Ano 20

Maria Gladys

A carioca Maria Gladys é uma grande atriz do moderno cinema brasileiro. Musa absoluta do Cinema Marginal, ao lado de Helena Ignez, Maria Gladys marcou também o Cinema Novo com sua bela atuação em “Os Fuzis”, a obra-prima de Ruy Guerra e marco do movimento. Maria Gladys começou sua carreira nos agitados anos 60, e construiu carreira notável também no teatro, atuou em “Arena Conta Zumbi”, de Augusto Boal, e na televisão – atuou na novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga. Se os anos 60 foram revolucionários em tudo, o mesmo se deu com a atriz, que viveu intensamente o período: “Não se pensava em dinheiro, pensava em mudar as pessoas e melhorar o mundo. Era uma geração que queria mudar o mundo”. E viveu também, é claro, os momentos sombrios do mesmo período no Brasil: “Então eu sou filha dessa geração Cinema Novo, filha dessa geração golpeada pela ditadura, porque eu comecei a carreira em 1960, e em 64 veio o golpe, em 68 veio o AI5. Pôxa, tem dez anos do início da minha carreira que foram complemente transformados pela ditadura”.

No cinema, seu encontro com os diretores Neville D´Almeida, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla sacodem não só o cinema brasileiro como também tudo em Maria Gladys: “fiz os filmes, que não só mexeram na minha carreira, como mexeram também comigo, com a minha cabeça, com o meu modo de interpretar, com o modo de me ver. Porque eram filmes em que eles exploravam muito o que você tinha como pessoa, eram filmes meio da improvisação, entendeu? Filmes feito com o talento da gente, mostrar aquele lado meu, carioca, cafajeste, o modo de falar, tudo isso Júlio puxava na hora das interpretações”.

Maria Gladys tem carreira notável no cinema brasileiro. Além de Ruy, Neville, Bressane e Rogério, atuou em filmes dos mais importantes cineastas brasileiros: Miguel Borges, Domingos de Oliveira, Hugo Carvana, Paulo César Saraceni, Aurélio Teixeira, Antônio Carlos da Fontoura, Antônio Calmon, Walter Lima Jr – “Já para adiantar, a minha carreira toda foi feita com amigos, com turma, eu sempre trabalhei com amigos”. Filmes como “O Anjo Nasceu” e “Cuidado Madame, de Bressane, e “Sem Essa Aranha” de Rogério Sganzerla são exemplos do que de melhor já foi realizado no cinema nacional. 

Maria Gladys esteve em Belo Horizonte para a abertura do “9º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte”. O Festival promoveu belo encontro entre Maria Gladys e Helena Ignez, musas do Cinema Marginal e de todo o cinema brasileiro, para a exibição dos curtas “A Miss e o Dinossauro – Bastidores da Belair”, de Helena Ignez, e do curta “Toda a Memória das Minas”, de Geraldo Veloso. Maria Gladys recebeu o Mulheres no hotel para essa bela entrevista exclusiva, em que repassa sua trajetória.


Mulheres: Algumas fontes dizem que o seu primeiro filme foi com o Luiz de Barros, o lendário Lulu. O filme é “Por um Céu de Liberdade”. É isso mesmo?

Maria Gladys: Não. Isso não é Lulu de Barros. Eu acho que é um filme que eu fiz em Belém do Pará. Pelo nome, pelo que eu me lembro, foi um filme em começo de carreira que eu fiz com o Líbero Luxardo, protagonizando.

Mulheres: O do Líbero é “O Diamante e cinco Balas”. Então vamos para o “Fuzis” (1964), esse clássico do cinema brasileiro. Como você foi escalada para este filme?

Maria Gladys: O Ruy me conheceu e eu fiz um teste de fotografia com o Afonso Beatto, para ver se ele gostava, e era óbvio que ele ia gostar, porque eu tinha tudo para fazer aquele personagem, uma menina do interior da Bahia. Ele topou, gostou, fui para Milagres, fiquei lá dois meses filmando. 

