrei”. Conversei, no dia seguinte mandei um e-mail com a proposta, ela topou. Ela já tinha trabalhado com a Rita no Lisistrata, montagem de formatura do Palácio, e aí a gente convidou a Rita. A Rita disse que gostava das duas atrizes, que adorava a dramaturga, e topou na hora. Aí a gente fez o trabalho, foi muito importante o trabalho com a Rita, porque eu vinha de uma direção com o Júlio e tinha sido, praticamente, a minha única direção. Eu tinha tido uma experiência com o Glicério, que é uma direção dos anos 80, paternalista, ele decidiu tudo e tal, e com a Rita não era assim, a gente tinha total autonomia. Não que com o Júlio a gente não propusesse, era muito criativo o trabalho, mas ele dava a última palavra. Com a Rita, no Rubros, eu era a produtora, eu contratava, eu definia as coisas, ela dava o ok artístico e eu na logística, na produção toda. Em relação à criação, ela deixava muito a gente com essa autonomia mesmo de criar, de propor, ela não ensaiava todos os dias, isso pra mim era inédito. A gente ensaiava todos os dias, ela ia três vezes, e quando ela chegava e não via um desenvolvimento, ela questionava: “preciso estar aqui pra coisa andar?”. Apanhei demais, sofri muito, muito. Quando você está no meio do processo é osso, né, é muito sofrido mesmo, mas depois, hoje, eu vejo o tanto que eu cresci como artista na mão da Rita. 

MCB: Como você vai, dessa longa trajetória do teatro para o audiovisual? Como acontece essa passagem? 

AR: Na época que eu fazia a Oficina de Dramaturgia, tinha o Marcelo Braga Freitas, que era um dos sócios da Envídeo, e ele sabia que eu dava aula pra criança, aula de teatro, eu dou aula há muitos anos. Ele me chamou pra fazer uma direção de teste para o elenco de um comercial, que era com crianças, eu lembro até hoje, era um comercial sobre a dengue. Eu tinha que dirigir esse teste com os meninos, era até pra uma prefeitura do interior, aí eu fui dirigir, foi ótimo fazer. Engraçado, porque não cola, se você olha a performance do candidato, você olha pra ele, ou se olhar no vídeo, é completamente diferente, porque o que funciona com você olhando pra ele não funciona com o vídeo, e vice-versa. Essa foi a primeira coisa que eu comecei a perceber entre atuação pra câmera e atuação pra plateia, a diferença, aí foi muito legal porque eu fui fazer edição. Eu já sabia quem eu queria que entrasse na edição, qual take eu queria que entrasse, e o pessoal adorou porque foi muito objetivo, muito rápido. Aí me chamaram de novo, eu fiz vários trabalhos como assistente da Nádia, que era produtora de elenco da Envídeo.  Teve esse diferencial, eu era assistente dela e eu chamava pros testes vários atores que eu conhecia. Até então as pessoas trabalhavam muito com modelos aqui em Belo Horizonte, a não ser os atores que todo mundo já conhecia, que muitas vezes fazia TV, tipo, como o Helvécio Guimarães, que era um cara que às vezes fazia TV, a Wilma Henriques não fazia teste, mas era muito pouco, geralmente eram modelos, pra publicidade era modelo.

Aí eu comecei a chamar atores, e um dia o André Carreira me chamou pra fazer um comercial, fazer um elenco de um comercial do Banco Mercantil pra O2, a produtora lá de São Paulo. Eu fiz, chamei os atores que eu conhecia, eu lembro que foi um teste vazio, assim, 20 atores pra dois papéis , ele ficou um pouco assustado, mas eu não, eu tinha certeza que estava bom. Quando a gente foi fazer esse trabalho, especificamente, eu tive que dirigir também nos que eu fazia com a Nádia. Geralmente, eu ficava também com a direção dos testes porque ela tinha milhões de coisas pra fazer, além de dirigir os testes. Geralmente, é um diretor, um assistente de direção que vem dirigir pra O2, e esse eu fiz, foi aprovado de cara, não teve problema nenhum. Aprovaram dois atores daqui, um teve que fazer outro teste, foi ótima a experiência. Fiz figuração também, foi a primeira vez que fiz figuração, eram oito figurantes. Aí beleza, estabeleceu-se que eu era a produtora de elenco em Belo Horizonte que trabalhava com atores, e começou a aparecer um trabalho atrás do outro. Isso vazou pra fora e eu fiquei conhecida como a produtora de Belo Horizonte, então quando vinham pessoas de fora elas me procuravam. Depois eu fui para o cinema através da Claudinha. 

