Ano 20

Cristina Amaral

Nascida em São Paulo, Cristina Amaral é uma montadora importante e premiada a serviço do cinema brasileiro. Fã de carteirinha e parceira de primeira hora de Carlos Reichenbach e Andrea Tonacci, para o primeiro monta os filmes desde o belo “Alma Corsária” – alguns curtas e vídeos, e os longas “Dois Córregos”, “Garotas do ABC” e “Bens Confiscados” são os outros. Com Andrea Tonacci montou a Extrema Produção Artística, onde exerce sua arte desde 1997.  


Cristina Amaral se encantou pela montagem ainda no curso de cinema na ECA, no início da década de 80. A montadora recebeu o Mulheres na Extrema Produção, uma bela e espaçosa casa, para uma longa, inteligente e agradabilíssima conversa. Na primeira parte da entrevista, Cristina Amaral relembra os tempos de escola, sua passagem pelo universo da publicidade e a polêmica relação cinema x publicidade. Fala sobre  seu encontro fundamental com o mestre da montagem, Umberto Martins “Nós temos pessoas que trabalham tecnicamente bem, que constroem, que dão o ritmo, mas eles  são uns gênios criadores,  inventores” (o outro citado é Sylvio Renoldi). 


Cristina Amaral homenageia também o cineasta Chico Botelho, que a indicou para o primeiro trabalho, o cineasta Denoy de Oliveira “Eu não tinha a dimensão do tamanho da nossa amizade, do tamanho do coração dele”, e a diretora Raquel Gerber “È uma pessoa que está sempre presente em minha vida, uma amiga, uma irmã”. Cristina Amaral fala também dos primeiros prêmios, do monopólio e da invasão política do cinema americano, da Ancinav, entre outros assuntos.   


  

Mulheres do Cinema Brasileiro: Quando foi que você decidiu e disse: quero trabalhar com cinema? 


Cristina Amaral: Na verdade, quando eu fui prestar vestibular eu tinha a maior dúvida sobre o que eu realmente queria fazer. Eu gostava de fotografia, eu fotografava, daí eu pensei em alguma coisa meio nesse rumo. Só que mais tarde eu fui perceber que o cinema já estava em minha vida já fazia um tempão. 


Há pouco tempo atrás alguém me perguntou como o cinema entrou em minha vida e eu comecei a me lembrar  que minha mãe, quando eu era criança, colecionava umas revistas de cinema, que eram  tudo sobre cinema americano. Eu nem tinha visto os filmes, mas eu conhecia os artistas, sabia os nomes, se eu visse a cara eu sabia quem era. A coisa que eu mais lembro de ler na infância era essa revista. Depois, quando a gente comprou a primeira tv em casa, eu me lembro que só assistia filme também. Eu me lembro que eu via filme legendado na televisão, filme italiano, francês, espanhol. É engraçado, eu falo para as pessoas da minha geração, mas elas não se lembram muito disso. Tinham os seriados americanos que passavam dublados e tinhas os longas que passavam com legenda. Eu me lembro que era isso que eu assistia na televisão, e era como se isso já estivesse me encaminhando. 


Para resolver o que eu queria fazer para prestar vestibular eu fiz teste vocacional, em função da dúvida que eu tinha. Como eu gostava de fotografia e a área que deu no meu teste era comunicação, eu prestei vestibular na ECA. Antes, no começo do curso, tinha o curso básico, em que você tinha aulas de jornalismo, artes plásticas, música, cinema, teatro, tinha tudo isso. E eu sempre pendia meio para esse lado da imagem. Daí quando eu tive que fazer opção dentro do curso eu optei pelo cinema. Fazendo o curso, primeiro foi a fotografia, eu comecei fazendo especialização em fotografia. Até que eu descobri a montagem. Até antes de fazer cinema a gente não sabe como o cinema é feito. Na hora que eu descobri que era na montagem que o filme se estruturava realmente, se constituía o formato, a cara que ele ia ficar depois, foi a opção que eu não larguei mais. 


Mulheres: Então sua escolha pela montagem foi no curso? 


Cristina Amaral: Foi no curso, eu não tinha a menor noção de como se montava filme antes. Cinema para mim era aquela imagem que eu via, eram os atores, a história ,era aquela imagem. Daí, quando eu conheci o trabalho de montagem, eu descobri qual era mesmo a minha veia dentro do cinema. 