Mas o meu primeiro filme foi “Canalha em Crise” (1964), com direção do Miguel Borges. É um filme esquecido, todo mundo acha que foi “Os Fuzis”, porque foi o filme que apareceu, mas “Os Fuzis” foi meu segundo filme.

Mulheres: Em “Os Fuzis” você tem uma interpretação contida, bem diferente do que você vai fazer posteriormente, principalmente no Cinema Marginal. Mas antes de falarmos sobre isso, outro grande cineasta com o qual você trabalhou nos anos 1960 é o Domingos de Oliveira.

Maria Gladys: Foi, eu era amiga dele. Já para adiantar, a minha carreira toda foi feita com amigos, com turma, eu sempre trabalhei com amigos. Claro que eu trabalhei também com pessoas que não são amigos íntimos, como o Domingos, que é meu amigo íntimo, meu irmão, igual a Júlio, igual a Rogério. Ruy Guerra é um homem que se afastou muito, é um homem de dentro de casa, mais solitário, mas é uma pessoa que eu tive muita intimidade.

Agora mesmo eu acabei de fazer um filme aqui em Belo Horizonte, em novembro, com o Helvécio Ratton. E fiquei contente em ter trabalhado com o Ratton. Primeiro porque eu o admiro, o trabalho dele, gosto do cinema mineiro, e depois ele não é um amigo de turma, de patota, então foi legal, também é bom esse lado de trabalhar com uma pessoa que não é da sua turma.

Com o Domingos, já que eu era da turma dele, quando ele fez “Todas as Mulheres do Mundo” (1967) ele queria botar todo mundo, eu então faço uma pequena participação. Aí continuei com ele fazendo “Edu. Coração de Ouro” (1968), que é um filme que eu adoro, adoro a minha participação neste filme. É chato porque depois nunca mais fiz cinema com o Domingos.

Agora, com o Domingos tem uma peça de teatro, que a Guta Stresser acabou de fazer no Rio com muito sucesso, que é uma peça que a gente fez e que é o seguinte. Lá no meio dos anos 60, eu andava ali naquela turma de Ipanema, eu não tinha telefone e ia à casa do Domingos telefonar. E aí ficava contando para uma outra amiga ao telefone as farras que eu tinha feito na noite anterior. Eu sou uma pessoa boêmia, gosto da noite, tipo carioca, que bebe chope, gosta de mar. Eu ficava contando essas histórias e um dia o Domingos falou assim “senta aí e me conta essas histórias que você conta para a Taís”, Taís Portinho era a atriz com quem eu falava. 

Daí eu contei, ele montou aquilo, fez uma peça de teatro que já foi feita pela Zezé Polessa e por uma outra querida amiga que me esqueço agora, um espetáculo mais sem estrutura de produção. A Guta acabou de fazer com direção do Domingos, e a peça se chama “Como a minha amiga e atriz Rita Formiga ocupa meu telefone de quatro às seis, justamente no meu horário predileto para escrever” (risos). Mas a peça acabou virando só “Rita Formiga” (risos). Adoro, peça linda, uma peça que fala da boemia de Ipanema. 

Então tem esses trabalhos com o Domingos, mais no teatro, mas não tenho trabalhado com ele no cinema.

Meu último filme agora foi com o Ratton, um filme de quatro episódios, todos dirigidos por ele. Eu faço a dona de uma pensão decadente aqui em Belo Horizonte, que fica cobrando ao Paulo José, que está me devendo. Ele é um homem do povo, um homem pobre, está em dificuldade, e eu fico ali atazanando. É uma pequena participação, mas que valeu.

E também acabei de filmar com o Bruno Safadi, que também é uma pequena participação. Ele é assistente do Júlio Bressane, me conhece dos filmes da Belair. O filme chama-se “Dindi” (“Meu Nome é Dindi” – 2006), em que a atriz principal é a filha da Helena Ignez, Djin Sganzerla, filha dela com o Rogério.

Mulheres: Você fez o Hugo Carvana também recentemente, “A Casa da Mãe Joana” (2007).