Mas enfim, eu fui fazer um trabalho pra Rede Minas como atriz de um projeto pra Secretaria de Educação, que era um curso de formação pra professoras do interior, de formação superior. Então tinha, além das aulas, umas encenações, tinham umas situações que eles faziam de forma fictícia, que eram situações que as professoras viviam dentro de sala e que eram colocadas em forma de vídeo, e fazia parte pra suscitar debates. Bem interessante, quem dirigia era a Claudinha (Cláudia Oliveira). Hoje ela é produtora do Grupo Corpo, ela parou com o vídeo, ela fez junto com a Silvinha (Sílvia Godinho) o Meninos da zona sul, que eu fiz como atriz e como assistente de direção. Eu estava fazendo esse trabalho com ela e falei que eu tinha feito algumas produções de elenco. Ela disse que tinha um pessoal do Rio que estava vindo filmar em Diamantina e que estavam procurando elenco aqui, disse que ia me indicar. Era para o filme Vida de menina, que ia se chamar O brilho das coisas, direção da Helena Solberg, e produção do David, que era marido dela. Ela passou o contato e eles me ligaram, estavam procurando a menina. Acabou que quem fez a protagonista foi a Ludmila Dayer, que fez muito bem. Todas as crianças, as meninas, adolescentes que eram da turminha da Ludmila eram daqui. E vários atores, o Orlando Orube, o Helvécio Guimarães, o Paulo André, vários atores daqui foram. 

Eu fiz uma primeira leva, fiz os testes, chamei a Gilza Santos pra trabalhar comigo porque eu fiquei insegura, porque era uma produção cinematográfica, eu nunca tinha feito e a Gilza conhecia muita gente. Eu me lembro que no teste ela ficava assim “mas esse teste está vazio demais”. Eram vários personagens, mas eu não chamei muita gente para cada personagem, eu direcionei, eu sempre trabalhei assim, com perfil. Enfim, aí deu certo, ela gostou, e depois eu produzi uma oficina, uma oficina não, um novo teste, que aí ela veio dirigir, foi até lá no TU – Teatro Universitário da UFMG -, na Carangola, que foi superbacana também. Ela fechou o elenco. Depois, muito coincidentemente, meu marido foi trabalhar no filme, ele fez frente nesse filme como produtor por outros caminhos, coincidências, né? Foi um trabalho bem bacana. Depois disso eu fiz o filme do Roberto Bomtempo. 

MCB: Só que antes de entrar aí eu queria que você explicasse um pouco o que é essa função de produtora de elenco, porque você já citou aqui algumas etapas, mas eu queria que você explicasse um pouco sobre quais são as atribuições de um produtor de elenco. 

AR: No cinema, o produtor de elenco é também um pesquisador de elenco, ele tem que buscar, não é só abrir a carteira dele de atores e chamar. Você tem que apresentar tipos, pessoas, enfim, opções eficientes para o diretor. Não que na publicidade você não tenha que fazer isso, você tem que fazer isso, mas não tem tempo de pesquisar, é tudo pra ontem. Então o produtor de elenco vai fazer esse levantamento de possibilidades de atores para aquele personagem ou para aqueles personagens, ele faz o teste, aqui em Belo Horizonte, normalmente, quem dirige é o produtor de elenco. Agora, outro dia, eu fiz um teste com uma atriz  e estava a assistente de direção dirigindo. Em São Paulo é sempre o assistente de direção que dirige. Essa parte de direção pra mim é a melhor. Depois que o elenco é selecionado, ele acompanha esse elenco no set, principalmente no caso da publicidade. 

No cinema, se ele continuar, por exemplo, fazendo a produção de figuração, de elenco de apoio, ele continua e vai para o set, porque ele que é responsável por essa figuração, por acionar, esperar, cobrar, essa coisa do horário, manter os figurantes ali sobre controle durante todo o dia de filmagem.  Mas quando o produtor de elenco de cinema não faz esse elenco de apoio e nem figuração, ele entra muito na pré- produção. Antes de todo mundo entrar, entra o produtor de elenco, na publicidade ele com certeza vai para o set, geralmente você tem dois, três dias pra preparar o elenco, três dias é o máximo da glória. Realmente é uma gincana, tudo pra ontem. Aí você faz o teste, depois você faz uma seleção nesse teste junto com o diretor, isso é apresentado para o cliente, o cliente escolhe quem ele acha que esta no perfil, e aí você comunica ao ator, vai pro set e faz. 