Mulheres: Quando você passou da escola para a prática, para o filme mesmo, você começou pela montagem? 


Cristina Amaral: Foi pela montagem. Na escola eu ainda fiquei um tempo meio dividida entre a fotografia e a montagem, porque fotografia é uma coisa que eu gosto muito também. Porém, são coisas que você precisa realmente se dedicar, não dá para você se dedicar ao mesmo tempo à fotografia e à montagem, não tem condição. Então a montagem pesou mais para mim porque trabalhava essa parte mais intestina do filme, e que me interessava muito. 


Mulheres: Como foi o seu primeiro trabalho? 


Cristina Amaral: Primeiro na escola eu fiz um monte de coisas, porque a gente fazia meio de tudo. Quando eu fazia a parte de fotografia, eu era eletricista, era maquinista, carregava cabo trifásico, era tudo. Fiz muita coisa na escola, onde tinha um esquema muito interessante também. Eu participava de filmes de turmas mais velhas e de turmas mais jovens que as minhas. Quando eu saí da escola eu tinha um currículo muito grande. 


Mulheres: Quando você saiu? 


Cristina Amaral: Eu saí em 1980, oitenta e pouco. Chico Botelho foi meu professor de fotografia, foi uma maravilha. Aliás, ele é uma pessoa que faz muita falta para o cinema brasileiro. O senso de ética que ele tinha, o percurso por várias áreas, por vários grupos do cinema. Por exemplo, tinham grupos que não falavam entre si, então o Chico fazia a ponte entre eles. Ele tinha o espírito de conciliação, não o de botar panos quentes, mas o de buscar o melhor resultado para o cinema brasileiro. Ele foi a pessoa que me indicou para o meu primeiro trabalho profissional, um filme que ele tinha fotografado. 


O que acontecia muito naquela época, agora menos, era que o orçamento dos filmes acabava  nas filmagens (risos) Aí chegava a hora da montagem, eles tinham um montador, que era meio sócio, meio assistente, porque eles não tinham grana para pagar profissional. Neste filme, eles trabalhavam à noite porque era o horário que eles tinham a moviola. Aí ninguém queria, eles não conseguiam profissional para fazer. Como já fazia tempo que eu fazia coisas com montagem na escola, o Chico me indicou para esse trabalho.  E aí eu topei, fiquei feliz da vida, passava dias sem dormir, porque tinha coisa na escola para fazer de dia, e trabalhava a noite inteira. Na época era o máximo, mas pensando hoje era um horror, porque era em um lugar completamente insalubre, uma sala dentro de um laboratório, era horrível. Mas foi o meu primeiro trabalho profissional, o filme chama-se ‘Parada 88´, do José de Anchieta. Foi durante um longo o tempo, mas para um primeiro trabalho é isso mesmo, porque tinha o lance de ganhar experiência. E o fato de estar fazendo com condições profissionais, com responsabilidade, já é uma outra história. 


Mulheres: Para esse trabalho você foi indicada pelo Chico. Agora como foi para dar continuidade, o passo seguinte? O que modificou dentro do exercício da sua arte? 


Cristina Amaral: Ao mesmo tempo eu fiquei fazendo curtinhas com os amigos, que era um por ano que a gente fazia (risos). Mas aí esse montador, Jair Correa, me chamou para um outro trabalho, para fazer assistência.O filme era o “João Juca Jr”, dirigido pelo Denoy de Oliveira, e produzido pela Maracy Mello, que já foi num esquema muito melhor. Mais tarde, o José de Anchieta, que foi o diretor do primeiro filme (“Parada 88”), dirigiu um episódio para o Globo Repórter e me chamou para montar. Eu fui feliz, mas foi uma pauleira, um trabalho que depois a Globo detonou, não era do jeito que eles queriam, eles distorceram completamente o trabalho. A gente montou  numa produtora chamada Beca, aqui em São Paulo,de  um pessoal super bacana, o Paulo Antero e a Marlene Barbosa eram os donos. 


Um dia, o Paulo passou na moviola em um fim de tarde, e eu estava lá trabalhando cheia de cortes esparramados pela sala, porque a gente teve que montar uma coisa que era trabalho para um mês ,em uma semana, e eu não tinha assistente, tinha que fazer tudo. Então era uma loucura. Na hora que eu estava saindo ele me disse para deixar o telefone com a secretária, que se pintasse algum trabalho eles me chamariam.  Deixei, não confiando muito, achando que era gentileza dele. Achei bacana, mas eles tinham um montador fixo na casa, era uma produtora de publicidade. Daí passou um mês e pouco e ele me chamou. O montador teve um problema de saúde e ele me chamou para montar uns comerciais. 