Maria Gladys: Fiz o Carvana, também uma participação. O Carvana sempre me coloca em seus filmes, mesmo que não tenha muita coisa, eu sempre faço, de qualquer maneira. Já está certo de que todo filme eu tenho que fazer alguma coisa.

Carvana também é amigo de patota. Meu velho amigo desde “Os Fuzis”, desde antes, eu conheço Carvana a vida inteira, é um carioca assim como eu, boêmio como eu, gosta de beber um uísque, bebemos juntos, enfim, cariocas.

Mulheres: Antes de você virar musa absoluta do Cinema Marginal, ao lado de Helena Ignez, você conviveu mais de perto com o pessoal do Cinema Novo?

Maria Gladys: Convivi com o Cinema Novo, todos amigos, ia filmar com o Joaquim Pedro (de Andrade). Ele morreu preparando “Casa Grande e Senzala”, eu tenho até o roteiro guardado. Eu já estava até experimentando roupa quando ele ficou doente. Eu tenho uma ligação grande com o Cinema Novo, porque também era uma turma de Ipanema. Ruy era namorado da Nara Leão, então a gente ia para a casa dela, éramos todos amigos. Tinha o Teatro Opinião, que a gente freqüentava. Então eu sou filha dessa geração Cinema Novo, filha dessa geração golpeada pela ditadura, porque eu comecei a carreira em 1960, e em 64 veio o golpe, em 68 veio o AI5. Pôxa, tem dez anos do início da minha carreira que foram complemente transformados pela ditadura. 

Então eu sou filha disso tudo, e filha também da geração hippie. Eu fui para Londres, vivi três anos em Londres, aqui estava ruim, meus amigos todos estavam lá, Glauber (Rocha), Rogério, Júlio. Fui atrás dos meus filmes também, porque aqui nós só fizemos, eles foram revelados lá. Fiquei três anos, adoro Londres, tenho uma filha que vive lá, tenho uma neta que nasceu lá. Tenho um pé fora do Brasil, graças a Deus. Quando fiquei grávida queria isso, ter um pé fora do Brasil, um outro país que eu pudesse, quando estivesse chato aqui, eu pudesse ir embora. O Brasil é um país difícil.

Mulheres: O encontro com o Júlio Bressane é fundamental na sua carreira, porque ali estão algumas das interpretações mais modernas do cinema brasileiro.

Maria Gladys: Foi marcante com o Júlio Bressane e também com um mineiro, o Neville D´Almeida. Na verdade quem me levou a Júlio Bressane foi Neville D´Almeida (com quem fez “Mangue Bangüê” – 1971, “Piranhas do Asfalto” – 1971, “Rio Babilônia” – 1982, “Matou a Família e foi ao Cinema” -1991).

Neville é um velho amigo, amigo de toda a vida também. Neville me levou a Júlio, e ali, com Júlio e Rogério, fiz os filmes, que não só mexeram na minha carreira, como mexeram também comigo, com a minha cabeça, com o meu modo de interpretar, com o modo de me ver. Porque eram filmes em que eles exploravam muito o que você tinha como pessoa, eram filmes meio da improvisação, entendeu? Filmes feito com o talento da gente, mostrar aquele lado meu, carioca, cafajeste, o modo de falar, tudo isso Júlio puxava na hora das interpretações. 

Então eu devo toda essa mudança na minha vida como atriz ao Neville, essa mudança de me aceitar mais como uma atriz brasileira, de me aceitar, de aceitar meu talento. Ator é muito crítico, eu sou muita crítica, então ator é muito inseguro, né? E Neville foi um homem que me ajudou muito nisso, e os filmes de Júlio também. 

O Cinema Novo era diferente, era diferente. Para mim, o que valeu mais a pena foi ter convivido e trabalhado com o Júlio, com quem eu vou agora fazer uma participação no documentário sobre a Belair, a Petrobrás selecionou o roteiro no ano passado. O filme vai ser dirigido pelo Bruno Safadi, e vai falar dessa produtora, a Belair, do Júlio e do Rogério, onde fizemos esses filmes na época da ditadura.