Tem um monte de coisa que eu fui aprendendo na prática. Por exemplo, uma vez eu fiz um teste que era pra Loteria de Minas, a atriz foi escolhida, eu dei a notícia pra ela na quinta e a gente ia filmar no sábado, era película. No sábado, ela chegou com a cara toda vermelha e escamando, ela tinha feito um pealing... Teve uma outra menina, que era de elenco de apoio, era vendedora da loja, ela chegou mancando, “eu fiz uma cirurgia no pé”. Isso na hora, no set. Aí o que eu aprendi com isso? Eu aprendi a fazer um termo de compromisso, que era uma coisa que não era oficializada aqui em Belo Horizonte, no qual o ator se compromete a não mexer no visual nem a se submeter a tratamentos de pele abrasivos, tudo isso eu colocava no termo de compromisso pra pessoa assinar até sair o resultado, não cortar cabelo, essas coisas. Outra coisa que eu também fui aprendendo na prática, porque aqui em Belo Horizonte o mercado publicitário de anunciantes em TV é muito reduzido e então eles não vão chamar uma pessoa que está fazendo um comercial que está no ar agora pra fazer outro comercial, de outro anunciante, de outro setor que não tem nada a ver. Mesmo sem ter nada a ver, eles não vão chamar, então eu fui aprendendo também. Aprendi na marra a pedir pra pessoa falar se é ela está no ar com algum comercial, se ela tem algum contrato assinado ainda em vigência, porque às vezes o comercial não está lá, mas vai entrar de novo, é um ano de contrato. 

Isso tudo eu fui aprendendo na prática, também fui aprendendo na prática a negociar cachê pra ator, pensando em diária de trabalho, comecei a entender o que eram direitos conexos, o que era uma diária de trabalho, quanto isso pesava no cachê, se fosse fazer de novo, se fosse reveicular, tempo de reveicular. Veiculação, praça, tudo isso são coisas que cabem ao produtor de elenco no caso de publicidade. No caso de cinema essa pesquisa, esse levantamento, às vezes a direção do teste, às vezes não. Eu sempre dirigi, mas às vezes é o assistente de direção que vem fazer, no cinema o assistente de direção é muito sobrecarregado, muitas vezes ele não tem tempo pra ficar dirigindo teste de elenco, só mais no final, lá na peneira final que ele aparece, aparece o diretor. Essa coisa de cachê é tudo com o diretor de direção, ou com o  produtor executivo, produtor de elenco não negocia, ele só faz o levantamento, apresenta o projeto para o ator, às vezes nem pode apresentar porque é sigilo ainda, por causa de direitos autorais ou do quer que seja, Aí ela ou o cara topa ou não fazer o teste e apresenta para o diretor. Mas tem aquela coisa também que é o produtor de elenco, que vai apresentar mesmo pro diretor, falar qual a história desse ator, de que tipo de teatro ele vem ou de que tipo de cinema ele já fez, de personalidade. Eu já tive casos de ter que falar com o diretor que o ator que ele mais gostou era alcoólatra e era uma questão ética, não sei se eu fui antiética com o ator, ele nem sabe disso, mas eu como produtora de elenco contratada do filme tinha que avisar ao diretor que ele era alcoólatra e que se ele quisesse, fizesse questão do cara, ele ia ter que assumir por conta e risco dele, né? 

Tudo isso está junto, por exemplo, teste de criança. Para filme, o menino vai ficar no set 12 horas, durante 40 dias, então você tem que testar a resistência da criança, o humor da criança, enfim, uma série de coisas que estão em questão ali e que vai servir para o set. Tudo isso eu sou obrigada a falar para o diretor, “olha, esse menino vai te dar muito trabalho, você vai ter que ter um recreador no set”. Já tive filme que tinha um recreador no set, a gente levou patinete, bicicleta, velotrol, tudo que você puder imaginar pra entreter a criança, porque o menino que o diretor quis era aquele e era ele, tinha que ser, e tinha que ter uma pessoa pra distrair o menino porque sozinho ele era hiperativo, ele não conseguia ficar quieto, então na hora do silêncio não podia correr esse risco, tinha que ter alguém pra entreter.