Foi aí que eu tremi nas bases. Na verdade, eu nem tinha saído direito da escola, eu estava terminando as coisas por lá ainda, e ele me chamou para montar publicidade. O outro, o Globo Repórter, era uma coisa, uma ficção entremeada por entrevistas, para passar na televisão, foi uma montagem que não tinha muita diferença com o que vinha trabalhando na escola. Mas publicidade já exigia que eu conhecesse coisas de trucagem, de efeitos, pois é disso que a publicidade vive. Eu apanhei um pouco, ali eu percebi a minha inexperiência. Sempre que me chamavam para um trabalho eu ia meio com um frio na espinha, mas eu ia, era sempre algo que estava dentro do que eu estava acostumada a fazer. Ali pintou algo que eu desconhecia, então eu percebi que eu não podia ir assim achando que já estava pronta, que eu já era uma montadora pronta, porque eu não era. 


Mesmo com o medo que eu ia.sempre, eu sabia que o básico eu dava conta de fazer. Mas quando eu me deparei com essa situação eu contei com a generosidade enorme deles, mas eu senti que eu tinha muito que aprender ainda. E tinha coisas que eu fazia, que era de um jeito meio empírico mesmo. Eu pensava, “não é possível, isso aqui é uma linha reta e eu estou fazendo ziguezague, tem que ter um jeito melhor”. E o jeito era aprender com quem já sabia, com quem estava fazendo. Então eu dei uma brecada nesse trajeto de montadora e fui buscar, fazer assistência, porque eu achei que era o jeito de fazer. A gente tem que ter essa humildade, sem o peso da palavra, mas o reconhecimento de que a gente tem que aprender. Hoje eu sei que a gente tem que aprender sempre, mas quando você sai da escola, você sai com aquele gás todo. A gente tem que aprender que tem pessoas que já estão há dez, vinte anos, trabalhando, e eu vi que eu tinha que aprender com essas pessoas. 


Aí sentei na minha maquininha de escrever, pois naquela época eu não tinha computador ainda, escrevi o meu currículo e mandei para um monte de lugares. Peguei lista de tudo quanto produtora que tinha e mandei. Era todo um processo, tirar xerox, botar no correio e depois ligar para os caras. Foi um processo árduo, recebi muito não, inclusive por causa do currículo, pois tinha gente que dizia que com aquele currículo não podia me chamar para fazer estágio, que eu já tinha feito muita coisa. Eu nem estava pedindo para ser contratada, eu estava querendo fazer estágio. Até que um dia um finalizador - porque as produtoras de publicidade não tinham assistente de montagem, acho que até hoje não tem muito -chamado Claudinho, topou que eu fizesse, a produtora chamava-se Phatom. Aí eu fui lá fazer o estágio. Era uma produtora que trabalhava com orçamentos grandes, eles faziam comerciais importantes, mas faziam um filme ou dois por mês, era pouca coisa. 


Então eu ia para lá, levava um livro para não entrar naquele ti-ti-ti de publicidade que era um horror. Foi lá que eu percebi que as pessoas mais suscetíveis à publicidade são os publicitários. Eles estavam sempre com a roupa da moda, o relógio da moda, o perfume da moda. Hoje eu não sei se é assim, mas naquela época o pessoal fixo das produtoras trabalhava muito, ganhava muito mal, mas achava o máximo porque estavam fazendo publicidade. E o  tempo inteiro tinha alguém vendendo alguma coisa dentro da produtora, todo mundo comprava, viviam cheios de dívidas. Eu não entendia aquilo e não gostava nem de chegar perto.Aí então eu levava um livro e ficava lá num canto da sala de montagem. 