A Belair já virou história, já faz parte do passado, vou fazer esse filme com ele e espero caminhar para uma outra coisa, que me dê vontade de fazer, porque eu acho que também com esse documentário da Belair... 

Eu acabei de ter uma mostra na Caixa Econômica, Mostra Maria Gladys (“Mostra Maria Gladys – Atriz Brasileira”), que teve “Aranha” (“Sem Essa Aranha” – Rogério Sganzerla -1970), passou “O Gigante da América” (1978 – Júlio Bressane), passou “Agonia” (1978 – Julio Bressane), que é um filme em que sou a protagonista junto com o Joel Barcellos, meu principal filme com o Júlio Bressane, um filme belíssimo, eu adoro. Teve essa mostra que foi muito bom, foi muito legal, mas aí eu quero começar uma outra fase, porque, na verdade, é tão marcado em mim que eu fico só falando disso, e isso foi em 1970, já ta na hora de sair, encerrar a Belair.

Mulheres: Mas é porque são filmes modernos até hoje.

Maria Gladys: Ah, é. 

Mulheres: Quando você revê, você gosta?

Maria Gladys: Adoro, vejo sempre. O filme de Helena ontem, “A Miss e o Dinossauro” (“A Miss e o Dinossauro – Bastidores da Belair” – 2005), eu posso ver de novo, o filme do Veloso que passou ontem (“Toda a Memória das Minas”), uma maravilha, adorei ver, faz parte dessa coisa toda. È um momento, daquela época, coisa de você fazer cinema radical, cinema com pouco dinheiro, cinema rápido, cinema em cima da gente, da nossa vivência, da nossa vida, do nosso humor. É igual a “Os Fuzis”, que é um filme que ficou, um filme pra sempre. 

Na minha carreira tem muito isso, eu tenho coisas que são históricas. É engraçado, faz parte, talvez, da minha personalidade. Eu também não sou uma atriz que trabalha tanto, que a toda hora está trabalhando. Não que não queira, mas porque não sou convidada.

Mas você vê, tem clássicos na televisão, novelas, que eu fiz, como “Vale Tudo” (1988). “Noivas de Copacabana” (1992 – minissérie), por exemplo, ninguém esqueceu. Até outro dia, eu moro em Copacabana, na avenida Atlântica, e meu porteiro falou assim, “aqui tá ocupado de polícia federal, por causa do PAN”. Daí ele falou que tinha um policial que disse “conheço essa moça” (risos), ele disse que você é noiva de Copacabana (risos). Ah, meu Deus! “Noivas de Copacabana” também? Tem tempo à beça, Miguel Falabella era magrinho ainda.

Mulheres: Que é outro parceiro importante seu na televisão.

Maria Gladys: Pois é, eu faço sempre as novelas do Miguel Falabella, é isso, eu só trabalho com turma, mas são coisas que ficam marcadas. De uma certa maneira é ótimo, mas financeiramente não é, porque ganho menos. Mas “Vale Tudo” é um marco na televisão, não existe nada como essa novela que parou o país. “Noivas de Copacabana” é um marco, as novelas de Miguel também, “Salsa e Merengue”, elas são inesquecíveis, são diferentes, as pessoas adoram, elas têm um ritmo diferente, fala de maneira diferente. Tudo o que eu fiz, até as coisas no teatro, são marcantes. Então quando eu venho fazer um filme com o Ratton eu acho ótimo, é fora disso tudo que eu costumo trabalhar.

Mulheres: Você fez filmes com o mineiro José Sette também (“Bandalheira Infernal” – 1976; “Um Filme 100% Brasileiro” - 1985).

Maria Gladys: Foi, filmei no Rio. Gosto muito do Zezinho, meu amigo. Se eu não falar do filme dele ele fica chateado comigo.

Mulheres: Ano passado a Mostra de Ouro Preto (Cineop) fez um encontro histórico entre Paulo José e Milton Gonçalves, os irmãos em “Macunaíma” para assistirem juntos ao filme. E ontem foi a vez do Festival de Curtas de Belo Horizonte reunir você e Helena Ignez para a sessão de “A Miss e o Dinossauro”. Que beleza foi ver vocês duas juntas.