MCB: Você ia começar a falar do filme do Bomtempo (Depois daquele baile). 

AR: O André Carreira já tinha trabalhado no filme do Helvécio (Ratton), no filme da Rádio Favela (Uma onda no ar), depois ele saiu e montou a produtora dele, que hoje é a Camisa Listrada. Várias pessoas daquela equipe do filme, o Guilherme Fiúza, estavam na Quimera, que é a produtora do Ratton e que era o apoio, era a coprodutora, não lembro em que nível entrou na produção do filme do Bomtempo. Mas eu sei que a base era lá, tudo funcionava lá na Quimera. Foi através do André Carreira que eu fui fazer, ele me indicou pro Guilherme e eu fui fazer a produção de elenco. Era elenco de apoio e figuração do filme, e foi a primeira e a última vez que eu fiz. Acabou que eu fiz uma ponta no filme e acabou que não entrou na edição, aliás, esse filme é uma loucura, porque...

MCB: Primeira e última vez que você fez o quê?

AR: Produção de figuração, porque a figuração é importantíssima para o filme, mas dá um trabalho danado, é um trabalho braçal, porque se você tem uma cena que tem 200 figurantes e essa cena muda de dia, que foi o que aconteceu lá no filme, você fica na água, você esta na água sem boia. Porque era em um dia, a cena ia ser em um sábado e passou pra quarta-feira, daí ninguém que podia ir no sábado podia ir na quarta-feira. É um trabalho em que você faz uma pesquisa também, por exemplo, no filme, os dois protagonistas jogavam peteca, então eu fui na Federação de Peteca, eu nem sabia que tinha, descobri um clube aqui na Floresta, o Oasis, que tem uma tradição fortíssima em peteca. Aí eu fiz um levantamento enorme de possibilidade de figurantes pro Bomtempo escolher quem ele queria para a cena no clube em que eles jogavam peteca e isso é produção de elenco e de ator, mas aí não é usado. Outra coisa que aconteceu nesse filme que foi muito desgastante pra mim como produtora de elenco foi que algumas cenas tinham que ser com atores, porque não dava pra ser figurante fazendo, porque figurante não é profissional das artes cênicas, figurante é, sei lá, um funcionário público que tem um dia disponível e quer conhecer, quer ver, ou o aposentado que pode fazer, não é um ator disponível. E aí tinha cenas que tinham uma fala, por isso a gente fala elenco de apoio, tinha um plano fechado da pessoa, então tinha que ser um ator pra fazer. 

Daí eu chamei muitos bons atores daqui pra participar, era uma das primeiras produções que estavam vindo pra cá, pra filmar na cidade. Depois que o filme foi embora, a produção toda foi embora, sobrou pra mim, porque vários atores me ligavam: “Você me queria pra fazer aquilo?”. Não sei se eles estavam esperando um tratamento especial, alguma coisa, mas em um set de cinema com mais de 50 pessoas, em um set em que você tem Irene Ravache, Lima Duarte e Marcos Caruso no Mercado Central, não dá pra você dar um tratamento especial pra um elenco de apoio, figurante, não tem jeito. Mas eu entendo quando ele pediu “olha, aqui não dá pra ser um figurante, tem que ser um ator”. E também não podia ser qualquer ator porque não podia ser qualquer coisa expressiva demais, eram coisas contidas, é cinema, plano fechado, né? Mas enfim, essa coisa da figuração eu não quis mais fazer, depois disso eu só fiz elenco principal e elenco secundário, passava a bola pra, sei lá, terceiro assistente de direção, não queria mais fazer.

MCB: Depois desse vem o Mutum?