Eu não via nem o montador da casa, pois não chegava filme. Até que um dia chegou  um cara, um grandão forte, e  chamou todo mundo para ver o copião. Eu fiquei quieta no canto, eu não era funcionária, mas ele me viu e me chamou para ver também. Perguntou-me o que fazia ali e eu disse que queria fazer estágio de finalização, acompanhar a parte de trucagem, aprender essa parte de laboratório. Depois de meia hora fiquei só eu na sala, porque as pessoas não tinham a menor paciência para ver copião bruto. Eu fiquei acompanhando e ele disse para eu voltar de tarde para continuarmos. Esse montador, eu tive a maior sorte, eu acho que  hoje é  o maior montador do Brasil, porque se a gente tinha dois grandes, um era Sylvio Renoldi e ele era o outro. Nós temos pessoas que trabalham tecnicamente bem, que constroem, que dão o ritmo, mas eles  são uns gênios criadores,  inventores. Até me emociona falar dessas pessoas porque o que eles faziam era transformar. Eles recebiam um material e devolviam um filme maior e melhor. Em publicidade a gente sabe que é isso, os caras gastam um longa-metragem para dar trinta segundos ruins, fracos, raramente são bons. E muito mais raramente são geniais. 


Eu via aquele monte de material e dizia “Meu Deus do Céu!”. E esse montador, que se chama Umberto Martins, que alías é mineiro, me deixava impressionada. Eu não queria acompanhar montagem de publicidade porque eu não achava graça nenhuma, aquela coisa toda formatada, que já vem com “story-board”, com um ritmo que tem que ser assim e tal. Eu não tinha interesse naquilo. Só que eu via esse cara fazendo cinema com aquele material. Então isso foi a minha escola, realmente, de cinema, de montagem. De cinema ,eu não diria porque eu tive aula com Paulo Emílio Salles Gomes, com Maria Rita Galvão, eu não tive a chance de ter aula, mas tive conversas nos corredores da escola, tive livros emprestados pelo Ismail Xavier - ele me emprestou livros de montagem que trouxe dos Estados Unidos, e não existiam no Brasil, com a maior confiança e generosidade. Eu tive pessoas boas enquanto pensamento de cinema. Mas a grande lição de montagem de cinema, essa construção que é a montagem ,eu tive  com o Umberto. E acabei nunca indo pros laboratórios acompanhar as trucagens, que era o projeto inicial do meu estágio. 


Mulheres: E que é um diálogo que ainda provoca polêmicas, não é? Entre o cinema e a publicidade. Principalmente para os críticos. 


Cristina Amaral: De dentro eu mantenho essa crítica. Porque eu acho assim, a publicidade tem um compromisso, uma relação muito grande que é comercial, é o nome dela, é para vender. 


Mulheres: Mas ela pode também... 


Cristina Amaral: Poderia ser criativa. 


Mulheres: Sim, mas no seu caso, houve uma interferência no seu olhar para essa arte e que veio desse campo. 


Cristina Amaral: Veio desse cara, mas ele é uma exceção. A formação dele é do MAM, a formação dele é de cinema. A primeira pessoa que eu vi lendo um livro enorme do Glauber Rocha - “Roteiros do Terceyro Mundo” - foi o Uumberto. Ele chegou para mim e disse: “você já leu isso aqui? Você tem que ler comadre, como é que você não leu isso ainda?”.  Entendeu a relação dele? Além disso, ele é um artista nato, um talento excepcional. E ele conseguiu, por essa paixão pelo cinema, não se perder durante a vida toda dele, porque 99% do tempo ele trabalhou em publicidade. 


Mulheres: Agora, você não acha que nessa  polêmica entre a relação do cinema e a publicidade, e é mesmo uma seara que tem que se olhar com mais cuidado porque são mesmo linguagens diferentes, há uma visão meio reducionista, mais de campo de guerra que de troca de diálogo? 


Cristina Amaral: Eu fiquei quase um ano trabalhando com o Umberto, eu não tinha a menor vontade de trabalhar com publicidade, mas eu fiquei por causa dele. O que eu vi é que esse reducionismo não parte do olhar de fora, ele é interno, é uma coisa de fórmula, de cópia. Você se lembra da época que eles traziam a premiação do Clio? Os filmes que eram premiados no Clio eles exibiam aqui no Brasil. Era impressionante, era uma vergonha ver tanta cópia entre si. E o que se copia do cinema então nem se fala. Na verdade, não tem um processo de criação, quando existe,  é muito raro. Você tem um orçamento que, em alguns casos, dá até para rodar um longa-metragem. Gasta-se película, há mais dinheiro de produção que para rodar um longa-metragem. E na hora que chega na sala de montagem, você tem que suar para fazer sair trinta segundos dali. É um negócio que não sou eu que estou reduzindo. 