Maria Gladys: A Helena é minha amiga desde sempre, morávamos na mesma rua em Copacabana, éramos muito garotas. Eu tinha acabado de fazer “Os Fuzis”, e ela estava começando a fazer “O Padre e a Moça” (1965 – Joaquim Pedro de Andrade), e andávamos com a turma ali do Cinema Novo. Então era assim, todos os dias saíamos, éramos amiguinhas. Antes de Helena se casar com o Júlio, e tudo, era casada com o Glauber. Paloma (Rocha) já existia. E aí vivemos esse tempo, fizemos os filmes. 

Daí eu fiquei em Londres, Helena ficou aqui. Quando voltei de Londres, fiquei mais distante de Helena, ela foi para São Paulo, ficou morando na Bahia um tempo também. Quando estive na Bahia uma época fui lá visitá-la. Ficamos longe. A Helena parou um pouco, em uma época, a carreira de atriz, virou hare Krishna. Então, ela também se afastou um pouco. 

Depois voltamos a nos reencontrar. Eu a indiquei para uma peça em que estava trabalhando com o Ulisses Cruz, um espetáculo belíssimo, uma peça de Nelson Rodrigues, “O Anjo Negro”, com uma iluminação linda de Maneco Quinderé, o máximo, cenário de Élio Eichbauer, um luxo esse espetáculo. Eu fazia uma das irmãs do personagem principal. Precisava de uma outra irmã, e aí eu dei a idéia da Helena para o Ulisses. A Helena ainda estava um pouco afastada, então foi bom, ela veio com toda a vontade de fazer. Fizemos então esse trabalho juntas em São Paulo, e aí a Helena foi retornando e ficou trabalhando mais em São Paulo. E agora, com esse longa que ela fez, Baal (“Canção de Baal” – 2006), minha filha trabalhou com ela.

E agora a gente tem se encontrado por causa dessa coisa de Belair. É uma coisa extraordinária, porque você vai vendo, é família, irmã. Depois que o tempo vai passando, você vai ficando mais velha, e você vê “que coisa! essa pessoa fez parte da minha vida toda” Você só sabe isso quando fica mais velha, porque tem pessoas que você vê a vida inteira. Helena é assim, o Carvana é assim, você conhece uma pessoa quando está começando a vida, ta despontando na vida pra tudo, não sabia ainda se quer isso ou aquilo, e aí você conhece e segue até agora.

Mulheres: Me lembrei do Peréio (Paulo César). Outro dia vi uma entrevista sua com ele no Canal Brasil (“Sem Frescura").

Maria Gladys: Pois é, é outro (risos), a vida toda também esse maldito, a gente briga muito, é um inferno aquilo. 

Mulheres: Depois do Cinema Marginal, você trabalha novamente com muitos cinemanovistas, como o Saraceni (Paulo César) e o Walter Lima Jr.

Maria Gladys: Exatamente, eu não posso esquecer essa alma boa, esse é um santo, Saraceni é santo, Saraceni não é homem aqui dessa terra não. O Saraceni ganhou agora, a Petrobrás deu um dinheiro para ele agora.

Mulheres: Um cineasta como o Saraceni precisa filmar.

Maria Gladys: Precisa filmar. O homem está com setenta e tantos anos, esteve doente, carente de filmar, leva dez anos para filmar, uma pessoa daquela, aquela alma boa. Quando ele fez o “Anchieta” (“Anchieta, José do Brasil – 1977), a gente estava muito perto nessa época, também é uma pessoa que faz parte da minha vida. Conheço o Saraceni desde que ele voltou da Itália, onde estudou cinema. Quando ele foi fazer o “Anchieta”, ele levou todo mundo para Porto Seguro, ele deu trabalho para todo mundo (risos). “Anchieta” é um filme extraordinário. Tinha Fregolente, Peréio, Carvana. Aí, fiz com ele também o “Natal da Portela”, é um amigo querido.