AR: Vem o Mutum, Bomtempo e depois o Mutum, porque aí foi muito engraçado. O Cezinha, que tinha sido diretor assistente do Bomtempo, porque tem diferença entre assistente de direção e diretor de assistente, eu não sabia, descobri nesse filme. O Cezinha ia dirigir O menino maluquinho pra TVE, aí ele me ligou perguntando se eu podia fazer um teste, abrir um teste aqui em Belo Horizonte para o personagem. Eu falei com ele que eu não ia fazer mais porque eu estava queimada por causa da situação que tinha acontecido no filme do Bomtempo, porque chamei bons atores e eles estavam meio... enfim, eles tinham ido embora e eu fiquei aqui com o rabo de foguete na mão. Que eu podia até indicar algumas pessoas, alguns meninos pra quem eu dava aula, mas fazer teste eu não ia fazer não. Eu estava em um shopping quando ele me ligou, aí fui pra casa. Quando eu estava em casa, me ligou a Sandra Kogut, eu não sabia que era ela. Ligou falando que era a Sandra, não falou qual Sandra era, falando que ela estava fazendo um filme e que precisava de pessoas mineiras, do interior de Minas, de preferência, porque ela já estava fazendo uma pesquisa há mais tempo, mas que ela queria abrir testes pra atores mineiros por causa do sotaque e tudo. Mas ela não me falou qual era o projeto, porque os direitos autorais ainda não tinham sido negociados, então ela não podia falar. Aí eu falei que estava meio de ressaca de produção pelo que tinha acontecido, que eu estava indo viajar, que era até para o interior de Minas. Ela perguntou pra onde e eu respondi que era para o norte de Minas. Ela disse “É mesmo? Eu tive lá agora, o que você vai fazer lá?” “Ah, o meu irmão tem fazenda lá”. “É mesmo? Quem sabe não pode ser a locação do filme, manda umas fotos”. Eu falei “que filme que é?”. Ela disse que não podia falar, e eu “mas eu preciso saber, preciso saber que filme é”. Ela falou, “olha, é uma adaptação do Miguilim”. Nessa hora eu fiquei toda arrepiada, fico arrepiada de novo, toda arrepiada, porque eu estava lendo o Miguilim pela oitava vez, e eu tinha começado naquela semana porque eu ia para o sertão de Minas e é muito gostoso você ler Guimarães Rosa no sertão de Minas. O engraçado é que o Miguilim fica no mesmo livro do Manuelzão, e eu nunca liManuelzão, até hoje nunca li, só leio o Miguilim. Eu fiquei toda arrepiada, impressionante. 
Eu acho o filme tão precioso, eu tenho muito orgulho de ter participado desse processo. E aí eu topei, mas disse “só que eu vou fazer quando eu voltar”. Foi engraçado, ela falou “se você vir alguém interessante...”.  Aí lá eu já fotografei os peões, o povo, conversei, menino não tinha não, na fazenda onde eu estava. Daí voltei e fiz. Ela quis fazer com um menino do interior mesmo, porque menino da cidade, ela tem razão, são meninos mais agitados, tem um outro tempo, então foi uma escolha dela muito acertada. Era um projeto de vida dela, muito pessoal, ela ficou dois meses andando pelo sertão mineiro com o filho debaixo do braço, filho novinho, de meses, com a roteirista, procurando esses meninos, e achou, achou a avó também. Aí teve uma oficina que foi feita lá em Morro das Graças, onde foi a locação do filme, com a Fátima Toledo. Foram alguns atores daqui que ela gostou muito, foi o Glicério Rosário, a Grace Passô, a Tina Dias, a Izadora Fernandes, de homem acho que só foi o Glicério.

MCB: Teve o Rômulo Braga.

AR: Rômulo Braga, é verdade, que fez o filme. Acho que teve mais gente, teve a Hortência Maia, a Bárbara Amaral, que também era do Match de improvisação. Eu produzi, esse povo daqui foi pra lá, fizeram oficina e fizeram o elenco do filme, quem ficou daqui foi o Rômulo Braga, a Izadora Fernandes, o Eduardo Moreira, que não fez o teste, foi convidado, acho que só. Foi muito legal, mas é engraçado, o produtor de elenco entra tão antes do filme, que quando o filme estreia ninguém lembra do produtor de elenco. Depois disso, eu fiz o 5 frações de uma quase história, foi no ano seguinte. Eram cinco elencos porque eram cinco histórias, eu fiz o elenco principal, alguns atores conhecidos já faziam, já tinham sido escolhidos, como o Leonardo Medeiros, Jece Valadão. O Gero Camilo entrou pouco depois, já o Cláudio Jaborandy era hipótese, mas ele não tinha confirmado ainda. Então fiz muitos testes para o personagem dele também, inclusive o (Adilson) Magah fez um teste maravilhoso para o personagem dele, se tivesse sido ele teria sido tão bem feito quanto. Acabou que ele entrou no filme também como um dos amigos do Claúdio Jaborandy. Foi um trabalho muito bacana, com um tempo longo de pesquisa, foi muito bom fazer, adorei fazer, só atores mineiros. 