E tem uma coisa assim, a publicidade tem que ser sua, você tem que se promover , você tem que se produzir senão você não existe, você tem que estar ali em tal lugar senão você não existe. Você tem que ir para Trancoso no reveillion e chegar de jatinho senão você não existe. Sabe esse tipo de coisa?  Infelizmente, um pouco desse comportamento, dessa atitude está hoje dentro do cinema também. É uma coisa que veio junto. E era insuportável porque são pessoas com as quais não dá para você fazer uma troca. O Ugo Giorgetti é um dos poucos caras que fazia - não sei se ainda faz - publicidade que consegue sair fora disso, mas porque também é um cara que tem uma formação cultural séria, e é muito inteligente. Eu o vi uma vez arrastar um montador de uma produtora de publicidade para assistir um filme do Etore Scolla, “O Baile”, que não tinha um diálogo sequer -  e o cara disse: “imagina, que eu vou assistir um filme que não tem uma fala !”. Daí o Ugo disse “você vai ver ,senão você não monta mais meus  filmes aqui”. Ele fez o cara ver. 


Mulheres: Então, eu fiz essa pergunta mais como provocação porque eu conheço sua trajetória. E eu acho importante ressaltar isso porque você acabou vivendo um momento de exceção dentro desse universo, o que acabou, de certa forma, pontuando o seu trabalho futuro. Por isso acho importante você falar sobre essa relação entre cinema e publicidade. 


Cristina Amaral: Na verdade, para mim era impressionante, porque eu via o material que a gente recebia e eu pensava, “não vai sair filme daqui nem tossindo, nem tossindo”. Aí o Umberto chegava, ele assistia, ele esmurrava a moviola, xingava, depois ia para casa e caía com febre, ficava doente. No dia seguinte, seis horas da manhã a gente tava na moviola, a minha casa era no caminho, ele passava, me dava carona. Quer dizer, as seis e meia a gente estava na padaria tomando um café, e às sete horas nós estávamos na moviola, e dali ele não saía. Às cinco da tarde ele tinha um filme, e eu ficava impressionada, eu ficava arrepiada de emoção em que ver o que ele fazia ali, porque ele inventava o filme ali. E, uma coisa que eu adorava,  ele se recusava sequer a olhar os “story-boards” que as agências mandavam. Ele os jogava no lixo, na frente de quem os entregasse, e tinha uma frase maravilhosa : “O material é o rei”.  E era em cima do material que ele trabalhava. 


Mulheres: Depois disso, quanto tempo você voltou a assinar uma montagem? 


Cristina Amaral: Aconteceu o seguinte, eu fiquei esse tempo com ele e meio que ficava fazendo free-lance. Nos lugares que ele trabalhava sempre tinha alguém fixo. Durante muito tempo, e isso é importante falar, ele me pagou do bolso dele, ele tirava do salário dele e me pagava, para não ter nenhuma interferência dentro das produtoras. Porque ainda tinha isso, quando eu cheguei é aquela coisa, chegou alguém novo, e eu comecei a perceber uns olhares meio estranhos. Aí eu disse para o Umberto que eu ia conversar com o pessoal e avisar para todos que eu não ia trabalhar lá, que eu estava apenas fazendo estágio, que nem se o dono da produtora quisesse me contratar eu ia ficar. Eu estava precisando trabalhar, mas eu não ira fazer isso, só estava lá por causa do estágio. Aí eu chamei um por um e expliquei que eu estava ali para aprender, que agradecia a generosidade deles por terem me dado aquele espaço, mas que eu não queria trabalhar lá. 


Daí, quando apareciam trabalhos fora dali ele me pagava do bolso dele, porque não existia essa figura de assistente de montagem nas produtoras, o que tinha era finalizador fixo. Ele me pagava para a gente continuar trabalhando junto. Até que houve um momento em que o Enzo Barone, da CinemaCentro, chamou o Umberto para contrata-lo , e ele pediu para me contratar também. Daí eu comecei a conversar com o Enzo para ver sobre quanto eu ia ganhar, essas coisas. 


Nesse meio tempo eu montei um curta do Denoy de Oliveira, ‘ Nós de Valor, Nós de Fato´, e fiquei com essa história de se o Enzo ia me contratar ou não. Daí a Raquel Gerber me chamou para fazer assistência de montagem no ‘Ori´, que era um filme que ela estava fazendo. Então eu cheguei para o Umberto e falei que haviam me chamado para fazer um documentário, um longa. Ele me olhou meio assim, mas entendeu. O Umberto é como um irmão para mim, ele foi muito generoso. Ele podia ter ficado muito puto comigo com isso, mas ele entendeu que aquela não era a minha praia. Ele vivia brincando comigo dizendo que queria ver o dia em que eu entraria para o “jet set” da publicidade, aquela coisa de ficar andando na moda. Ele entendeu e disse “Tá bom comadre, vá lá, é isso que você quer fazer”. 