Walter Lima Jr é também amigo querido do Cinema Novo, ele vivia dizendo assim “meu Deus, eu tenho que filmar com Maria Gladys. É incrível, eu adoro o trabalho dela e nunca faço filme com ela” (risos). Eu fui para Ouro Preto, que delícia. Eu não sabia falar inglês, a produção (“O Monge e a Filha do Carrasco” – 1995) é do Joffre Rodrigues e o filho dele, uma pessoa fabulosa, ficava treinando comigo uma frase, e eu não sabia, e não acertava, não acertava. Até hoje quando ele encontra comigo, ele fala a frase inteira, que agora não me lembro (risos). 

Na hora de fazer a cena, a Shulamith Yaari ganhou um papel maior porque ela sabia falar inglês bem. Ele me mandou ficar ao lado dela, improvisando alguma coisa quando ela falasse o texto. Aí ela falava, e eu improvisava, e ficou ótimo. Quando eu fui fazer mesmo, o Walter ficou em dúvida se eu devia fazer aquilo mesmo. Aí o Murilo Benício falou assim “mas tá ótimo, ela tem que fazer assim, ela tem que falar dessa maneira o inglês”. Ele deu o toque no Walter, então eu fico falando lá (risos). Que maravilha filmar.

Mulheres: Um dado interessante na sua trajetória é que tem Cinema Novo, tem Cinema Marginal, mas também tem filmes mais comerciais, como “Meu Pé de Laranja Lima” (1970), por exemplo, que você fez com o Aurélio (Teixeira).

Maria Gladys: “Meu Pé de Laranja Lima” também é uma coisa, né? Meu Deus, eu tenho que ficar lembrando, como era mesmo. Tem pessoas que adoram aquele trabalho, a professorinha, de repente cai uma lágrima grossa, que eles pingaram (risos).

Bom, você sabe que eu fui namorada de Roberto Carlos, né? Eu não falava muito sobre isso não, na época, pois podia parecer aquelas pessoas que ficam falando, fui namorada do Roberto, aquelas coisas. Mas agora que já passou o tempo, então não faz mal sair na imprensa. Antes eu não era tão conhecida e poderia parecer que eu queria aparecer. Então agora eu falo. Eu fui ver um dos shows do Roberto, porque eu vejo o Roberto de dez em dez anos, é tipo João Gilberto. Daí eu perguntei, quando fui lá no camarim falar com ele, “e você, me vê na televisão?” E ele, “claro, eu vi você em “O Meu Pé de Laranja Lima” (risos). Valeu, né? “O Meu Pé de Laranja Lima” já valeu.

O Aurélio Teixeira é uma figura muito bonita, muito simpático, importante no cinema, um homem bom, sensível. É um tipo de pessoa que acabou, tem certo tipo de gente, de caráter, que eu sinto que não vai ter mais pessoas assim. Não vão existir mais pessoas assim, tipo o meu pai. Meu pai, quando recebia pagamento, tinha que pagar tudo naquele dia, “tem que pagar logo”, uma seriedade. Eu, por exemplo, não sou assim, não que eu seja uma caloteira (risos). O Aurélio era assim, uma pessoa boa, bebia cerveja, tomava aqueles porres dele, falava, chorava, homem muito sensível, amigo dos amigos. 

E tem outra coisa. O ator, hoje em dia, é assim. Se você não está contratado pela televisão, você está mal de dinheiro. Porque você só ganha dinheiro fazendo televisão, seja ela qual for, com contrato. Porque o teatro não dá, a não ser que você faça um grande sucesso, tipo “Os Homens são de marte e é pra lá que eu vou”. Zezé Polessa, minha querida amiga, adoro o trabalho de Zezé Polessa, ela está fazendo uma peça que vi, “Não sou feliz, mas tenho marido”. O trabalho dela é muito bom, enfim, tá ganhando dinheiro, mas é uma ou outra coisa.

Mulheres: Até os anos 70, tinha muito Atriz de Cinema. É claro que as atrizes faziam televisão, você mesma, a Leila Diniz, a Odete Lara, Isabel Ribeiro, mas tinha uma coisa forte com o cinema. Hoje a televisão é inevitável, não é?