Depois eu fiz o Fronteira, que foi o mais difícil de todos, embora tivesse seis personagens. Porque eu não entendia o roteiro, eu não entendia o livro, aí comecei a pesquisar sobre os teóricos de teoria literária, sobre análise do livro Fronteira, era um livro que não tinha explicação dentro da literatura brasileira, um personagem que a Yara de Novaes faz é tido como o personagem mais indecifrável da literatura brasileira.  Estava sendo dificílimo, tanto que é um filme imagético, muito mais do que dramático.  A Clarissa Campolina foi assistente de direção, foi uma luz no fim do túnel pra mim porque a minha cabeça de atriz não conseguia entender mesmo, sabe, então eu bati muito a cabeça pra conseguir fazer. No final eu já estava indo numa intuição de energia que eu achava que o personagem me trazia quando eu lia, e aí eu olhava pra um determinado ator e ouvia ele em cena, ou lembrava de alguma situação que me remetia àquela energia similar e chamava. E deu certo, porque eu acho que o cinema tem muito isso, foi uma coisa que eu aprendi também, então hoje eu nem fico mais tão frustrada quando eu faço um teste como atriz, porque no cinema, primeiro você tem que acertar o que o diretor está imaginando, isso quando não tem um atravessador entre você e o diretor. Então pra acertar é muito difícil. Segundo, que eles nunca vão procurar quem faça determinado papel, eles vão procurar quem seja determinado papel, quem tem aquela energia, quem tem aquele tônus muscular mesmo pro personagem ou aquele determinado olhar que já tenha na pessoa. Ou um olhar triste, não alguém que faça um olhar triste, porque tem gente que você olha e fala “que olhar melancólico”. Eu já tive briefing assim, de eu quero alguém melancólico, ele não quer uma pessoa loira, alta, magra, né, é tudo muito subjetivo. 

Depois do Fronteira eu fiz muita publicidade, muita, muita, muita, eu fiz trabalhos muito bacanas, para grandes anunciantes, que são comerciais que têm uma outra qualidade, um outro nível. Foi um tempo bom assim, depois fui parando de publicidade porque eu fui ficando muito chata no mercado, muito exigente, muito ranzinza com algumas coisas. Por exemplo, o diretor escalava o elenco inteiro pra estar às 6 horas da manhã no set, às vezes 5 horas da manhã no set. E tinha ator que ele ia usar às 2 horas da tarde, sabe, umas coisas assim que era só uma questão de planejamento. Outra coisa era cachê de ator, era uma coisa ridícula, de comercial, contrato de um ano que o ator assina aqui em Belo Horizonte ele não faz mais nada, nada, nada, nada.  Até hoje me procuram pra eu voltar pro mercado, mas eu tomei um certo pânico.  É muito estressante o trabalho em publicidade, muito, muito, e eu fui parando aos poucos. E aí eu fui parando aos poucos, pegando trabalhos ou que eu tinha um tempo maior pra fazer ou que eu podia fazer com mais cuidado ou fazer só a direção do teste, aí eu fui parando, eu levei dois anos para parar, não foi uma coisa fácil, principalmente pela questão financeira, porque eu ganhava bem, minha renda caiu para um terço do que eu ganhava. 

Dos dois últimos trabalhos que eu fiz, um foi um longa que ganhou o prêmio de Melhor Filme no ano passado, no Festival do Rio, que foi A hora e a vez de Augusto Matrága.  Também tem uma história que foi assim para fechar com chave de ouro, que foi com a direção do Vinícius Coimbra, que é um cara bem bacana, mas as pessoas têm muito preconceito porque ele é diretor da Globo. Eu me lembro que na ocasião do Festival do Rio, antes da exibição do filme dele, uns dois dias antes, falando dos filmes que estavam na mostra competitiva, eu vi meio que descredenciando ele como diretor de cinema, porque ele era diretor de TV. 