E eu também já não estava agüentando aquele ritmo porque eu não tinha uma vida própria. Publicidade era isso, sete horas a gente estava na produtora, oito da noite a gente estava jantando em algum restaurante e entre dez a onze horas eu era devolvida em casa para dormir e voltar no dia seguinte. Isso era sábado, era domingo, era o tempo inteiro. Ficou meio complicado, eu não conseguia ir ao cinema, eu não conseguia ver as pessoas com quem eu morava, eu não fazia mais nada a não ser trabalhar. 


Eu fui fazer o “Ori” da Raquel, que foi um trabalho enorme, um processo de vida. Eu tenho na minha história esses trabalhos muito grandes, essas coisas muito intensas, mas que resultam em laços de afeto muito intensos também. A Raquel Gerber é uma pessoa que está sempre presente em minha vida, uma amiga, uma irmã, pra sempre. 


Mulheres: A partir daí teve alguns hiatos ou deu-se uma continuidade? 


Cristina Amaral: Deu continuidade, o hiato foi antes de encontrar o Umberto. Eu digo que eu tenho uns anjos da guarda afetuosos e poderosos, porque em momentos específicos, cruciais, eles apareceram, pessoas apareceram oferecendo mãos que foram essenciais. 


Mulheres: Para você qual foi o seu primeiro grande momento como montadora? 


Cristina Amaral: A partir daí vieram acontecendo coisas boas. Enquanto eu estava fazendo o “Ori”, o Umberto disse que tava bem, eu ia fazer aquele filme, mas me pediu prá ajudá-lo e  montar um curta para ele, porque ele não ia ter tempo para montar. Era um filme do Gal (Pereira),que estava filmado, e ele não tinha  dinheiro para fazer a revelação e o copião do material. Daí, o Umberto, quando soube do que se tratava o filme - era sobre a loucura que virou o Incor e o Brasil na época da morte do Tancredo Neves - bancou toda a finalização do filme, pagou laboratório, ampliação, cópia, e nós fizemos o trabalho de graça. Este filme é o “Operação Brasil”, que foi o meu primeiro prêmio. Quer dizer, foi o segundo, porque aconteceram dois no mesmo ano, e o “Operação Brasil” foi em um festival mais tarde. 


Mulheres: Quais foram os prêmios? 


Cristina Amaral: O “Operação Brasil” foi premiado no RioCine. Mas aí, para fazer esse curta eu me virei. Eu ficava das oito até as seis da tarde fazendo o “Ori” e daí eu ia para a montagem do curta. Eu ficava de novo naquele esquema das oito da manhã até as onze, ou meia-noite, fazendo os  filmes. O prêmio que eu ganhei com o “Operação Brasil” , eu te digo que eu credito  a responsabilidade do prêmio ao Umberto, porque ele deu o norte inicial do filme. Quando eu cheguei para montar ele já tinha montado a primeira seqüência e que foi definitiva para determinar o que seria o filme, poderia ser uma outra coisa, mas ali ele já tinha dado o caminho do filme. No final , eu fiquei esbodegada, e querendo descansar um pouquinho,depois desse filme. 


Porém, uns 15 dias depois teve uma festa lá em casa e o Umberto chegou e  me disse se eu não queria montar um outro filme. E eu, “Não!”. Mas ele ficou me dizendo que o filme era bacana, o cara era bacana, e começou a me contar sobre ele, e me convenceu. O filme foi o “Ma Che Bambina”, do Cecílio Neto. Daí eu montei esse curta também no mesmo esquema, ficava o dia inteiro e à noite por conta dos dois trabalhos - o outro continuava sendo o "Ori”. 