Maria Gladys: Isso mudou muito, eu tenho pensado nisso e até hoje não encontrei alguém mais sério para conversar sobre isso. Mais sério no sentido de entendedor da arte. A carreira do ator mudou muito, a partir da TV Globo. A Globo, como tudo, tem o lado bom e o lado péssimo. Quando ela começou, ela levantou a vida do ator. O ator da minha geração na ganhava dinheiro nenhum, pelo contrário, a gente era contra espetáculo que desse dinheiro, que fosse comercial. Por exemplo, Helena Ignez fazia espetáculos comerciais, Helena era muito bonitinha, loirinha, então era um tipo que fazia aquelas ingênuas, aquelas “comediotas” de Neil Simon, “Domingo no Parque”, aquelas coisas, Helena se prestava muito pra isso.

E a gente, eu que era do teatro jovem, que fazia Francisco Pereira da Silva, não sei se você já ouviu falar, que é um escritor do Piauí, de Campo Maior, eu fiz “Chapéu de Sebo”. Teve um filme, Cláudia Ohana fazia o papel que eu fiz no teatro. Enfim, eu queria fazer autores nacionais, Dias Gomes, Oficina, eu fazia “Arena Conta Zumbi”, eu só fazia peça daquelas porradão. Eu e milhões de pessoas da minha geração.

Não se pensava em dinheiro, pensava em mudar as pessoas e melhorar o mundo. Era uma geração que queria mudar o mundo. Outro dia eu vi uma propaganda na televisão, que falou assim, “você da geração que quis mudar o mundo, pois então, pode ficar certo, vocês mudaram”. Foi a primeira vez que eu ouvi isso. Porque sempre se fala, o Jabor fala “eu sou da geração que quis mudar o mundo, mas parece que não mudou”. Eu gostei dessa, porque eu acho que mudamos sim. Eu acho, eu acho que mudamos sim, dentro do possível, não o sonho do mundo total de paz, como queria John Lennon, sem passaporte, sem fronteira, aquilo era um sonho muito alto. Mas teve alguma coisa que John Lennon mudou, no que eu falo fico até arrepiada. 

Agora eu peguei isso tudo porque você estava me falando sobre a profissão de atriz, e eu sinto isso. Quando a TV Globo chegou no Rio, todo mundo foi lá fazer teste, eu não fui. Eu me lembro que meu amigo Cláudio Marzo foi contratado, e ganhava tanto, e aí a gente dizia “meu Deus! Vai ganhar isso tudo?” Aí ia outro, e era um ti ti ti no bar. Então mudou, mudou para o bom. Hoje os atores ganham bem. Então tem esse lado de botar o ator em outro parâmetro. E isso acontece com a música popular. Eu não sou da idade de Orlando Silva, dessa geração, isso é geração da minha mãe, mas os cantores não tinham dinheiro. E você vê, quando Chico Buarque fez “A Banda”, imediatamente Chico Buarque ganhou dinheiro. Até os anos 50 ninguém ganhou dinheiro 

A Globo entrou em 65, com a Time Life, na época da ditadura, Guerra do Vietnã, quem que queria ir para a Globo? Tudo que a gente fazia no teatro era contra. Então o que eu penso, para diminuir esse papo sobre a vida do ator, é que acho isso. Por exemplo, hoje em dia a TV Globo criou uma escola, então todo mundo quer ser atriz, todo mundo estuda teatro. Quando eu estudava teatro tinha vinte pessoas só, turma menor, agora, hoje em dia, todo mundo estuda teatro. Mas por quê? Pra ser atriz da Globo.

Hoje de manhã eu estava aqui, de vez em quando, quando eu posso, eu espezinho o fã. Eu sei que ele não tem culpa, que ele não sabe, mas as pessoas vêm assim, com aquela cara “você é atriz da Globo?” Tudo, quase todo mundo é assim. E aí eu digo “não, eu sou atriz. Sou atriz de cinema”. Ou às vezes perguntam “não está em novela não? O que você está fazendo? 