Ele é diretor de novela mesmo, novelão mesmo, sabe, mas é uma bobagem, porque eu vi dirigindo teste e ele é muito cuidadoso com os atores, ele é muito cuidadoso, ele é muito objetivo. Por exemplo, teve um teste com o Chico Aníbal, ele foi o primeiro a fazer o teste para aquele personagem que ele foi fazer. Quando acabou o teste, ele falou assim “desmarca todos os outros porque é ele”. Sabe, ele não ficou querendo ver qual era o melhor, ele bateu o olho e falou “é o cara”. Então, assim, para alguma coisa estava servindo aquela experiência dele com TV. 
Teve uma situação nesse filme que foi o seguinte: tinha o personagem que era a filha do Matrága, ela aparecia criança, depois ela aparecia adolescente e depois ela aparecia adulta. Para fazer ela adolescente e adulta ele usaria a mesma atriz. Ela aparecia de roupa íntima, não sabia se ia ter uma parte de nu e tal. Aí eu conversei com ele e falei para chamarmos uma atriz mais velha que não fosse tão mais velha, que fotografasse como adolescente, mas que com uma maquiagem... Aí ficou que seriam duas atrizes e aí aquela coisa, né, você tem que achar atores parecidos, é uma novela isso.  Eu fui em escola, uma escola onde eu trabalho, em vários lugares, e achei uma menina, e também achei uma moça das artes cênicas. Mandei as duas fazerem o teste, marquei no mesmo horário, para ele ver a criança e a moça, a Carolina França. Foram três testes até chegar na mão do diretor, e ele fechou essas duas atrizes, a menina e a Carol.  Aí beleza, liguei toda feliz para a mãe avisando que ela tinha sido selecionada e ela me disse assim: “Ai que bom, mas ela não vai fazer não”. E eu “como que é?”. E ela era cliente da escola que eu dou aula. E falou que a filha não ia fazer porque eles eram evangélicos. E eu “não, a senhora está enganada, ela vai fazer sim”, e ela “não vai não”, e eu “então por que a senhora levou ela para quatro testes? Por que você levou ela para o diretor ver? Quanto mais testes ela passava mais próxima ela estava de fazer o filme”. E ela falou “eu não pensei, eu fui indo para ela ver como que era, mas a gente não é desse tipo, a gente não se deslumbra com essas coisas”.  Eu tentei de tudo para convencer essa senhora, mas não teve jeito,ela não topou, eu tive que fazer tudo de novo, mas a pesquisa já foi por outro viés, ele queria a Carol, e eu tive que procurar uma menina que se encaixava com o perfil dela. 

MCB: E você pensa em retomar?

AR: Elenco? Não consigo conciliar com meu trabalho de atriz. Quando eu fazia, os vários filmes que eu fiz, eu podia ter feito testes e tal, mas eu não tinha essa coragem, acho que era uma questão ética mesmo, de eu falar do meu próprio trabalho, não constranger o diretor, dele falar “olha, não, não é você”. Porque também é chato para o diretor falar na cara, para isso tem o produtor de elenco, ele que vai dar a má notícia para a pessoa, entendeu? Quando dá, né, porque tem produtor de elenco que nem liga para você quando você não é selecionado. Eu sempre mandava pelo menos um e-mail, dizendo obrigado por participar da seleção, conto com você em um próximo trabalho. Enfim, até nisso eu acho que foi um diferencial no meu trabalho, sabe, mas não penso não, penso em dirigir. 