Esses dois curtas eu tive que montar escondido da Raquel Gerber. As pessoas ligavam lá na produtora dela atrás de mim, ela atendia e dizia que eu não ia poder porque nós estávamos em um trabalho muito grande, e descartava ali (risos). Eu ouvia aquilo e não acreditava que ela estava fazendo isso, era muito engraçado, porque era ao mesmo tempo uma coisa carinhosa. Mas, como para o Umberto eu não podia dizer não de jeito nenhum, eu então fiz, mas escondido dela. Só que mentira tem perna curta, não adianta né? O que acontece?, No Festival de Gramado do ano seguinte, eu estava fazendo o “Ori” ainda, eu não fui para o Festival. Terminei o filme correndo para o Cecílio ir e ele foi. Eu nem estava acompanhando o Festival, e aí as pessoas começaram a me ligar porque tinha saído no jornal que eu tinha ganhado o prêmio de montagem de curta. E eu fiquei com aquela cara, e a Raquel dizendo “mas quando você montou esse curta?” (risos). Aí passa mais um mês e pouco e o Gal leva o “Operação Brasil” para o RioCine e ganha o prêmio de montagem também (risos). Foi a descoberta total, o maior vexame, realmente não dá para mentir. 


E foi um susto também para mim, os filmes foram e se deram bem, foi bacana. Daí começou uma coisa boa na área de curta-metragem. Eu fiz muitos, mas eu continuei fazendo assistência em longas. Apesar de que no “Ori” eu fiz de tudo, eu ficava até com vergonha quando o filme era exibido com o tanto de vezes que o meu nome aparecia nos créditos. Porque era aquela coisa que acontece quando você abraça um projeto, abraça a pessoa, aparecia qualquer coisa para fazer e a gente ia lá e fazia. 


Nesse meio tempo aconteceu uma coisa muito bonita também que é uma coisa dos meus anjos, dos meus amigos. O Denoy de Oliveira foi convidado para ir para o Festival de Mannheim (Alemanha), com o “Nós de Valor, Nós de Fato”. Com esse filme a gente ficou muito amigo. Eu já tinha feito assistência de montagem no “João Juca Jr”, que foi a segunda assistência de montagem que eu fiz e eu gostava muito dele e da Maracy. Eu e o Denoy ficamos amigos, a gente brincava, a gente ria muito, mas eu não tinha a dimensão do tamanho da amizade da gente, qual seria o papel dele na minha vida, o tamanho do coração dele. 


Um dia ele me liga e me conta que tinha recebido esse convite. Como tinha um seminário junto a esse festival, eles tinham deixado em aberto para que uma pessoa pudesse ir com ele para participar desse seminário. E que essa pessoa tinha que ser estudante de cinema ou assistente de direção. Eu não era nenhuma coisa nem outra, já tinha saído da escola e era assistente de montagem. Aí o Denoy escreveu uma carta enorme, linda, justificando porque ele queria que eu fosse junto, e eles aceitaram. Daí eu fui com ele e dois anos depois eu voltei a esse festival. Foi uma coisa importante para mim, porque eu não tenho dinheiro para ficar viajando para a Europa e essas viagens abriram muito a minha cabeça, eu nem sei dizer em que medida, mas é essa coisa de você atravessar um oceano e ver que o mundo é maior. 


Mulheres: Você não acha que o Denoy ainda não tem sua dimensão reconhecida pelo cinema brasileiro? 


Cristina Amaral: Eu acho que não tem não. É outra pessoa que também faz muita falta, que tinha esse olhar generoso em relação ao cinema, compreensivo. E que enquanto trabalho tinha uma atitude humana dentro do cinema que se vacilar a gente perde agora, porque as pessoas estão tão automáticas, tão estratégicas para fazer cinema, que é um perigo quando você fica tendendo muito para esse lado. O Denoy era só coração, ele fazia, era o povo que ele amava, eram as pessoas que ele queria, era a ideologia que ele acreditava. Isso era, inclusive, um lado que a gente discordava muito, mas a gente conseguia ser muito amigos, em trocar idéias, mesmo tendo posturas políticas conflitantes. Quando eu encontro com a Maracy meu olho enche porque eu me lembro desse afeto, dessa família nova que eu ganhei junto deles, em ir de tarde tomar café com leite que ela fazia carinhosamente para a gente, uma coisa muito bonita mesmo. 


E o cinema dele foi um cinema de uma época em que se viveu muitas dificuldades, falta de apoio total que o cinema brasileiro sofreu naquela época. E ele fez cinema nesse momento. Então é assim, se a gente não olhar esse cinema com essa dimensão... E teve seus momentos de ousadia, teve. Ele teve um trabalho que precisa ser mais bem olhado e mais respeitado, como muitos. 