Hoje todo mundo quer ser atriz da Globo, e na televisão não é difícil interpretar não, o tal do naturalismo, interpretar (improvisa uma fala, joga o cabelo para trás): “Hoje eu acordei pensando nisso”. Isso é muito fácil. O difícil da televisão é pegar o ritmo, o tempo. É por isso que as atrizes antigas como eu, como a Fernanda Montenegro, Suzana Vieira, Arlete Salles vão atuar até quando ficarem velhinhas.

Mulheres: Você tem um filme inacabado como diretora, não é?

Maria Gladys: Sim, o “First Odalisca”. Eu brincava com o Lee Jaffe, que era meu namoradinho na época, quer dizer, meu e de mais um monte de mulheres. Era anos 60, aquelas coisas, o tempo era outro. Eu costumava dizer para ele que com esse filme eu ia ser a primeira odalisca dele.

Eu filmei lá em Londres. Filmei a turma toda, todo mundo empacotado, muito frio. Eu filmei todo mundo parado, tinha longos planos em que não acontecia nada. Tinha cena com a Suzana de Moraes só mexendo a língua para cá e para lá. Daí eu revelei uma parte e mostrei para algumas pessoas. Eu me lembro que mostrei para o Caetano Veloso, e ele não disse nada, ficou calado. Eu pensei, “O Caetano não gostou”. Daí acabei abandonando, não revelei as outras partes do filme.

Mulheres: Você devia retomar.

Maria Gladys: Ah, difícil, muita coisa se perdeu. Outro dia o Sylvio Lana me ligou falando que achou um rolo do filme na casa dele. Hoje eu penso, foi uma besteira, devia ter revelado o filme, poderia ser um documento importante daquela época.

Mulheres: E do cinema atual, você está gostando?

Maria Gladys: Sim, estou adorando, principalmente o pessoal do Pernambuco. O Cláudio Assis, o Lírio Ferreira, o Paulo Caldas. Outro dia mesmo eu estava falando com o Lírio “pôxa, eu quero trabalhar com vocês, mas vocês só trabalham com as pernambucanas?” (risos). “Eu estou até aprendendo o sotaque para trabalhar com você”, fico brincando com o Lírio. Eu gosto muito do cinema que eles estão fazendo.

Mulheres: Qual foi o último filme brasileiro que você assistiu?

Maria Gladys: Foi o “Baixio das Bestas”, do Cláudio Assis. Gostei muito.

Mulheres: Gostaria que você homenageasse uma mulher do cinema brasileiro de qualquer época e área. Você topa?

Maria Gladys; Assim que você falou me veio uma mulher e é ela que eu vou homenagear: Norma Bengell.

Mulheres: E que fez um filme sobre você (“Maria Gladys – Uma Atriz Brasileira” - 1979).

Maria Gladys: Pois é. Agora, na minha mostra foram buscar o filme. A Norma não apareceu, tem um tempo que não a vejo. Mas eu quero homenagear a Norma, essa grande atriz, uma mulher generosa, uma diretora generosa. Norma fez aquela beleza que é “Os Cafajestes” (1962 – Ruy Guerra), Norma fez o Manga (Carlos Manga – “O Homem do Sputinik - 1959).

Mulheres: Fez o “Anjo Nasceu”, do Bressane, com você.

Maria Gladys: Pois é, aquele filme lindo. A Norma está sendo muito perseguida, eu não sei o que aconteceu lá com o filme dela, se ela errou nas contas, ou o que foi. Mas a Norma é uma mulher muito generosa e grande atriz. Minha homenagem é para ela.

Mulheres: Muito Obrigado pela entrevista.

Maria Gladys: Obrigada a você e quero deixar um beijo para os mineiros. Adoro mineiro, meus amigos, Veloso, Guará (Rodrigues) - que era grande parceiro, Neville.

 
Entrevista realizada em julho de 2007.

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Sala 
 Sala Dina Sfat
Atriz intensa nas telas e de personalidade forte, com falas polêmicas.