Esse trabalho que eu fiz agora com o Guilherme Fiúza foi muito interessante, a Laís Correa, que vai fazer a preparação de elenco, ela veio para fazer uma oficina com os meninos para ajudar o Guilherme a escolher os protagonistas. Ela teria que ir para Portugal para preparar uma novela, um elenco de uma novela lá em parceria com a Globo. Aí eles me chamaram porque eles sabiam que eu dava aula para criança, para eu acompanhar a oficina que ela estava dando, para poder depois aplicar essa mesma oficina em outros grupos do elenco.. Dessas oficinas saiu um grupo com mais ou menos duas crianças para cada personagem, eram quatro personagens, seis personagens, e a gente fez uma nova oficina, que fui eu que elaborei. Foi muito interessante porque eu botei em prática coisas que eu já tinha vislumbrado dando aulas no TU, de ator e câmera, dirigindo teste, coisas do trabalho teatral que você pode desdobrar para uma preparação para set. Não que essas oficinas fossem preparação, mas era um instrumento do Guilherme avaliar, por exemplo, a concentração da criança, a criatividade, o relacionamento dela em grupo. Tudo isso é base para o teatro, né, concentração, trabalho coletivo, essas coisas, mas que servem para o set. E é uma forma da criança não estar naquela situação de teste, que já é muito cruel para o ator adulto, imagine para a criança. Você, a câmera, fazendo uma coisa do nada, que caiu de paraquedas. Então é uma situação lúdica, ela está jogando, brincando com outras crianças, daí você tem muito mais possibilidade para avaliar o potencial daquela criança do que em uma situação de teste clássico. Foi um trabalho que eu gostei, então estou pensando em formatar essa oficina para oferecer como instrumento de seleção de teste de elenco, não como preparação. Também desse meu trabalho como professora no TU, porque aí eu parei, eu não falei o outro trabalho. 

Tem uma coisa que eu queria falar do Matrága. Como eu disse, o produtor de elenco entra na produção antes de todos os departamentos do filme, com exceção, claro, da direção de produção, a produção executiva e a direção do filme. Eu recebi um convite para ir à estreia do filme no Festival do Rio, isso nunca tinha acontecido antes, as pessoas mal se lembram de colocar seu nome nos créditos, colocam porque são obrigados a por, Eu fiquei muito comovida mesmo com esse cuidado que ele teve, sabe, de chamar e tudo, até escrevi pra ele.  Ele falou “nossa, é fundamental o trabalho do pesquisador de elenco para o filme porque primeiro o filme é pra sempre, se eu não tiver uma pesquisa de elenco eficiente eu corro o risco, já é arriscado por natureza”. Então foi muito legal, eu fiquei muito feliz. Depois eu fiz um trabalho que foi para o Museu Memorial de Minas Gerais, que foi com o Gringo Cardia, ele era o curador do museu. É um museu todo interativo, todo digital, como a maioria dos museus é hoje em dia no mundo todo e aqui em Minas tem pessoas se especializando nisso. 

Depois eu parei de fazer e fui dar aula no TU, passei no concurso do TU e lá eu descobri o que eu quero pesquisar, o meu mote agora é o trabalho do ator com a câmera. Eu convidei algumas pessoas para embarcar nessa comigo, alguns atores daqui de Belo Horizonte, Glicério Rosário, a Neise Neves, o Léo Quintão, e a Fabiana Leite, que dirigiu um curta que eu fiz como atriz. A gente está fazendo os encontros, fazendo leitura, fazendo exercício para a câmera. Está bem legal, está no inicinho, mas está muito rico o processo. E lá no TU eu criei uma série de exercícios, criei mesmo, inventei para os atores fazerem. Eu ficava do lado de fora porque eu era a professora, mas com uma vontade louca de experimentar e fazer também. Mas eu não podia, ali naquele lugar, naquele espaço, eu não podia fazer isso. Agora eu estou fazendo, estou muito feliz, estou descobrindo muita coisa.

MCB: Pra finalizar, qual é a mulher do cinema brasileiro que você quer deixar homenageada na sua entrevista? 

AR: De atriz jovem, de agora, eu gosto muito da Alice Braga, eu acho que ela se joga muito nos papéis. No Cidade baixa, para mim, é assim acima da média, Nossa Senhora, o que ela faz ali para mim é incomparável, e não é à toa que a carreira dela está deslanchando fora. Aqui também ela está em todas, acho que ela é daquela geração ali, do Wagner Moura, Lázaro Ramos. Foi um povo que chegou em um momento e trouxe um frescor pra atuação no cinema que é diferente. Que eu acho que tem a ver com a Fátima Toledo também, acho que tem a ver com essa onda agora de preparadores de elenco, que eu acho que é uma lacuna que tinha no cinema, mas que agora está virando um pouco de ditadura no cinema. Mas que ainda é bem-vindo, acho que o diretor não pode se eximir da função de dirigir o ator, mas acho que é legal ter uma pessoa que fale uma mesma linguagem do ator para preparar esse elenco. É Alice Braga.

MCB: Obrigado pela entrevista.


Entrevista realizada no Galpão Cine Horto em 2012.

Veja também sobre ela

::Voltar
Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.