Mulheres: Quem falou dele carinhosamente assim como você também foi a Regina Dourado em entrevista para o Mulheres. Eu fiz essa mesma pergunta que fiz para você e ela disse que ele precisava ser redimensionado. 


Cristina Amaral: É, a Regina trabalhou muito com ele. Ele tinha um compromisso com o cinema que ele fazia, ele tinha uma curiosidade, uma aceitação para as coisas que era muito bonito. E cinema, eu acho, é essa experimentação. Às vezes a gente acerta, às vezes a gente erra, cada filme é um, e é sempre uma coisa nova. Só dá certo, entre aspas, a fórmula, que é isso que estão usando agora, que é a fórmula do “blockbuster”. Você tem muito dinheiro para produzir, que é parecido com essa coisa da publicidade, daí alguma coisinha salva. É assim, se você  quer inventar um diretor você pega alguém que tem acesso à patrocínios. Aí o cara levanta a grana, compra os direitos de um texto, contrata um roteirista, contrata um diretor de ator, pega um bom fotógrafo, uma equipe profissional e vai para o set dizer ação. Assim é fácil,  é só para dizer ação e corta, né? 


Aí depois você tem o equivalente ao orçamento de três longas-metragens em termos de dinheiro para lançar o filme, é a mesma fórmula do comercial. Você pega o sabonete x, enche a prateleira, passa o dia inteiro na televisão publicidade dizendo que o sabonete x é o melhor e está vendido. Só que não é  necessariamente o  melhor. Aliás, se a gente for olhar o cinema brasileiro, com raríssimas exceções, as nossas maiores bilheterias são dos nossos piores filmes. São raríssimos, talvez dê para contar nos dedos de uma mão. Daí, para mim, não é elogio um cara vir dizer que o filme dele teve tal bilheteria. Com essa parafernália por trás não é difícil, difícil é dar errado, porque isso é fórmula. Só que dois anos depois, esse filme não vai ter mais nada a dizer, porque já foi consumido, porque o seu limite já estava proposto. 


Mulheres: Muitas vezes se fala que é um grande momento e o que se vê é que é um grande momento, mas de mercado. 


Cristina Amaral: De mercado, de cinema não é, pelo contrário. A gente está em um momento delicado em termos de cinema. 


Mulheres: É uma coisa complicada essa relação cinema e mercado, porque tem muita gente que olha o mercado primeiro. 


Cristina Amaral. Sim. Eu acho que tem as duas coisas, só que você tem que dar as devidas dimensões para os seus devidos lugares. É só você pensar no parâmetro do cinema de Hollywood que você vê que eles não são estúpidos não. Tanto é que eles investem em escritores, eles investem em autores. Porque eles sabem que sem os autores aquilo tudo desaba. A cada cinco anos bate uma crise lá, o cinema americano em crise, porque esgotou o filão. Então eles sabem que precisam dos autores e aí vão importar de onde for. Agora eles andam importando também mão-de-obra, porque cinema americano para eles não é só mais o cinema que é feito nos Estados Unidos. É cinema americano que é feito como cinema americano, e daí pode ser feito aqui no Brasil,  na Austrália, na Inglaterra, na China, onde for. È a estratégia cultural que está estabelecida. 


Nessa segunda parte da entrevista, Cristina Amaral fala sobre seu encontro com o cineasta Carlos Reichenbach e faz uma bela homenagem a ele “Foi um divisor de águas na minha vida”, fala com emoção da montagem do primeiro filme da parceria, “Alma Corsária”, da epopéia que foi concluí-lo e da exibição histórica no Festival de Brasília. 


Cristina Amaral conta também sobre o encontro com Andrea Tonacci “Trabalhar com o Carlão e com o Andrea foi a realização de dois sonhos” e sobre a produtora em que são sócios, a Extrema Produção Artística. Fala sobre a paixão pelo cinema dos dois e também o de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Walter Lima Jr. e Glauber Rocha. 


Carinhosa, homenageia colegas de ofício como Vera Freire, Idê Lacreta, Vânia Debs, Marta Luz, Virgínia Flores e Jordana Berg e faz homenagem especial à Lupe, precursora de todas elas. Acarinha a produtora Sara Silveira, as pesquisadoras Maria do Rosário Caetano e Ivana Bentes, e também Margarida de Oliveira, Patrícia Durães, Renata de Almeida e Flávia Miranda. E fala, claro, sobre a produção atual. 


Continua na Parte 2

Veja também sobre ela

::Voltar
Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.